segunda-feira, novembro 29, 2010

LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - humorista?

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ASSALTO

- Alô? Quem tá falando?
- Aqui é o ladrão.
- Desculpe, a telefonista deve ter-se enganado, eu não queria falar com o dono do banco. Tem algum funcionário aí?
- Não, os funcionários tá tudo refém.
- Ah, eu entendo. Afinal, eles trabalham catorze horas por dia, ganham um salário ridículo, vivem levando esporro, mas não pedem demissão porque não encontram emprego, né? Vida difícil... Mas será que eu não poderia dar uma palavrinha com um deles?
- Impossível. Eles tá tudo amordaçado.
- Foi o que pensei. Gestão moderna, né? Se fizerem qualquer crítica, vão pró olho da rua. Não haverá, então, algum chefe por aí?
- Claro que não mermão. Quanta inguinorânça! O chefe tá na cadeia, que é o lugar mais seguro pra se comandar o assalto!
- Bom... Sabe o que é? Eu tenho uma conta...
- Tamo levando tudo, ô bacana. O saldo da tua conta é zero!
- Não, isso eu já sabia. Eu sou professor! O que eu queria mesmo era uma informação sobre juro.
- Companheiro, eu sou um ladrão pé-de-chinelo. Meu negócio é pequeno. Assalto a banco, vez ou outra um sequestro...
Pra saber de juro é melhor tu ligá pra Brasília.
- Sei, sei. O senhor tá na informalidade, né? Também, com o preço que tão cobrando por um voto hoje em dia...  Mas, será que não podia fazer um favor pra mim? É que atrasei o pagamento do cartão e queria saber quanto vou pagar de taxa.
- Tá pensando que eu tô brincando? Isto é um assalto!
- Longe de mim pensar que o senhor está na brincadeira! Que é um assalto eu sei perfeitamente; ninguém no mundo cobra os juros que cobram no Brasil. Mas queria saber o número preciso: seis por cento, sete por cento?
- Eu acho que tu não tá entendendo, ô mané. Sou assaltante. Trabalho na base da intimidação e da chantagem, saca?
- Ah, já tava esperando. Você vai querer vender um seguro de vida ou um título de capitalização, né?
- Não... Já falei... Eu sou... Peraí bacana... Hoje eu tô bonzinho e vou quebrar teu galho.

(... um minuto depois)

- Alô? O sujeito aqui tá dizendo que é oito por cento ao mês.
- Puxa, que incrível !
- Incríve por quê? Tu achava que era menos?
- Não, achava que era mais ou menos isso mesmo. Tô impressionado é que, pela primeira vez na vida, eu consegui obter uma informação de uma empresa prestadora de serviço pelo telefone, em menos de meia hora, e sem ouvir 'Pour Elise'.
- Quer saber? Fui com a tua cara. Acabei de dar umas bordoadas no gerente e ele falou que vai te dar desconto. Só vai te cobrar quatro por cento, tá ligado?
- Não acredito! E eu não ter que comprar nenhum produto do banco?
- Nadica de nada, já tá tudo acertado!
- Muito obrigado, meu senhor. Nunca fui tratado desta...

(de repente, ouvem-se tiros e gritos)

- Ih, sujou! Puliça!
- Polícia? Que polícia? Alô? Alô?

(sinal de ocupado...)

- Droga! Maldito Estado: quando o negócio começa a funcionar, entra o Governo e estraga tudo!

Luís Fernando Veríssimo
( humorista brasileiro )

sábado, novembro 27, 2010

JOSÉ RAPOSO CONVIDA


O cineasta é o convidado de mais uma tertúlia do Centro Cultural do Cartaxo, dinamizada por José Raposo

Lauro António é o convidado de José Raposo para vir ao bar do Centro Cultural do Cartaxo (CCC) no dia 28 de Novembro, a partir das 21h30, para mais uma tertúlia da autoria que promete ser bem recheada de histórias e memórias.
O realizador de “Manhã Submersa” está neste momento a celebrar, simultaneamente com o 30º aniversário desta sua obra, os 50 anos de carreira como crítico, cineasta, professor de cinema, director de festivais e autor de uma vasta obra escrita.
São 50 anos de uma vida dedicada à paixão pelo cinema que têm muito que contar. Neste último domingo do mês, será a vez de Lauro António passar para o outro lado da câmara e de ser José Raposo a anunciar "luzes, câmara, acção!".
Esta é a terceira edição da rubrica do CCC “José Raposo Convida”, que já trouxe ao Cartaxo António Montez e João Baião.
in Noticias do Ribatejo @ Seg, 22/11/10
Ver AQUI programação do Centro Cultural do Cartaxo

quarta-feira, novembro 24, 2010

LANÇAMENTO DE LIVRO NA BOOK HOUSE

TEMAS DE CINEMA:
GRIFFITH, WELLES E KUBRICK


Paula Amaro, da DinaLivros, José Duarte, da Faculdadde de Letras da Universidade Clássica, e Lauro António, durante a sessão de lançamnto do livro, na Book House, do Dolce Vita, no Saldanha. Agradável fim de tarde, a falar de livros e cinema, numa sala cheia de amigos (quem nós lê, por definição, é um amigo. Enfim, gostamos de pensar que assim seja). (fotos MEC)

terça-feira, novembro 23, 2010

TEATRO NO POLITEAMA

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SÍTIO DO PICAPAU AMARELO
“Sítio do Picapau Amarelo” é uma criação literária de um escritor brasileiro, que deixou obra entre finais do século XIX e a primeira metade do seguinte: José Bento Renato Monteiro Lobato (nascido em Taubaté, a 18 de Abril de 1882, faleceu em São Paulo, a 4 de Julho de 1948, no Brasil), mais conhecido simplesmente por Monteiro Lobato. Tradutor prestigiado, escritor de romances (“O Presidente Negro”), crónicas, artigos, e até de um ensaio sobre o petróleo, acabaria por ser celebrizado pela sua vasta contribuição no campo da literatura infantil, onde sobressai precisamente “O Picapau Amarelo” (1939), além de outras como “Reinações de Narizinho” (1931) ou “Caçadas de Pedrinho” (1933) etc. O primeiro livro da série foi publicado em Dezembro de 1920, criando desde logo um grupo de personagens que ficaria na memória de quem os lia e impondo um clima de magia contagiante, que por vezes roçava o surrealismo.



As personagens principais moravam, ou passavam grande parte do seu tempo, no “sítio” (que no Brasil quer dizer a quinta, a casa) que pertencia a Dona Benta, baptizado com o nome de “Picapau Amarelo”, donde o título da série. As aventuras passavam-se, pois, em redor desse “Sítio do PicaPau Amarelo”, onde vive Dona Benta com a sua neta, Narizinho, uma menina de nariz empertigado que adora a sua boneca de trapos, Emília. Um dia, por artes de berliques e berloques, mais pós de perlimpimpim, esta começa a falar e ganha vida! Existem ainda muitas outras personagens, como Pedrinho, um menino, primo de Narizinho, que mora na cidade, o Marquês de Rabicó, o Conselheiro, Quindim, o Visconde de Sabugosa, a Tia Nastácia, que cozinha deliciosas guloseimas, o Tio Barnabé, a velhaca Cuca, e o diabinho Saci, etc.

O principal inspirador de Monteiro Lobato foi outro conhecido escritor brasileiro de literatura infantil, Figueiredo Pimentel (autor do também muito popular "Contos da Carochinha").

O sucesso desta série de livros infantis cedo interessou a televisão. A primeira adaptação foi exibida a partir de 3 de Junho de 1952 até 1962, na TV Tupi, 360 episódios gravados ao vivo, no programa “Teatro Escola de São Paulo”, criado por Júlio Gouveia e Tatiana Belinky. A história escolhida para inaugurar o programa foi “A Pílula Falante”, um dos capítulos do livro “Reinações de Narizinho”. O programa durou dez anos e foi um grande sucesso do canal. Com episódios de 45 minutos cada, começava cada um deles com o actor Júlio Gouveia a abrir um livro para contar uma história e terminava com o intérprete dando por completa a leitura e fechando o livro. No elenco, Lúcia Lambertini era Emília, António Silvio Lefèvre e depois David José foram Pedrinho, Lidia Rozenberg e depois Edy Cerri interpretavam a Narizinho, Rubens Molino foi o Visconde de Sabugosa, Sydneia Rossi a Dona Benta e Benedita Rodrigues a Tia Nastácia. Em Setembro de 1957, a série estreou na TV Tupi do Rio de Janeiro e passou a ser dirigida por Mauricio Sherman. Lúcia Lambertini continuou a ser Emília. O elenco: André José Adler (Pedrinho), Leny Vieira (Narizinho), Iná Malaguti (Dona Benta), Zeni Pereira (Tia Nastácia), Elísio de Albuquerque (Visconde) e Daniel Filho (Dr. Caramujo).

