segunda-feira, setembro 30, 2013

AS ELEIÇÕES AUTÁRQUCAS

AS VOTAÇÕES DE ONTEM:
LEITURA DE RESULTADOS
O PSD perdeu. Derrota estrondosa, em muitas frentes. Ganhou ou aguentou-se nalguns concelhos mercê de personalidades e perdeu noutros, de forma catastrófica, por demérito vergonhoso da sua actual direcção nacional que escolheu mal os candidatos (Gaia, Sintra, Porto, etc.). Claro que Passos Coelhos não retira lição nenhuma dos factos. Ele não sabe retirar lições de nada. Já se sabia. Mas o PSD teve uma clara vitória. Chama-se Rui Rio. Fica como capital de esperança, num partido que oferece poucas.
O PS ganhou, mas não ganhou o que devia, tendo no governo do País quem lá está. Ganhou em Lisboa de forma categórica, mas o mérito é todo de António Costa, e António José Seguro passa por entre os pingos da chuva sem se molhar, é certo. O País mais moderado votou no PS contra o governo. O PS mais radical votou PCP contra o governo. O País real não votou BE, porque o achou dispensável. Deviam-se retirar ilações de tudo isto.
O PCP ganhou. Reforçou-se autarquicamente a sul do Tejo. Reforçou o seu voto de protesto, que vai sair para as ruas com mais fragor.
No meio da confusão geral, o CDS ganhou algumas câmaras e Paulo Portas pode respirar de alívio. Afinal a “sua” crise não terá corrido mal de todo para o partido.
Rui Moreira é outro dos grandes vencedores desta noite eleitoral. Mostrou que os independentes que não são contra os partidos, mas que se colocam à margem do actual estado de alguns partidos, têm toda a razão para existirem. Venceu em grande no Porto, numa campanha que reuniu à sua volta gente de todas as cores.
Os independentes e os “independentes” dissidentes estão de parabéns. Estes movimentos de cidadania só podem ser bem-vindos. São um cartão amarelo aos partidos que bem precisam deles, assim como a democracia precisa de bons partidos. Saudáveis.
Já nos “dinossauros” aconteceu o que eu previa. Os que tinham obra positiva atrás de si ganharam, os outros perderam. Eu julgo que a lei dos três mandatos é uma inutilidade sem sentido. Não impede a corrupção, impede apenas alguns bons profissionais de continuarem a sua obra. Não é preciso esta lei para nada. Basta haver uma boa e eficaz fiscalização e os prevaricadores serem efectivamente condenados.
Em Oeiras, Paulo Vistas ganhou e esta vitória tem algumas leituras curiosas. Não sou dos que acham que este resultado seja uma afronta à democracia. Afronta à democracia é Isaltino estar preso e andarem por aí à solta, com coleiras e sem coleiras, tantos outros que mereciam muito mais estar lá dentro. O voto de Oeiras também tem de ser interpretado como uma crítica neste sentido, tanto mais que a obra do antigo autarca é absolutamente notável no domínio do seu município.
A Madeira deixou de ser um “jardim”. O que mostra que em democracia há sempre forma de contornar os obstáculos. Os Açores passam a ser “rosa”, o que deve querer dizer também alguma coisa.
De resto há outras ilações a retirar desta votação. A maioridade política e democrática dos eleitores portugueses, que apesar de tudo, foram votar em grande número, premiando e punindo quem achavam que o merecia. A abstenção foi um pouco acima da média, mas “normal”, sobretudo tendo em conta os mortos que constam dos cadernos eleitorais e obviamente se abstiveram. Não houve desacatos significativos (uma ou duas urnas pelo ar até dão cor ao ambiente) e os cartões amarelos e vermelhos que havia que distribuir foram disseminados tranquilamente por quem de direito. Pelkos partidos, pela abstenção, pelos votos nulos (mais de 7%!).

