domingo, julho 16, 2006

FUTEBOL, PAIXÃO,
ÉTICA, INFORMAÇÃO

Meu amigo Washington Novaes, uma das personalidades mais respeitadas mundialmente no campo do ambiente (prémio Unesco, em 2004), não fugiu ao tema “Copa do Mundo”e abriu o livro sobre a selecção brasileira, indo muito mais longe nas questões abordadas. Com um abraço daqui, e a devida vénia, a transcrição no saboroso brasileiro. (Um beijo também à Lisa França, que me fez chegar o texto).

Washington Novaes
Só alguns dias depois de eliminada a seleção brasileira de futebol da Copa do Mundo, de volta da Alemanha, um dos membros da comissão encarregada do preparo dos nossos jogadores disse aos jornais que era ruim o estado físico de vários deles, a começar por Ronaldo, e passando por Ronaldinho, Cafu, Roberto Carlos e até Kaká, “em fim de temporada, com o declínio se acentuando ao longo dos jogos”. Mas, segundo ele, “a comissão técnica preferiu não divulgar essa informação”.
É curioso. Num assunto como esse, que mobiliza a talvez maior paixão de um país, umas poucas pessoas se sentem no direito de sonegar-lhe informações fundamentais e, depois, sequer se sentem obrigadas a dar qualquer explicação. Como se a sociedade não tivesse direitos nessa área. Como se não houvesse questões éticas – muitas e graves – envolvidas. Como se não houvesse satisfação nenhuma a dar a ninguém. É muito estranho e intrigante.
Desde a Copa de 1982 vem o autor destas linhas chamando a atenção, em artigos, para circunstâncias inquietantes em torno da competição. Naquele ano, diante de erros clamorosos de arbitragem, sempre favorecendo seleções favoritas e geradoras de maiores audiências de televisão, o título de um artigo publicado foi Não brinquem com a minha paixão. Interrogando – embora não houvesse quem respondesse – se os interesses comerciais de confederações e federações, aliadas a grandes anunciantes, não estariam influindo nos resultados e nas decisões.
A partir daí, as evidências só aumentaram. E culminaram na Copa de 1998, no episódio da escalação de Ronaldo, horas depois de haver sofrido grave convulsão, testemunhada por vários jogadores e confirmada por um instituto médico parisiense. Ainda assim, a comissão técnica o colocou em campo (depois de haver sido anunciada a substituição por Edmundo), diante de seus colegas perplexos. E o resultado foi o que se viu, com o Ronaldo e todo o time apalermados dentro de campo. Chegou-se a levantar suspeita explícita de que a escalação de Ronaldo houvesse sido imposição da empresa patrocinadora da seleção (e do próprio jogador). Mas não houve nenhuma explicação convincente, nenhuma investigação mais aprofundada sobre o episódio.
Em novo artigo, desta vez no jornal O Estado de S. Paulo, este escriba perguntou: e onde ficam os sindicatos de jogadores e técnicos? Onde ficam as instituições da classe médica, o Conselho Federal de Medicina, quando um atleta é autorizado por um médico a entrar em campo poucas horas depois de sofrer uma convulsão? E nada tem a dizer o Congresso Nacional, diante de um episódio que diz respeito aos direitos da sociedade, mobilizada por sua grande paixão? De novo, nada foi feito, nada se investigou.
Em abril deste ano, motivado entre outros fatos pela morte em campo do zagueiro Serginho, do São Caetano, realizou-se o 1º Fórum Nacional de Ética em Medicina Esportiva. E ali o ex-jogador Dunga, capitão da seleção em 1998, disse que “o Ronaldo só jogou porque o médico se omitiu”. Segundo ele, “tem muito médico que sofre pressão para fazer o atleta se recuperar logo de uma lesão” (O Estado de S. Paulo, 20/4/2006). Mais uma vez, ninguém piou. Silêncio tumular.
Agora, depois de vários momentos estranhos na Copa (inclusive com arbitragens que ora favoreciam o Brasil, a Itália e outros “grandes”, ora desfavoreciam “pequenos” como Austrália e Portugal), vem essa explicação de um preparador físico sobre o mau estado de muitos jogadores, a decisão de nada informar a respeito. E já se caminha para novo silêncio.
Então, cabe perguntar: onde fica o planejamento nacional para o torneio mais importante se não leva em conta em que estado físico se apresentarão os jogadores? Quem define calendários e com que participação dos dirigentes brasileiros? Quem decidiu nada informar sobre o mau estado físico e a situação caricatural de Ronaldo, que se tornou o alvo da zombaria nacional? É verdade que ele só foi escalado, apesar da péssima forma física, por exigência da patrocinadora do torneio, da confederação internacional e da brasileira, até da fabricante da bola do jogo? Se era ruim o estado físico, por que não foram escalados jogadores em melhor situação, como pareceu evidente a todo mundo que isso é que deveria ter sido feito? De novo houve exigências de patrocinadores? E que têm a dizer os sindicatos de atletas e técnicos, as instituições médicas e outras envolvidas na questão?
O fato de tratar-se de jogo de futebol não muda a questão – a não ser para agravá-la. Ela envolve – é preciso repetir – uma paixão nacional, que merece todo o respeito e ética rigorosa. A sociedade tem o direito de saber tudo, de ser informada de tudo – antes, durante a competição e depois. Nada pode sobrepor-se a esse direito, nada pode eliminá-lo. E a sociedade fica à espera de que seus representantes – no Congresso e nas instituições, pois é isso que são – cumpram sua obrigação e digam o que aconteceu e está acontecendo. Se há responsabilidades e de quem. Como se vai cobrá-las.
Afinal, a maior paixão nacional não pode ser regulada apenas por interesses de anunciantes. Está no centro de tudo o direito da sociedade à informação – fundamental, porque influencia todo o exercício da cidadania, seja em que área for.

in “O Popular” (Goiânia, Brasil)

1 comentário:

Anónimo disse...

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