Em 1964, a actriz e directora Lúcia Lambertini mudou-se com a série para a TV Cultura de São Paulo. Manteve-se no ar durante seis meses, sem repetir o sucesso alcançado na TV Tupi. Os mesmos actores da versão da TV Tupi continuaram a “ser” Emília, Narizinho e Pedrinho. O Visconde era interpretado por Roberto Orosco, Dona Benta por Leonor Pacheco e Tia Nastácia por Isaura Bruno.

A gesta televisiva continuou: em 12 de Dezembro de 1967, Júlio Gouveia e Tatiana Belinky ressuscitaram o “Sítio” na TV, num novo canal, a TV Bandeirantes. A série tinha agora cenários naturais de um “sítio” autêntico e abria com um tema musical da autoria de Salatiel Coelho. Em vez de ser emitida em directo, ao vivo, passou a ser gravada e depois reproduzida, dando maior segurança e conforto aos actores. Cada episódio tinha 30 minutos e a série permaneceu no ar por dois anos, até 1969. Os actores começaram a ser substituídos por outros, Zodja Pereira assumiu o papel de Emília, Silvinha Lanes foi a Narizinho e Ewerton de Castro o Visconde de Sabugosa.
A versão mais conhecida e exportada para o mundo todo, foi a da TV Globo, iniciada 7 de Março de 1977 e prolongada até 31 de Janeiro de 1986. Foi vista e revista em Portugal e deixou boa recordação. A banda sonora era da responsabilidade de Dori Caymmi e formada por temas essencialmente brasileiros, inspirando-se na mitologia e no folclore locais. Destacava-se igualmente o tema de abertura composto por Gilberto Gil, "Sítio do Picapau Amarelo".
A TV Globo criou um estúdio especial para a gravação do programa, na Barra de Guaratiba, onde existia um “sítio”, com casa, curral e jardins de Burle Marx, onde eram gravados os exteriores e muitas cenas de interiores (sala e cozinha da casa de Dona Benta, por exemplo). As outras gravações (biblioteca, quartos, gruta da Cuca, Reino das Águas Claras etc.) eram gravadas nos estúdios da Cinédia. Nesta versão, as personagens criaram grande empatia com o seu público-alvo, mercê da qualidade do seu elenco: Zilka Salaberry (Dona Benta), Dirce Migliaccio (Emília), Jacyra Sampaio (Tia Nastácia), Rosana Garcia (Narizinho), Júlio César Vieira (Pedrinho), André Valli (Visconde de Sabugosa), Samuel Santos (Tio Barnabé), Dorinha Duval (Cuca), Romeu Evaristo (Saci), Ary Coslov (Jabuti), Germano Filho (Elias Turco), Jaime Barcellos (Coronel Teodorico), Tonico Pereira (Zé Carneiro), Canarinho (Malazarte ou Garnizé) entre outros. (1)

Esta foi a versão de maior sucesso, muito embora outra surgisse em 2001, depois da rede Golbo ter assinado um novo contrato com os herdeiros de Monteiro Lobato, para produzir um novo conjunto de episódios que teria a duração de dez anos. Começou a ir para o ar no dia 12 de Outubro de 2001, na TV Globinho, mas rapidamente passou para a programação da Globo. A primeira temporada durou até final do ano de 2002, adaptando as histórias de Monteiro Lobato, mas depois começaram a ser criadas novas aventuras idealizadas especialmente para a televisão, mantendo o espírito de Monteiro Lobato.

Nesta versão, a boneca Emília foi interpretada por uma criança, a actriz Isabelle Drummond. Acrescente-se que esta foi a primeira vez que tal aconteceu na televisão, mas não a primeira vez que Emília foi interpretada por uma "actriz criança", pois anteriormente, numa adaptação para cinema, datada de 1951, e realizada por Rodolfo Nanni, também fora uma menina chamada Olga Maria quem interpretara o papel de Emília, num filme ainda a preto e branco, intitulado “O Saci”, baseada no livro "O Saci" de Monteiro Lobato. Com estas excepções, a boneca Emília fora sempre interpretada por actrizes adultas.

Curiosidades a ter em conta: o efeito mágico do "Pó de Perlimpimpim", na versão de 1977, tinha sido transformado numa "palavra mágica" para evitar comparações com a cocaína. Os moradores do “Sítio” apenas podiam gritar: "Perlim Pim Pim" para viajarem no espaço. Nos livros de Monteiro Lobato, o Pó de Perlimpimpim era aspirado pelo nariz pelas personagens, enquanto na versão de 2001, passou a ser lançado sobre as cabeças dos personagens, numa alteração que o aparentou com o "Pó Mágico" da Sininho, na história "Peter Pan" de J.M. Barrie. Outra questão que criara problemas com a censura nos anos 70, era o facto da Emília alterar ou pronunciar erradamente algumas palavras, como "Bissurdo", "Arimética", ou "Obóvio". No século XXI isso passou a ser permitido.

Mas a história do “Sítio” na televisão não ficaria por aqui. Em 2009, o canal Futura resolveu voltar a transmitir a versão de 2001, e exibiu um “especial de Natal”, em Dezembro. Já em 2010, o canal Viva tem apresentado episódios do “Sítio” de manhã e à tarde.

É também em Novembro de 2010 que o “Sítio do Picapau Amarelo” chega aos palcos portugueses, pela mão de Filipe La Féria, que assina a encenação, os cenários e figurinos, e ainda a adaptação e condensação numa única acção de várias histórias de Monteiro Lobato, no que contou com a colaboração de Helena Rocha.

A história não se conta, vive da surpresa e da invenção das personagens que elegem a imaginação como o seu mundo preferido. Dona Benta é como sempre uma velha senhora que vive no seu “Sítio do Picapau Amarelo”, com a sua cozinheira negra, Tia Nastácia, que delicia os habitantes da casa com os seus pitéus, e a sua neta, Lúcia, mais conhecida como Narizinho Empinado. A “Narizinho” é uma miúda solitária, que resolve a questão da companhia criando um mundo muito seu, de fantasia e espanto. A sua boneca de trapos, Emília, “cozinhada” pela Tia Nastácia (que também irá inventar o Visconde Sabugosa, a partir de uma espiga de milho), é a sua principal companheira de folguedos. O Tio Barnabé, que trata da quinta, Pedrinho, o primo da cidade, o sentencioso Visconde de Milho, Saci Pereré, o diabo de uma perna só, retirado do folclore brasileiro, a famigerada Cuca, uma bruxa que inferniza quem a rodeia, a sereia Iara, e ainda caranguejos, sapos, sardinhas, tartarugas e demais companheiros de quadros escoltam as figuras centrais e dão consistência à história que vive sobretudo do seu elogio à imaginação e à magia de existir e de saber retirar da vida o seu melhor.

Com um elenco muito correcto e afinado (isto é: delirante!), de que fazem parte Cátia Garcia, Sissi Martins, Ruben Madureira, André Lacerda, Bruna Andrade, Filipe Albuquerque, Cláudia Soares, Carla Janeiro, Rosa Areia e Tiago Isidro, Filipe La Féria constrói um espectáculo ao seu jeito, repleto de luz e cor, um ritmo vivaz, uma alegria transbordante e uma moralidade irrepreensível para estes dias cinzentos que se atravessam.

Falando ainda dos actores, justo será realçar o trabalho de Cátia Garcia, nesta altura certamente a princesa dos espectáculos infantis, depois de ter sido protagonista de “A Estrela”, “Alice no País das Maravilhas” e “O Feiticeiro de Oz”, sempre com redobrado talento e entrega, e que aqui brilha na boneca de trapos. Cátia Garcia, pela sua silhueta e pela delicadeza que empresta às personagens, ajusta-se muito bem a este tipo de papel, ainda que já tenha assumido outros de cariz diverso, como em “West Side Story”. Outras duas referências justas vão para Sissi Martins, a Narizinho, também muito bem, e para a truculenta Bruna Andrade que nos oferece uma deliciosa Cuca.