Agora que vem aí o “orçamento” para 2014, é altura de mais um 15 de Setembro sem partidos nem fantochadas. Apenas uma manifestação nacional, não dirigida por forças sindicais ou partidárias encapotadas, sem palermices que lhe retirem força e significado. Uma “arruada” de pesado silêncio contra quem quer destruir a democracia, o estado social, a liberdade. Um novo levantar de olhos contra os que viveram, e continuam a viver, “acima das suas possibilidades”, às costas daqueles que o poder financeiro internacional disse estarem “a viver acima das suas possibilidades”. É conveniente que a tróica e os que são “mais do que a própria tróica” percebam que há muita gente, muita mesmo, farta de os ouvir e de os sentir na pele. 

sábado, setembro 28, 2013

PORTUGAL SUBMERSO

FERNANDO DACOSTA
Portugal submerso

Um dos grandes cineastas portugueses, que tem suspensa a sua carreira como a maior parte dos nossos melhores realizadores, foi esta semana alvo de uma assinalável homenagem em Setúbal. Promovida por João Pereira Bastos, director do (magnífico) Fórum Luísa Todi, naquela cidade, ele, Lauro António, viu juntarem-se à sua volta diversos nomes de projecção intelectual que lhe manifestaram, em noite de invulgar vibração, um pouco do reconhecimento que lhe é devido.
Para lá do cinema, ou seja, para lá dos inesquecíveis filmes seus - "Manhã Submersa" é-nos uma referência -, Lauro António destacou-se como crítico, dramaturgo, ensaísta, conferencista, escritor, produtor, professor, marcando como poucos várias áreas culturais e convivenciais do país.
Os seus "Vavadiando", no café Vává de Lisboa, são pérolas nas tertúlias que (ainda) restam, como o são os ciclos de divulgação cinematográfica e os festivais temáticos que desenvolve em incansável e preciosa acção cultural por quase toda a comunidade - sem que a SEC o tenha alguma vez percebido.
A literatura e o teatro têm-lhe sido, depois do cinema, motores de actuação, pelo que escritores, encenadores, actores, realizadores, jornalistas, críticos estiveram presentes na confraternização agora aberta, a que se associaram músicos, fadistas, técnicos, fotógrafos, etc.
Se a cultura serve, como dizia Jorge de Sena, para mostrar aos outros e a nós próprios que somos melhores do que os outros e nós próprios julgamos  ser, então todos estamos em dívida para com Lauro António - é que ele acredita, e faz-nos acreditar (pela cultura, pelo convivia, pelo afecto) que podemos ser melhores do que aquilo que somos.


                                In Jornal “I”, quinta-feira, 26 de Setembro de 2013




sábado, setembro 21, 2013

DIA 23 DE SETEMBRO: NO LUÍSA TODI, 21 HORAS



LUÍSA TODI HOMENAGEIA LAURO ANTÓNIO

No próximo dia 23 de Setembro, o Fórum Luísa Todi, em Setúbal, presta a Lauro António uma homenagem que tem vindo a ser preparada ainda no âmbito dos recentemente celebrados 30 anos de "Manhã Submersa" - o filme, segundo obra homónima de Vergílio Ferreira - marco incontornável na história do cinema português e, simultaneamente, dos 50 anos de carreira do realizador, crítico de cinema, ensaísta, dinamizador cultural, professor, director de festivais de cinema.
Um espectáculo sobre a vida e obra do crítico de cinema Lauro António realiza-se na segunda-feira à noite, no Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, com a presença do homenageado, no qual participam personalidades do mundo das artes. O espectáculo, com início às 21h00, o primeiro do ciclo “Luísa Todi homenageia…”, é coordenado por Frederico Corado.
Ao longo da noite são recordados momentos desde a infância à actualidade da vida de Lauro António, sem esquecer muitos pormenores que enriqueceram a vivência do homenageado, inclusivamente projectos que chegou a idealizar mas que nunca foram concretizados.
Amigos e colegas de profissão de Lauro António sobem ao palco do Fórum Luísa Todi para recordar momentos que passaram juntos. Maria do Céu Guerra, Lia Gama, João Perry, Vicente Alves do Ó, Manuel Neves, Jorge Silva Melo, Fernando Dacosta, Jorge Paixão da Costa, António Victorino d’Almeida e Duarte Victor são personalidades que vão recordar e partilhar memórias com Lauro António e o público.
O espectáculo inclui momentos musicais com Cátia Garcia, Pedro Galveias e Hugo Rendas, a colaboração de Alexandre Amendoeira e ainda a estreia da representação de “Um Monólogo do Rei Vitorioso”, escrito por Lauro António aos 19 anos e publicado na época em livro.
A noite termina com a exibição de “Manhã Submersa”, longa-metragem de 1980 realizada por Lauro António, que, além de crítico de cinema, foi igualmente realizador, encenador, ensaísta, professor e autor de programas de rádio e televisão.
Lauro António é o exemplo de uma vida de paixão pela 7ª arte. Como realizador, assinou, para além de “Manhã Submersa”, “O Vestido Cor de Fogo”, “Mãe Genoveva”, Paisagem Sem Barcos”, “A Bela e a Rosa”, “Casino Oceano”, “Vamos ao Nimas”, “Bonecos de Estremoz”, a série “A Paródia”, “Vergílio Ferreira numa Manhã Submersa”, “Prefácio a Vergílio Ferreira”, “Humberto Delgado: Obviamente, demito-o!”, entre outros.
Mas não só na realização a paixão pelo cinema tem dominado os 50 anos de actividade profissional de Lauro António. Sempre ao serviço da divulgação e amor pelo cinema de qualidade, o cineasta tem-se dedicado ao ensino universitário, foi programador de salas de cinema, director de festivais de cinema em Portugal e membro de inúmeros júris, internacionalmente. Teve o seu próprio programa na TVI, “Lauro António Apresenta…”, que continua a ser uma referência na programação televisiva em Portugal, para além de ser responsável por variadíssimas masterclasses sobre cinema.
Esta homenagem tem ainda o objectivo de lançar precisamente mais uma dessas actividades em prol da divulgação do cinema, que irá ter lugar, já no próximo mês de Outubro, nesta mesma sala que acolhe a homenagem, o Fórum Luisa Todi, em Setúbal, e cujo programa se encontra já disponível para divulgação.
Os bilhetes para o espectáculo custam três euros e podem ser adquiridos na bilheteira do Fórum Luísa Todi ou no site.
informação de imprensa, divulgada pelo Forum Luísa Todi.