A inspirada partitura musical, com alguns temas de Gilberto Gil e Caetano Veloso, foi recreada por Mário Rui, deixando entrever influências muito certeiras de diversos musicais inesquecíveis. A coreografia de Inna Lisniak, os adereços de Miguel Quina, a iluminação de João Fontes e a sonoplastia de Ricardo Ceitil ajudam à festa, que teve como assistente de encenação Frederico Corado. O “Sítio do Picapau Amarelo” fica assim como um espectáculo a não perder, quer para quem já conhecia a onda quer para quem se vai recrear com ela pela primeira vez. Uma boa e sadia onda de bem disposta magia.  

(1) Este elenco manteve-se durante um ano, mas depois foi sofrendo algumas alterações: Reny de Oliveira substituiu Dirce Migliaccio em Janeiro de 1978 e ficou até Dezembro de 1982. Ainda em 1978, a actriz Stela Freitas passou a interpretar a Cuca e Francisco Nagen o de Elias Turco. Em 1980, Rosana Garcia e Júlio César também abandonaram o programa, pois deixaram de ser crianças e transitaram para o clã dos adultos. Foram substituídos por Daniele Rodrigues (que passou a chamar-se Daniela) e Marcelo Patelli (na série Marcelo José). Por essa altura também Cuca mudou de actriz: Catarina Abdalla foi Cuca de 1981 até o final do programa. Muitos outros actores passaram pelo “Sítio”, em papéis de convidados, para participações fortuitas, como Gabriela Alves (Anjinho da Asa Quebrada), Zezé Macedo (Dona Carochinha), Dário Reis (Capitão Gancho), Mírian Rios (Branca de Neve), Mário Cardoso (Príncipe da Branca de Neve, 1978, Rapunzel, 1981, a Fera, de A Bela e a Fera, 1982), Lúcia Alves (Ariadne), Gracindo Júnior (Teseu), Lucinha Lins (Rapunzel), Bia Lessa (Cuquinha, Dona Benta, transformada em adolescente, e Ordélia), Maitê Proença (Bela), Cláudio Correia e Castro (Gepeto), Daniel Filho (Tom Mix), Cininha de Paula (tia da Bela Adormecida e Morfélia, irmã da Ordélia) ou José de Abreu (Barba Azul).

quarta-feira, novembro 17, 2010

CONVITE PARA LANÇAMENTO DE LIVRO

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Dia 23 de Novembro, pelas 18,00, na Livraria Book House, no Dolce Vita Monumental, no Saldanha, em Lisboa, apresentação do livro sobre Griffith, Welles e Kubrick. Então todos convidados. Apareçam.  

sexta-feira, novembro 12, 2010

"O SENHOR DO ADEUS" ESCREVIA SOBRE CINEMA

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Descobri há pouco que o "Senhor João de Lisboa" escrevia todas as semanas sobre cinema. Eles e uns amigos, Filipe Melo e Tiago Carvalho, iam todos os domingos ao cinema e depois ele escrevia um texto sobre o filme que aparecia no blogue "O Senhor do Adeus" (João Manuel Serra) (ver AQUI).
No blogue pode ler-se a explicação do facto:
"O Senhor do Adeus - Rubrica de Cinema
Todos os Domingos, pelas 20.30, no cinema El Corte Inglês, João Manuel Serra (o famoso "Senhor do Adeus") vai ao cinema com Filipe Melo e com Tiago Carvalho. Este Blog serve para documentar as opiniões e observações de João Serra sobre os filmes e sobre a vida. Os comentários deixados no blog durante a semana serão lidos ao João Serra no Domingo seguinte."

O último texto foi sobre "Social Network" e acabava com votos de Feliz Natal. Aqui fica como homenagem ao "colega", que também gostava muito de cinema.

FILME: Social Network
REALIZADOR: David Fincher
Começo por acenar para os meus simpáticos leitores, que têm lido as minhas críticas - e fico muito feliz por saber que são muitas as pessoas que me dizem que gostam de as ler. Vou falar de um filme que achei interessante porque é sobre o célebre Facebook, que eu até há pouco não sabia que existia. E ainda por cima já existe há muitos anos.
Veio uma pessoa muito simpática no Saldanha dizer-me que eu estava no Facebook. Eu fiquei de boca aberta. Perguntei: o que é isso? Ele respondeu que é uma coisa da internet e que houve muita gente que formou um clube de fãs meu no Facebook. Eu fiquei admirado e satisfeito. Mas sei que qualquer pessoa pode aparecer no Facebook - mas puseram-me lá - eu fiquei contente e fiquei com muita curiosidade para saber como é que era feito.
Achei interessante sobre esse aspecto, saber como foi construído. É um negócio do outro mundo. Esta minha ideia de não ligar à economia é muito portuguesa. Esse lado do filme não me interessou tanto, porque, tal como eu, os portugueses não são pessoas muito inclinadas para a economia e tenho pena que não haja em Portugal cabeças como as desta gente, que têm uma visão para negócios impressionante. O Bill Gates, este Mark não-sei-quê, que fazem biliões! Em Portugal, não há negociantes destes. A nossa economia está de rastos! Só oiço os ministros e os secretários de estado a dizer que é preciso exportar, mas Portugal está muito mal. Precisamos de dinheiro.
Achei o filme muito bom, interessante apesar de ser um bocado monótono nalguns aspectos. Achei bem feito e bem interpretado, e interessou-me o processo de feitura do Facebook. É incrível como um míudo faz um negócio destes. Aconselho que venham todos ver este filme.
Boa noite para todos e até à próxima... e ainda é cedo, mas desejo um feliz Natal a todos e estejam todos muito felizes.

O ADEUS AO SENHOR DO ADEUS

“Senhor João de Lisboa”

Há loucuras mansas que colocam poesia na cidade. São loucuras que não se podem perder, loucuras a que todos devíamos aderir. Loucuras que trazem à Humanidade mais humanidade. Gestos que podem parecer insensatos, sem qualificação possível, “inúteis” para muitos, indispensáveis para outros. Ao Senhor “João de Lisboa” disse-lhe adeus várias vezes ao passar de carro pelo Saldanha. Enfarpelado a rigor, ele dizia adeus, eu dizia-lhe adeus, éramos dois loucos na cidade, quando a cidade tende a tornar-se cada vez mais agressiva e impessoal (apesar de Lisboa continuar a ser uma cidade muito fraterna e acolhedora, é verdade!). Durante muitos anos, um gesto fazia a diferença, e com ele um homem construiu uma vida (a sua vida) e deu um brilho, um sorriso, um alento a quem por ele passava. O adeus do senhor João de Lisboa era uma forma de sentirmos que a cidade estava ali a saudar-nos, que havia alguém que não se esquecia da sua humanidade e a partilhava num gesto fraterno. Loucura? Sim, para quem não compreende que possam existir gestos “inúteis”, que afinal são esses gestos que fazem toda a diferença, que nos ensinam a ser homens entre os homens.
Diz-se por aí que se houver continuadores, já não será a mesma coisa, que se perdeu a espontaneidade do gesto. Acho que não. Acho que gostaria de ver muitos outros “Senhores de Lisboa” a acenar no Saldanha. Não seria copiar um gesto, seria prolongar uma atitude, aprender com o “Senhor João de Lisboa” que estar no meio da rua a acenar aos passantes pode ser algo de reconfortante. Julgo mesmo que o desaparecimento do “Senhor João de Lisboa” deveria dar origem a um movimento de anónimos lisboetas (ou não) que se revezariam no Saldanha a acenar ao próximo, e a recordar-lhes que essa loucura mansa na cidade não pode morrer. Apenas mudar de mão. Por mim, não me importaria de ser um desses que durante um dia prestaria homenagem a esse homem que disse agora adeus à cidade. Passando o testemunho.


As imagens deste último extracto pertencem a um videoclip gravado pelo meu filho Frederico Corado, há uns anos atrás. Bonita homenagem ao senhor "João de Lisboa" que acenava no Saldanha, a forma que ele encontrou "de comunicar com as pessoas".

quarta-feira, novembro 10, 2010

MAIS LEITURAS

  
 
II. Diversas




Leituras muito diversificadas nestes últimos meses, apesar do já atrás referido predomínio republicano que as comemorações impuseram (e a febre editorial acompanhou). Como estávamos no campo da História Política, não quero deixar de recomendar um ensaio brilhante (mais um que devia ser obrigatório nas escolas, sobretudo se se quer educar para a cidadania): “À Porta Fechada” (Estaline, os Nazis e o Ocidente), de Laurence Rees (ed. D. Quixote) é um relato estarrecedor sobre os tempos da II Guerra Mundial e a divisão do mundo que lhe é posterior. Extremamente bem documentado, com referências indiscutíveis a factos que nos obrigam a corar de vergonha pela desumanidade de quem os projectou e concretizou friamente, este volume não deixa ninguém indiferente (ou deixará?). Tudo se passou há setenta anos, mais coisa menos coisa, no coração da Europa. Como é possível?


Ainda História e ainda biografia, uma fabulosa “Clarice Lispector, uma Vida”, de Benjamin Moser (ed. Civilização). Como admirador incondicional da escritora, ucraniana de nascimento e brasileira pela palavra, esta aventura de uma existência amargurada é uma narração invulgarmente brilhante do percurso de uma personalidade que se afirmou como um dos nomes maiores da literatura mundial do século XX. Combinando a biografia com a análise literária da obra de Clarice Lispector, este é outro texto indispensável.
Benjamin Moser, nascido em 1976, nos EUA, vive na Holanda. Apaixonou-se por Clarice Lispector quando a descobriu ao estudar português (também aprendeu chinês e fala uma quantidade de línguas que nos faz inveja). Escreve bem, com inteligência e clareza, e a sua obra é magnífica.


Brilhante ainda é a selecção de textos de George Steiner, aparecidos no “The New Yorker”, e recolhidos num volume há pouco traduzido para português pela Gradiva. Esta antologia, organizada por Robert Boyers, é exemplificativa do pensamento de Steiner, um dos mais sedutores pensadores da actualidade, que aqui escreve, com desenvoltura e profundidade, sobre literatura, política, história, questões sociais, etc. A leitura é fulgurante e acompanha-se com o fascínio de quem assiste a um lúcido e penetrante exercício de inteligência e perspicácia.


Passando para um campo completamente diferente, cito três romances que me deixaram absolutamente subjugado. “O Seminarista”, do brasileiro Ruben Fonseca (ed. Sextante), começa assim: “Sou conhecido como o Especialista, contratado para serviços específicos. O Despachante diz quem é o freguês, me dá as coordenadas e eu faço o serviço.”
O “Especialista” andou num seminário, e agora é matador profissional. Cita amiudadas vezes clássicos em latim, e o seu ofício é para se executar com brio. Apenas isso. Sem remorso, nem prazer. A escrita é nervosa, muito dialogada, carregada de um humor negro que desarma. “O Seminarista” demonstra a maestria literária de quem redige esta sombria novela que nos restitui um retrato sórdido de uma certa sociedade. Ou da sociedade actual. Ou somente da condição humana?


Brilhante é “Milagrário Pessoal”, de José Eduardo Agualusa (ed. D. Quixote). “As Mulheres de Meu Pai” e “Barroco Tropical” já me tinham deixado rendido à escrita deste invulgar autor da lusofonia. “Milagrário Pessoal” confirma tudo o que vinha de trás e abre caminhos para o futuro. Ao ler Agualusa o que primeiro sinto é o prazer e o orgulho de pertencer a esta lusofonia que permite tal engenho, que viaja de Portugal para o Brasil ou para África, falando a mesma língua, passando por terras e gente que por acaso conheço algumas, e cujas recordações sinto tão vivas e fortes nesta poética digressão em busca de novos vocábulos da língua portuguesa. Um velho anarquista angolano e uma jovem linguista portuguesa vivem paixões e desvendam milagres linguísticos. “Os milagres acontecem a cada segundo. Os melhores costumam ser discretos. Os maiores são secretos.” Absolutamente a não perder.


Descobri há poucos anos Sandor Márai, húngaro que se exilou nos EUA e se suicidou em finais dos anos 80, ignorado do grande público, depois ter sido proscrito e censurado na sua terra natal, pela ditadura comunista que assim procurava calar um dos mais importantes escritores do século XX da Europa Central. Descobri-o com “A Herança de Eszter”, apaixonei-me com “As Velas Ardem até ao Fim”, fiquei empolgado com “A Mulher Certa”, depois continuei com “Os Rebeldes”, e agora manteve-se todo o encanto com “Divórcio em Buda”, uma sensível e discreta descrição da vida quotidiana em Budapeste, decorrem os anos 30 do século passado, e o protagonista, um recto e respeitável juiz de contenciosos familiares, se sente dividido entre passado e presente, entre a Peste da margem esquerda do Danúbio e a Buda que se abre ao futuro na outra margem. Entre a aristocracia em decadência e a burguesia em ascensão, entre duas guerras, entre a tradição e a modernidade, entre o amor e a morte. Excelente no seu desenho miniaturista, atento ao pormenor e ao mais secreto. (ed. D. Quixote).


Já aqui falei da releitura de “Mistérios de Lisboa”, de Camilo Castelo Branco (é sempre saudável regressar aos clássicos!). A nova edição da “Relógio d’Água” é boa e vem enriquecida com um magnífico prefácio de Raoul Ruiz. Vale a pena.


O “policial” é um género que não perco de vista. Não considero um “policial” literatura menor, muito pelo contrário. Alguns dos maiores passaram por lá e presentemente parece que não há romance que não tenho um crime pelo meio. Mas o “policial” assumidamente “policial”, que descende de Poe e Conan Doyle, por vezes revela-nos autores muito interessantes. Quando descubro um bom romance que traz uma autoria que até aí desconhecia, é um prazer enorme devorar toda a restante obra. Foi o que aconteceu com Donna Leon, americana por nascimento (Montclair, New Jersey, 28 de Setembro de 1942), mas que vive em Itália há mais de 20 anos, e que escreveu já uma série de policiais que têm como protagonista o inspector Guido Brunetti e a cidade de Veneza como cenário privilegiado. Os romances são muito interessantes, “familiares”, Brunetti sonha com os cozinhados da mulher, apoquenta-se com o que possa acontecer aos filhos, não suporta o superior hierárquico, vive obcecado pela honradez, numa sociedade de corruptos que praticam crimes mesquinhos, e nem sempre os culpados acabam punidos. A sensação é que “não vale sequer a pena”.

Dela li “Morte no Teatro La Fenice”, “Assassínio na Academia”, “Morte num Pais Estranho” (todos ed. Planeta) e ainda “Acqua Alta” e “Amigos Influentes” (ed. Presença). Todos a valerem a pena. Quanto mais se penetra na intimidade deste universo, mais vontade temos de o acompanhar. Soube que há uma série televisiva, alemã, que já conta com 17 telefilmes, desde 2000 até 2010. Chama-se "Donna Leon" (2000), começou por ser realizada por Christian von Castelberg (2 episódios, em 2000) e tem sido continuada por Sigi Rothemund (15 episódios, entre 2002 e 2010). Os romances são muito mediterrânicos, vêm na tradição de um George Simenon ou de uma Agatha Christie, mais dedutivos que truculentos, não sei se um olhar alemão capta o espírito, mas estou curioso.