CINEMA: BLUE JASMINE


BLUE JASMINE

Ao contrário de alguns, que acham que os filmes de Woody Allen rodados fora dos EUA são destituídos de interesse, com uma ou outra excepção, eu acho que quase todas as obras deste cineasta são particularmente interessantes, ainda que obviamente nem todas por igual. Mas concordo que Woody Allen se sente muito mais à vontade em Nova Iorque do que nas cidades europeias que o convidam a ir ali rodar um opus da sua filmografia. Woody Allen respira o ar de Nova Iorque, sobretudo o smog de Manhattan, e ali ele é de uma certeza quase infalível. “Blue Jasmine” marca o regresso de Woody Allen a casa, depois de andanças por Londres, Barcelona, Paris e Roma, e afirma-se desde logo como um dos melhores títulos da sua obra mais recente. Há mesmo um aspecto que me parece relevante e que por isso merece ser sublinhado. Neste seu último trabalho, Woody Allen toma-se mais a sério, ou pelo menos leva mais a sério personagens e situações, reflectindo não só questões pessoais, como ambientes sociais muito precisos. Ou seja: as personagens de “Blue Jasmine” continuam a ter os seus problemas pessoais muito concretos, amores e desamores, frustrações e esperanças, traumas e falta de dinheiro, grandes empregos ou trabalhos menores, grandes casas ou pequenos apartamentos, amantes de ocasião ou grandes amores, mas tudo isso se integra num tempo e espaço determinados, que lhe conferem um outro significado. Este é um filme do nosso tempo. Fala da América de 2012/13, mas também nos diz respeito a nós, europeus, mais precisamente, no nosso caso, portugueses. Todos estamos envolvidos no mesmo clima e nas mesmas circunstâncias políticas, económicas, sociais. Mais directamente: este é um filme que aborda personagens em crise, num tempo de crise.


Woody Allen já havia criado uma obra-prima a recriar o tempo da Grande Depressão, dos anos 30 do século XX, em “Rosa Púrpura do Cairo”. Digamos que este “Blue Jasmine” é o duplo, adaptado a estes anos que vivemos agora. Há questões que se sobrepõem entre as duas crises, há outras que se alteram consideravelmente. Em tudo, Woody Allen parece estar certo no seu diagnóstico.
Jeannette Francis (Cate Blanchett), que gosta mais de ser conhecida por “Jasmine”, porque dá mais estilo à mulher, foi casada com Harold "Hal" Francis (Alec Baldwin), levando uma vida de classe A-alta, sobretudo à custa das trafulhices financeiras do esposo, que é descoberto, e passam ambos rapidamente à penúria pelo arresto de bens desviados pelo Estado. Da 5ª Avenida de Nova Iorque, Jasmine é obrigada a mudar-se para um bairro económico de São Francisco, para o modesto apartamento da irmã por afinidade, Ginger (Sally Hawkins), que a recebe de braços abertos, na sua inocência e generosidade. Mas Jasmine vem muito traumatizada pela despromoção social, dificilmente aceita trabalhar num consultório de dentista, dificilmente se vê a dormir e habitar naquela casa apertada para as suas ambições, dificilmente aceita esta nova realidade em que caiu. Muitos comentadores falam de uma nova versão de Blanche Dubois, a protagonista de "Eléctrico Chamado Desejo", de Tennessee Williams, e há obviamente muitos pontos de contacto, sobretudo no comportamento de ambas, hipersensíveis à dolorosa realidade que as rodeia, roçando mesmo o quadro clínico da patologia.