Muito diferente é o estilo de Craig Russell, mais vigoroso e impetuoso. Escocês, foi polícia e publicitário antes de se dedicar à escrita, criando um detective afeito à investigação de crimes de uma violência invulgar. O cenário é sempre a nocturna cidade alemã de Hamburgo, povoada por “serial killers” e neo-nazis, cruzados com o submundo da droga e da prostituição. “Águia de Sangue”, “Irmão Grimm” e “Eterno” são os volumes traduzidos para português e editados pela Betrand. Lêem-se de um fôlego e são exemplarmente conduzidos em termos de “suspense”, o que levou o “The Times” a considerar o autor “o mestre do thriller”. Já existe igualmente um teledramático retirado de uma obra sua, “Wolfsfährte”, com direcção de Urs Egger (2010). As referências não são as melhores, infelizmente, pois creio que cada um destes romances daria um excelente “thriller” cinematográfico. Os ingredientes estão todos lá. A saga Jason Bourne seria um bom exemplo.

















segunda-feira, novembro 08, 2010

LEITURAS

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I. Leituras Republicanas

Muitas leituras nos últimos tempos, povoando de sobrecarregadas montanhas de volumes o espaço vulgarmente designado por “livros de cabeceira”. A “cabeceira” é coisa que já não existe, e os livros mal deixam espaço para alcançar a cama. Por outro lado, já nem sei há quanto tempo não dou conta aqui do que vou lendo. Acho, no entanto, que vale a pena referir aqui algumas leituras, ainda que de forma necessariamente sucinta.

Andei numa de descobrir a “República”, passados 100 anos, sem que depois de tantas leituras tenha ficado mais entusiasmado com a nossa “primeira” República. Creio cada vez mais que foi ela que abriu caminho à ditadura de Salazar, o que não se pode dizer que tenha sido fraca herança. Esperemos que a nossa actual República se porte melhor (mas cuidado!, os tempos são outros e as ditaduras não são as mesmas!).
Gostei de ler obras de várias orientações e com diversas perspectivas. Nunca se fica com uma imagem completa quando se lêem ou se ouvem apenas as razões de um dos lados. Assim, muito boa e bem documentada é a “História da Primeira República Portuguesa”, com coordenação de Fernando Rosas e Maria Fernanda Rollo (de que existem duas edições, ambas da “Tinta da China”). Trabalho que reúne especialistas vários, abordando aspectos diferentes, sempre numa visão republicana e de esquerda actual.

Apreciei bastante “o relato do 5 de Outubro visto pelos monárquicos em 1910”, “Diário dos Vencidos”, de Joaquim Leitão, escritor e jornalista que, com elegância de estilo e um notável e vigoroso sentido da reportagem, foi recolhendo testemunhos que reuniu em livro. (ed. Alétheia)
Curioso, mas deixando algumas dúvidas no espírito, é “O Relato Secreto da Implantação da República feita pelos Maçons e Carbonários”, com organização e prefácio de Costa Pimentel (de quem já havia lido um muito discutível livro em que se procurava demonstrar que Salazar era maçon). Apresenta documentos importantes, mas as conclusões são, no mínimo, incertas. (Ed. Guerra e Paz).

Fernando Catroga editou (na”Casa das Letras”) um texto importante, “O Republicanismo em Portugal, da formação ao 5 de Outubro de 1910”, dando particular atenção a alguns temas essenciais na formação do pensamento republicano, como liberdade, livre pensamento, maçonaria, igreja, mulher, moral, poder, ciência, educação e patriotismo. Proveitosa leitura.
“Como se faz um Povo”, com coordenação de José Neves, acompanhou a exposição “Povo”, reunindo testemunhos diversificados sobre o que é ser “povo”, e sobretudo o que é ser “povo” em Portugal. Para se perceber a identidade que somos ou julgamos ser. (ed. “Tinta da China”).

Muito interessante ainda é “A Crise da República e a Ditadura Militar”, de Luís Bigotte Chorão (Ed. Sextante), que devia ser de leitura obrigatória para quem tanto fala da actual crise. A História não se repete, porque as circunstâncias históricas e a ambiência social se modificam, mas, mas… há tantos aspectos semelhantes!
Depois é sempre um prazer ler o catastrofista Vasco Pulido Valente, que mostra uma inteligência e desapego ao politicamente correcto que deslumbra. Ele arrasa “A Velha Republica” em 130 páginas que não deixam pedra sobre pedra. A acutilância crítica do seu pensamento é fascinante. E perturbadora.
Obra de consulta indispensável é “Lisboa Revolucionária (1908-1975)”, de Fernando Rosas, muito ilustrada e inspiradora, igualmente em duas edições da “Tinta da China”, e vou esquecendo pelo meio algumas outras por onde passei apenas os olhos. Além de alguns excelentes catálogos de várias exposições que se puderam visitar em Lisboa e no Porto.

Mas ficaria mal não referir “Afonso Costa”, de Filipe Ribeiro de Meneses, o historiador português que dá aulas na Universidade Nacional da Irlanda, e que abanou os alicerces da historiografia portuguesa contemporânea com uma monumental biografia de Salazar. O livro sobre Afonso Costa é um volume muito mais pequeno, mas creio ser obra particularmente pertinente para se compreender o homem e o seu tempo. Afonso Costa é uma personalidade particularmente polémica que desperta ódios e paixões invulgares, ainda hoje, tantos anos depois da sua morte. Creio que o olhar de Filipe Ribeiro de Meneses não deixará ninguém indiferente e impõe-se pela seriedade da pesquisa.

Aproveito a deixa para referir igualmente o seu retrato de “Salazar”, cerca de oitocentas páginas de análise e revelações de aspectos da personalidade e da obra do ditador que governou com mão pesada Portugal durante mais de 40 anos. A obra é escrita de forma clara e elegante, que se acompanha com prazer, ostenta o olhar de um historiador de formação anglo-saxónica, que se documenta de forma exaustiva, afastado das paixões políticas que fervilham ainda cá por dentro, e mostra a qualidade do trabalho de alguém que consegue analisar melhor ao longe defeitos e virtudes de um homem que marcou para sempre a história do nosso país em pleno século XX. Há quem diga que é a biografia definitiva. Não sei se será, mas de certeza que passará a ser obra de referência primordial.
(as leituras continuam)

domingo, novembro 07, 2010

NO CENTRO CULTURAL DO CARTAXO, DIA 28

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"Lauro António vai estar em mais uma tertúlia da autoria de José Raposo, que promete ser bem recheada de histórias e memórias. Afinal, o realizador de “Manhã Submersa” está neste momento a celebrar, simultaneamente com o 30º aniversário desta sua obra, os 50 anos de carreira como crítico, cineasta, professor de cinema, director de festivais e autor de uma vasta obra escrita. 50 anos de uma vida dedicada à paixão pelo cinema têm muito que contar! Desta vez será a vez de Lauro António passar para o outro lado da câmara e de ser José Raposo a anunciar "luzes, câmara, acção!".
Domingo, 28 Novembro, 21.30h, Conversas . M/6 . Entrada Livre – Bar
In “Noticias do Ribatejo”