Para lá deste magnífico enquadramento social que o realizador nos oferece de forma subtil e discreta, como quem nem sequer fala nisso, existem ainda personagens brilhantemente desenhadas por Woody Allen e magnificamente corporizadas por um elenco brilhante. Todos os actores são de primeira água, mas Cate Blanchett é aqui de um outro oceano. O seu trabalho é absolutamente espantoso, na forma quase imperceptível como nos vai oferecendo o desenvolver da sua figura, como vai discretamente acentuando certos tiques, como faz esbarrar a sua arrogância e altivez com o dramático do dia-a-dia em São Francisco. Como se empenha em arranjar um novo bom casamento que a salve do descalabro em que se precipitou, como inventa o impossível para tornar possível a sua megalomania. Mas, simultaneamente, vem ao de cima o lado humanista de Woody Allen que, não se furtando a apresentar o lado negro de Jasmine, não a deixa afundar-se num estereótipo de egoísmo e malvadez. Absolutamente fascinante é o termo. O que se estende a todo o filme, que voga numa toada de drama, entrecortada por sorrisos sóbrios que o tornam invulgarmente sugestivo. Tudo isto ao som de “Blue Moon”.
Não tenho muitas dúvidas em dizer que o Oscar de Melhor Actriz de 2013 está desde já atribuído, e “Blue Jasmine” é igualmente um sério candidato a muitas outras estatuetas.

BLUE JASMINE
Título original: Blue Jasmine

Realização: Woody Allen (EUA, 2013); Argumento: Woody Allen; Produção: Letty Aronson, Helen Robin, Jack Rollins, Leroy Schecter, Adam B. Stern, Stephen Tenenbaum, Edward Walson; Fotografia (cor): Javier Aguirresarobe; Montagem: Alisa Lepselter; Casting: Patricia Kerrigan DiCerto, Juliet Taylor; Design de produção: Santo Loquasto; Direcção artística: Michael E. Goldman, Doug Huszti; Decoração: Kris Boxell, Regina Graves; Guarda-roupa: Suzy Benzinger; Maquilhagem: Gretchen Davis, Yvette Rivas; Direcção de produção: Debbie Brubaker, Marcelo Gandola, Helen Robi; Assistentes de realização: Sarah Fairchild, Ted Leonard, John M. Morse, Danielle Rigby, Brad Robinson; Departamento de arte: David Hendrickson, Kelli Lundy, Joel Morgante; Som: Brian Copenhagen, Brendan Jamieson O'Brien, Adam Sanchez, Nelson Stoll, Thomas Varga, David Wahnon; Efeitos Visuais: Jake Braver; Companhia de produção: Perdido Productions; Intérpretes: Cate Blanchett (“Jasmine” Francis), Alec Baldwin (Harold "Hal" Francis), Bobby Cannavale (Chili), Louis C.K. (Al), Andrew Dice Clay (Augie), Sally Hawkins (Ginger), Peter Sarsgaard (Dwight Westlake), Michael Stuhlbarg (Dr. Flicker), Tammy Blanchard (Jane), Max Casella (Eddie), Alden Ehrenreich (Danny Francis), Joy Carlin, Richard Cont, Glen Caspillo, Charlie Tahan, Annie McNamara, Daniel Jenks, Max Rutherford, Kathy Tong, Ted Neustadt, Andrew Long, Lauren Allan, John Harrington Bland, Leslie Lyles, Glenn Fleshler, Brynn Thayer, Christopher Rubin, Emily Bergl, Barbara Garrick, Ali Fedotowsky, Dean Farwood, Conor Kellicut, Colin Thomson, Val Diamond, Joe Bellan, Catherine MacNeal, Irit Levi, Diane Amos, Shannon Finn, Tom Kemp, Emily Hsu, Maurice Sonnenberg, Martin Cantu, Daniel Hepner, Al Palagonia, etc. Duração: 98 minutos; Distribuição em Portugal: Pris Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal 12 de Setembro de 2013.