CINEMA: A REDE SOCIAL

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A REDE SOCIAL


“A Rede Social” é um filme desconcentrante. Palavroso, vivendo sobretudo de um diálogo compacto e denso que não dá tréguas ao espectador, dir-se-ia não ser objecto destes tempos, e cinematograficamente uma obra “impura”, no mínimo. Poder-se-á tomar como um filme de argumentista-escritor, tanto mais que quem assina o argumento é o reputado Aaron Sorkin, o criador da série "The West Wing" (Os Homens do Presidente), além de argumentista de filmes como “Uma Questão de Honra” (1992), “Uma Noite com o Presidente” (1995), “Má Fé” (1993) ou “Jogos de Poder” (2007), entre outros. Acrescente-se ainda que parte de um livro de grande sucesso, “The Accidental Billionaires", de Ben Mezrich. Quem diria que o cineasta de “Seven” ou de “Clube de Combate” se iria adaptar a uma tal “encomenda” (o argumento foi-lhe proposto e ele aceitou-o sem hesitar, apenas impondo duas questões prévias, que o mesmo fosse rodado nos locais certos e com os nomes oficiais, ou seja “Facebook” é Facebook”, Harvard é Harvard, etc.). Acontece que apesar de alguns acharem que este é um filme de Fincher com pouco de Fincher, pelo contrário encontro-o um dos mais “finchereano”, se tomarmos “Fight Club” como um dos exemplos típicos da sua temática própria de autor.
David Fincher é um dos bons retratistas da realidade social contemporânea e um crítico contundente dessa realidade, marcada pela competição levada ao extremo, pela violência do comportamento individual marginalizado, pela aspereza de uma solidão que invade as almas e as empurra para a patologia de uma conduta associal. Ele é também o retratista do “self made man”, o chamado “sonho americano”, de finais do século XX e inícios do actual. Não nos fala de “cowboys” à conquista de novas fronteiras, com o seu halo de heróis românticos, mas de “serial killers” ou de combatentes de ruas.
Ora que faz ele em “A Rede Social” senão abordar as mesmas personagens e os mesmos conflitos, apenas lhes modificando o cenário e o meio de se exprimirem? Que é “The Social Network” senão um novo “Clube de Combate” mas agora com protagonistas que combatem com palavras? Por isso o filme é palavroso, por isso ele reflecte tão bem o “meio” que procura retratar, por isso ele tão justificadamente “fala” ao público a que se destina. Neste “Fight Club” não se esgrime com murros, mas com palavras e com processos jurídicos. Nada é físico, tudo é virtual. Tal como grande parte da realidade que nos cerca, tal como as operações bancárias fictícias que conduziram à grande crise por que passa o mundo. As riquezas hoje são abstractas, não assentam em minas de ouro ou fábricas que produzem automóveis ou tecidos e calçado. Hoje é-se milionário porque se reúnem 500 milhões de aderentes que trocam mensagens no éter. Ou porque se especula na bolsa com títulos que nada representam de concreto. Tudo voga ao sabor da gritaria das bolsas, e dos imperativos financeiros de uns trapaceiros que dizem que a economia está de boa ou de má saúde conforme lhes interessa, para fazer subir ou descer o seu lucro próprio. “A Rede Social” é, por isso, um grande filme sobre este nosso mundo tão confuso para a grande maioria que se deixa levar por essa onda de palavras que não remetem para nada de palpável, apenas para a avidez de um rendimento desmedido conseguido com base na especulação fiduciária.
“The Social Network” é ficção mas parte de factos concretos e os nomes de pessoas e lugares não estão escondidos atrás de hipotéticos subterfúgios. Fala do que aponta. De Mark Zuckerberg, o jovem universitário que detém a maior rede social do mundo, que estudava em Harvard e não pertencia aos restritos clubes dos alunos endinheirados, que era tímido com as mulheres e um ser algo associal, um “nerd” lhe chamam em inglês. Um dia zanga-se com a namorada e regressa ao quarto resolvido a vingar-se: escreve no seu blogue o que lhe apetece sobre a miúda em questão e depois assalta os arquivos informáticos da universidade, para copiar as fotografias das alunas e elaborar um concurso para saber quais são as mais apetecíveis. Claro que causa furor e enfurece a instituição, mas descobre assim o caminho para socializar na internet com base num “clube privado”, onde só entra quem é convidado. Chama-lhe “TheFacebook”, é convidado pelos irmãos Winklevoss para desenvolver o projecto, opta por pedir apoio ao seu único amigo, Eduardo Saverin, mas acabará por deixar uns e outro pelo caminho, à medida que sobem os números astronómicos dos aderentes a esta rede social. Será mesmo um outro milionário da rede, Sean Parker, o homem que criou o “Napster” e popularizou o “downlaod” pirata da música, sendo por isso condenado, quem o irá trazer para Silicon Valley, e retirar-lhe os últimos vestígios de decência competitiva. No final do filme, Mark Zuckerberg é o mais jovem multimilionário de sempre, mas está isolado numa vasta sala, agarrado a um portátil, qual tio patinhas da tecnologia moderna. Drama da solidão moderna? É melhor não entrar por aí, romantizando a figura do self made man que constrói um império, mas fica isolado do mundo. Esse poderia ser o caso do Cidadão Kane, mas não é necessariamente o que acontece com Zuckerberg, nem com os milhões que têm acesso à sua rede. O que está em causa não é o “Facebook” mas como o “Facebook” nasceu, e que aqui funciona como símbolo de uma sociedade sem outros valores que não seja o lucro fácil. Quem é que acredita que um milionário esteja sozinho sem ser por vontade deliberada?
O que David Fincher nos pretende dizer, aliás de forma muito transparente, sem criar vilões exemplares, é que em Harvard se ensina a competir sem cartel (“strug for life”), e que a competição presentemente é tão radical e desumana que ninguém olha a meios para triunfar. Os que assim fazem são olhados como malfeitores? Não, são seguidos histericamente por quem quer aprender a lição com eles ou por quem quer participar na festança, ou então por rapariguinhas assombradas pelo sucesso e que tudo fazem para se sentarem na mesa (ou deitarem-se na cama) desses “triunfadores” natos. São homens maduros a quem as lições da vida ensinaram o cinismo? Não, são jovens a quem homens maduros ensinaram as lições da vida e do cinismo. Sobretudo do pouco valor da virtude e dos princípios.
Por isso o filme nos fala dos clubes onde os menos favorecidos pela linhagem não podem entrar e depois nos mostra como no ringue da verborreia ganham os que melhor lutam pela contagem dos cifrões. Neste filme não há homens maus, todos se apresentam bem em sociedade, e todos correm atrás do mesmo. Mark Zuckerberg? Sim, mas também os irmãos Winklevoss, Eduardo Saverin, Sean Parker, etc. O que faz correr Sammy continua a ser o lucro ou a perda. Nada mais.
Para lá da excelente construção do filme, que mais se aproxima de um combate de boxe palavroso de que um filme de ideias, apesar de ser uma obra de ideias sob a forma de combate de boxe, servida por uma montagem galvanizante, “A Rede Social” conta ainda com uma fotografia excelente, na recriação de ambientes, e uma partitura musical magnífica. Depois há que referir, este sim um verdadeiro milagre americano, um elenco de jovens quase desconhecidos que impõe uma galeria de personagens inesquecíveis. E aí temos um grande candidato aos Oscars que se aproximam.
Quanto ao “Facebook”, ele veio para transformar o mundo da comunicação, que nunca mais será o mesmo depois dele. Tanto assim é que será lá que vou colocar este comentário. À atenção de Mark Zuckerberg.
 
A REDE SOCIAL
Título original: The Social Network
Realização: David Fincher (EUA, 2010); Argumento: Aaron Sorkin, segundo obra de Ben Mezrich ("The Accidental Billionaires"); Produção: Dana Brunetti, Ceán Chaffin, Michael De Luca, Scott Rudin, Aaron Sorkin, Kevin Spacey; Música: Trent Reznor, Atticus Ross; Fotografia (cor): Jeff Cronenweth; Montagem: Kirk Baxter, Angus Wall; Casting: Laray Mayfield; Design de produção: Donald Graham Burt; Direcção artística: Curt Beech, Keith P. Cunningham, Robyn Paiba; Decoração: Victor J. Zolfo; Maquilhagem: Felicity Bowring, Linda D. Flowers; Guarda-roupa: Virginia Johnson; Direcção de Produção: John David Gunkle, Marc A. Hammer, Carey Len Smith; Assistentes de realização: Scott Kirkley, Allen Kupetsky, Greg Tynan, Bob Wagner, Pete Waterman; Departamento de arte: Theodore Sharps, Randall D. Wilkins, Jane Wuu; Som: Ren Klyce; Efeitos especiais: Robert Cole, Steve Cremin; Efeitos visuais: Elizabeth Asai, Madalina Bland, Steve McLafferty; Companhias de produção: Columbia Pictures, Relativity Media, Michael De Luca Productions, Scott Rudin Productions, Trigger Street Productions; Intérpretes: Jesse Eisenberg (Mark Zuckerberg), Andrew Garfield (Eduardo Saverin), Brenda Song (Christy Lee), Justin Timberlake (Sean Parker), Rooney Mara (Erica Albright), Armie Hammer (Cameron Winklevoss/Tyler Winklevoss), Max Minghella (Divya Narendra), Rashida Jones (Marylin Delpy), Joseph Mazzello (Dustin Moskovitz), Dustin Fitzsimons (Presidente do Phoenix Club), Patrick Mapel (Chris Hughes), Douglas Urbanski (Larry Summers), Wallace Langham (Peter Thiel), Dakota Johnson (Amelia Ritter), Malese Jow (Alice Cantwel), Denise Grayson (Gretchen), Trevor Wright (Josh Thompson), John Getz (Sy), Shelby Young (K.C.), Bryan Barter (Billy Olsen), Calvin Dean, Aria Noelle Curzon, Barry Livingston, Marybeth Massett, Rashida Jones, Henry Roosevelt, Max Minghella, David Selby, Steve Sires, Abhi Sinha, Mark Saul, Cedric Sanders, Inger Tudor, Aaron Sorkin (executivo), Mariah Bonner, Emma Fitzpatrick, Jeffrey Thomas Border, Courtney Arndt, Felisha Terrell, James Shanklin, Alex Reznik, John Hayden, Oliver Muirhead, etc. Duração: 121 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 4 de Novembro de 2010.

quinta-feira, novembro 04, 2010

CINEMA: MISTÉRIOS DE LISBOA

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  MISTÉRIOS DE LISBOA
Camilo Castelo Branco é uma das glórias literárias de Portugal. Escritor do século XIX, prolífero, de obra diversificada e vastíssima, foi dos raros casos em Portugal a conseguir viver, explicava ele que mal, apenas do que escrevia. E escreveu de tudo, traduziu e compilou, adaptou e improvisou, deixou romances e novelas, contos e poesias, narrativas e prosas diversas, folhetins e teatro e muitos artigos variados. Romântico, místico, exilado na província (na sua bela casa de São Miguel de Seide, onde partilhou o amor que o levou ao adultério e ao cárcere), mas não escondendo a vaidade de possuir um título nobiliário, assinou obras-primas de fervorosa paixão e intenso fulgor sentimental, como o sempre citado “Amor de Perdição”, cujo título só por si é um programa, e já justificou várias adaptações ao cinema e à televisão, em Portugal e no estrangeiro. A escrita alvoroçada de Camilo brota com uma claridade e um arrojo formal que ainda hoje entusiasmam os seus leitores, mesmo os menos arrebatados pela sua imagética redentora e a inquieta tormenta passional. Em Portugal, Manoel de Oliveira tem–se aproximado com rigor e precisão deste universo tumultuoso, de “funestos amores” e trágicos destinos, com o qual mantém muito curiosas afinidades.
Coube agora a vez ao chileno Raoul Ruiz, que Paulo Branco adoptou há vários anos, estabelecer encontro com Camilo, tendo para o efeito escolhido o mais obvio para este realizador que principiou a sua carreira no cinema colaborando em telenovelas e folhetins televisivos no país natal. Nada melhor que “Os Mistérios de Lisboa”, uma obra inicialmente publicada em folhetins no jornal do Porto “O Nacional” (entre o número 52, de 4 de Março de 1853, até ao número 25, de 31 de Janeiro de 1855), mais tarde editada em volume, ou melhor em três volumes, que reuniam um indescritível enredo de peripécias diversas, todas elas rodando à volta de um jovem, de nome supostamente João, que mais tarde se sabe ser Pedro, aparentemente filho de pais incógnitos, mas a quem finalmente aparece uma mãe redentora. Sabe-se igualmente que poucos anos depois, Ernesto Biester adaptou o romance para teatro, a que chamou “A Penitência”, tendo a peça sido estreada no palco do D. Maria II.
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco (nascido em Lisboa, a 16 de Março de 1825, falecido em São Miguel de Seide, a 1 de Junho de 1890) encontrava-se por essa altura no dealbar da sua carreira literária, já com alguns pontos ganhos (como “Anátema”, de 1851), mas ainda oscilando entre a poesia, o teatro, a novela, o romance e o jornalismo. Espírito inquieto e irrequieto, polemista brilhante, amante fogoso, casado e descasado, pai de filhos que ia deixando pelo caminho, até arrimar a Seide, foi este Camilo impetuoso que se abeirou de uma obra que, em muitos aspectos, também recorda o tom e o estilo de Victor Hugo e os seus “Miseráveis” (que todavia só irá aparecer dez anos depois, 1862, mas que contém o espírito do tempo).
Na época, estes “Mistérios” eram frequentes na literatura de várias nacionalidades. Herdeiros do “teatro de cordel” ou dos folhetins que se vendiam na rua, de porta em porta, tiveram em Eugène Sue (Paris, 20 de Janeiro de 1804 - Annecy, 3 de Agosto de 1857), escritor francês, um dos seus mais celebrados cultores (autor, entre outros, de “Les Mystères de Paris” ou “Le Juif Errant”).
“Les Mystères de Paris” iriam mesmo influenciar muitos outros autores pelo mundo fora, não só Camilo em Portugal, mas também Eça de Queirós, que, em parceria com Ramalho Ortigão, nos deu “O Mistério da Estrada de Sintra”, outro folhetim, este publicado no “Diário de Notícias”, em forma de cartas anónimas, alguns anos mais tarde, entre 24 de Julho e 27 de Setembro de 1870, aparecendo a primeira versão em livro somente em 1884.
Também aqui a disputa Camilo-Eça não deixou de dar os seus frutos, sendo que os “Mistérios” do primeiro são mais genealógicos e passionais, enquanto os dos segundos progridem mais no terreno do policial. Um mais romântico, os outros mais realistas. Diga-se ainda que estes “Mistérios” iriam passar ao cinema sob diversas formas, desde os “serials” norte-americanos, como “As Aventuras de Pauline”, até às rocambolescas séries “Fantômas” (1913), “Les Vampires” (1915) e “Judex” (1916), do francês Louis Feuillade, um dos cineastas mais interessantes desta época do cinema mudo.
Com mais de cento e dez filmes contabilizados na sua filmografia (o que também o aproxima de Camilo, até em termos quantitativos: Camilo escreveu para cima de duzentas obras, entre originais e traduções, e etc.), Raoul Ruiz é um cineasta irregular, capaz do muito bom e do menos interessante, que tem percorrido o mundo, desde que se estreou na realização, no seu Chile natal, com uma curta-metragem chamada "La Maleta" (1963). Aí permaneceu até 1974 ("La Expropriación"), deixando obra de sublinhar, como "Três Tristes Tigres" (1968), antes de se exilar em França, após o golpe de Pinochet. Um dos seus títulos mais justamente citados é "L''Hypothèse du Tableau Volé" (1979). No seu exílio europeu rodou em vários países, entre os quais, por diversas vezes, Portugal, onde dirigiu "O Território" (1981), "Treasure Island" (1985), "Les Trois Couronnes du Matelot" (1983), "A Cidade dos Piratas (1983), "Fado, Majeur et Mineur" (1994), "Três Vidas e uma Só Morte" (1996) e "Genealogias de um Crime" (1997), se não nos faltou nenhum. Regressa agora com o apoio da mestria de Camilo.
Os seus derradeiros filmes são desequilibrados ("Combate de Amor em Sonho", "Klimt", "O Tempo Reencontrado"), mas com "Mistérios de Lisboa" acerta na “mouche”. O filme é um belíssimo fresco de quatro horas e meia, que se vê sem enfado, contando com algumas felicíssimas contribuições, a começar desde logo pelo trabalho de Carlos Saboga na adaptação do romance ao cinema, mantendo-se fiel ao essencial da emaranhada história, mas procurando construir uma linha de progressão dramática que clarificasse o cruzar de narrativas e a confluência de peripécias. O que não era tarefa fácil.


Depois temos que sublinhar a magnificência dos cenários naturais, quase todos rondando a região de Sintra (alguns dos quais bem conheço, pois por lá rodei muito da “Manhã Submersa”), e que permitem um clima romântico de grande intensidade. Curiosamente os “Mistérios” são de Lisboa, mas Raoul Ruiz consegue convencer-nos que estamos muitas vezes na capital, sem nos mostrar ruas ou avenidas, apenas quintas e jardins. O efeito é, todavia, bem conseguido e o resultado final, ao nível do ambiente, é excelente, quer em exteriores, como em interiores (o palácio de Seteais é, por exemplo, mais uma vez, muito bem aproveitado). Fotografia, montagem, música, direcção artística só merecem saudações especiais, mas é no domínio da representação que temos o prato forte destes “Mistérios”, com uma não só competente, mas inspirada, interpretação global de um elenco onde quase ninguém destoa e onde alguns sobressaem a muito nível. Particularizando, Adriano Luz é brilhante, Maria João Bastos excelente, Ricardo Pereira muito bem, dividido entre dois papéis muito diferentes, mas unidos num ramo comum, Léa Seydoux deslumbrante, entre muitos outros igualmente dignos de referência. Na verdade estamos na presença de um magnífico trabalho de actores, que é certamente valorizado pela segura direcção, mas igualmente pela matéria-prima de que os mesmos são feitos.

A obra de Camilo parte de um artifício bastas vezes utilizado em literatura: às mãos do escritor chega, via correio endereçado do Brasil, da parte de um “cordial amigo, F”, as memórias autobiográficas de alguém que se confessa e que leva Camilo a afirmar “não ser um romance: é um diário de sofrimentos, verídico, autêntico e justificado.”

Segundo Alexandre Cabral, no seu “Dicionário de Camilo Castelo Branco”, “Os Mistérios de Lisboa”, “produto de uma imaginação truculenta e incontrolável”, narram “Os enredos - múltiplos e diversificados - entrelaçam-se no conjunto dos três volumes, sendo os seus protagonistas personagens estranhas que têm em comum a faculdade exótica de mudarem de nome com a mesma facilidade como quem muda de camisa. Assim, Pedro da Silva, conhecido por João, chamar-se-á também Álvaro de Oliveira; o "Come-Facas" usava os seguintes pseudónimos: Barba-Roixa, Leopoldo Saavedra, Tobias Navarro e Alberto Magalhães, e Sebastião de Melo faz-se passar pelo padre Dinis Ramalho e Sousa e duque de Cliton. Por outro lado, a vastidão do mundo (Portugal, França, Bélgica, Inglaterra, África, Japão e Brasil) é o cenário onde se desenrolam os conflitos ficcionais, marcados por vectores que perdurarão na novelística camiliana: a vingança, o anátema, o amor de mãe, a passionalidade, que se confunde com a ganância, a perversidade e a santidade. De permeio, indícios vários de reminiscências biográficas do autor.”

Nesta obra “em que os pecadores podem ascender à virtude e a virtude se conquista através de sofrimentos e lágrimas”, a personagem central é João (aliás Pedro), órfão de 14 anos quando a narrativa do filme se inicia, e que vai descobrindo, no decorrer da vida, a sua identidade e as trágicas histórias em que se enredam familiares e tutores, como esse paciente e diligente padre Dinis ou o estranho e dúbio Alberto Magalhães, passando por dezenas de outras personagens (que o filme reduz ao essencial) cujo destino com o seu se cruzam. O clima é, pois, pesado, denso, carregado de ameaças, mas igualmente redentor, não havendo o que se possa considerar personagens intrinsecamente más, mas seres a que o destino vai dando segundas oportunidades para se resgatarem. Esta perspectiva cristã que era timbre de Camilo, é assumida por inteiro por Raoul Ruiz que, no excelente prefácio que antecede a recente edição da obra (ed. “Relógio d’ Água”), faz uma judiciosa análise do romance donde parte o seu filme, desenvolvendo curiosos paralelismos entre o folhetim novecentista e a actual telenovela. Na verdade, a construção da telenovela, tal como a conhecemos hoje, não é mais do que o prolongamento até à exaustão das regras do folhetim do século XIX, que aceitava como acção central um determinado bloco dramatúrgico e o ia conjugando com novas acções, paralelas ou transversais, que criavam a teia conflituosa que sustentava toda a obra, lhe dava consistência e a permitia desenvolver-se quase “ad infinitum”. A diferença está na facilidade com que hoje se constroem essas intrigas, e na qualidade temática e estilística com que eram executados os melhores folhetins de outrora. Pelo menos, aqueles que perduraram na memória literária. O mesmo se passa em relação à obra de Ruiz. O ponto-chave da possível querela não está na estrutura folhetinesca e melodramática que assume deliberadamente, mas na forma como a mesma é transposta para o ecrã, com um rigor plástico e uma contenção de estilo invulgares. De uma construção folhetinesca pode resultar uma obra de arte de altíssimo valor, ou uma rotineira produção que enche chouriços para passar o tempo, quando não mesmo uma pimbalhada desprezível. Camilo, e agora Raoul Ruiz, optaram pelo caminho mais difícil, que nem por isso deixa de ser popular: basta recordar o êxito que os folhetins tiveram nos leitores de então, ou o próprio sucesso mundial desta obra de quatro horas e meia, que tem recebido encómios por onde tem passado. Falando da duração do filme, cumpre ainda informar que, em simultâneo com a sua rodagem, se produziu uma série televisiva com seis episódios e outras tantas horas, que irá ser emitida proximamente pela RTP (e por outros canais internacionais – em França já esta anunciada). Série que contará com desenvolvimentos não previstos no filme (e com algumas cenas a menos, como por exemplo a excelente na cela museu de recordações do Padre Dinis).


MISTÉRIOS DE LISBOA
Título original: Mistérios de Lisboa ou Misteres de Lisbon ou Mysteries of Lisbon
Realização: Raoul Ruiz (Portugal, França, Brasil, 2010); Argumento: Carlos Saboga, segundo romance homónimo de Camilo Castelo Branco; Produção: Paulo Branco; Música: Jorge Arriagada; Fotografia (cor): André Szankowski; Montagem: Ruy Diaz, Carlos Madaleno, Valeria Sarmiento; Casting: Patrícia Vasconcelos; Direcção artística: Isabel Branco; Decoração: Paula Szabo; Guarda-roupa: Tania Franco; Direcção de Produção: João Matos, Ana Pinhão; Assistentes de realização: Emídio Miguel, João Pinhão, José Maria Vaz da Silva; Som: Ricardo Leal, Vladan Nedeljkov, António Pedro Figueiredo, Tiago Romão, Aleksandra Stojanovic; Companhias de produção: Clap Filmes; Intérpretes: Adriano Luz (Padre Dinis / Sabino Cabra / Sebastião de Melo), Léa Seydoux (Branca de Montfort), Melvil Poupaud (Ernesto Lacroze), Ricardo Pereira (Alberto de Magalhães / Come-Facas), Clotilde Hesme (Elisa de Montfort), José Afonso Pimentel (Pedro da Silva Adulto), Catarina Wallenstein (Condessa de Arosa), Maria João Bastos (Ângela de Lima), Lena Friedrich (Moçoila), Filipe Vargas (D. Paulo de Albuquerque), Malik Zidi (Visconde Armagnac), Joana Pinhão Botelho (Criadita), Albano Jerónimo (Conde de Santa Bárbara), Carloto Cotta (D. Álvaro de Albuquerque), Margarida Vila-Nova (Marquesa de Alfarela), Miguel Monteiro (Médico da Hospedaria), Marco D'Almeida (Conde de Viso), Joana de Verona (Eugénia), São José Correia (Anacleta dos Remédios), Luciano Neves (Burglar), João Baptista (D. Pedro da Silva), Sofia Aparício (Condessa de Penacova), Ana das Chagas (Deolinda), João Villas-Boas (Criado), Ricardo Aibéo (Cavalheiro), João Arrais (Pedro da Silva Criança), Maria João Pinho (Condessa de Vizo), Cleia Almeida (Francisca), Julien Alluguette (Benoit), Rui Neto (Azarias), Afonso Lagarto (Guarda), Rui Morrison (Marquês de Montezelos), António Fonseca (Moisés Pereira), Paulo Pinto (D. Martinho de Almeida), Marcello Urgeghe (Médico Veneziano), João Ricardo (D. Teotónio de Mascarenhas), Sofia Marques, Dinarte Branco (Diletante), Martin Loizillon (Padre Dinis Jovem), Nuno Távora (Diletante), Helena Coelho (Marquesa de St. Eulália), Duarte Guimarães (Escrivão), Beatriz Leonardo (Dona Antónia), Carlos António (Pescador), Martim Barbeiro (Filho do enforcado), Bruno Ambrósio (Miúdo Líder Escola), Sofia Leite (Prelada), Ana Sofia Campos (Maria Amália), António Simão (Pescador), Raquel Dias (Adelaide), Martinho Silva (José Salema), José Manuel Mendes (Frei Baltazar da Encarnação), Vânia Rodrigues (Dona Antónia), Pedro Carmo (1º Cavalheiro), Américo Silva (Meirinho do Tribunal), José Airosa (Bernardo), Leonor Figueiredo (Emília do Coreto), Dinis Gomes (Joaquim), André Gomes (Barão de Sá), etc. Duração: 272 minutos; Distribuição em Portugal: Clap - Produção de Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal 21 de Outubro de 2010; Locais de filmagem: Sintra, Portugal.