quarta-feira, setembro 11, 2013

VAVADIANDO COM FERNANDO TORDO


O Vavadiando regressa depois de férias, 
com um convidado muito especial, Fernando Tordo. 
Dia 27 de Setembro, pelas 20,00 horas. no Café-restaurante Vavá. 
Podem começar a reservar lugar. 

terça-feira, setembro 10, 2013

ANTÓNIO COSTA

ANTÓNIO COSTA PARA LISBOA
Hoje reuniu a Comissão de Honra de António Costa, candidato à reeleição para a presidência da Câmara Municipal de Lisboa.
Hoje estive no Páteo da Galé porque sim.
Porque o acho um homem honesto, um político que serve causas, alguém que olha de frente os problemas e, mais do que isso, que olha as pessoas. Como pessoas. António Costa é um rosto que admiro. Para que fique claro, nunca me deu um centavo. Voto António Costa por Lisboa, pelos lisboetas e por todos quantos nos visitam.

Por isso estive hoje no Páteo da Galé. Porque é tempo de dar a cara. 

CINEMA: VIAGEM A TÓQUIO



VIAGEM A TÓQUIO

Yasujirô Ozu é um dos maiores realizadores japoneses, colocando-se ao lado de Misoguchi e Kurosawa, e é igualmente um dos mais espantosos cineastas mundiais. Em quase todas as listas dos 10 melhores filmes de sempre, aparece um título seu, quase sempre este “Viagem a Tóquio”, considerado por muitos como a sua obra máxima, integrada num conjunto de obras-primas de invulgar consistência estética, que se concretizaram sobretudo nos últimos vinte anos da sua carreira.
Nascido a 12 de Dezembro de 1903, viria a falecer no mesmo dia do ano de 1963, sempre na cidade de Tóquio. Desde miúdo apaixonado por cinema, nomeadamente pelo cinema de Hollywood, onde ele confessava ter encontrado alguns mestres inspiradores, com 20 anos já trabalhava como assistente de câmara nos estúdios Shochiku, em Tóquio. Rapidamente passou a assistente de realização e a realizador, estreando-se em 1927 como autor. A obra chamava-se “Zange no yaiba”. Ainda durante o período mudo, rodou certa de três dezenas e meia de filmes, alguns dos quais nos dizem ser autênticas obras-primas. Desconhecemos todos. Passou pelo serviço militar e foi recrutado pelo exército japonês, durante a II Guerra Mundial, andando pela China e por Singapura, onde foi feito prisioneiro pelos ingleses. De regresso ao Japão, a sua carreira conhece um novo período, de uma austeridade de processos extraordinária, impondo um estilo muito próprio, que ficou testemunhado em obras admiráveis como “Uma Galinha no Vento” (1948), “Primavera Tardia” (1949), “Viagem a Tóquio” (1953), “A Flor do Equinócio”, “Bom Dia” (1959), ““O Fim do Outono” (1960) ou “O Gosto do Saké” (1962), seu derradeiro filme.
Infelizmente, por ser tão tarde, felizmente, porque apesar de tudo acontece, estrearam-se agora em salas portuguesas dois dos seus títulos mais celebrados: “Viagem a Tóquio” e “O Gosto do Saké”. Mas deve acrescentar-se que, editadas pela Prisvideo, já existiam no nosso mercado de DVDs três caixas dedicadas a Ozu, cada uma com dois filmes, o que permitia um conhecimento de “Graduei-me, Mas...”, “Viagem a Tóquio”, “A Flor de Equinócio”, “Bom Dia”, “O Fim do Outono” e “O Gosto do Saké”.

Posto isto, falemos de “Viagem a Tóquio”. Antes de tudo o mais, do estilo de Ozu. Inconfundível. Apesar de ter muitos pontos de contacto com a obra de outros autores de rigorosa austeridade, como Dreyer ou Bresson. Mas, quando se descobre um plano filmado com a câmara rente ao chão, com uma quase fixidez de olhar, uma prodigiosa encenação ao nível do plano, com entradas e saídas de personagens, quando se sente esta sensibilidade rara, a elegância do olhar, o pudor no exacerbar das emoções, a forma discreta como alimenta os conflitos, quando nos encontramos perante algo assim, não pode ser senão Ozu, sobretudo se os actores forem japoneses. Como é o caso desse magnífico Chishû Ryû, seu actor preferido, que aparece em boa parte da sua filmografia sonora. Um actor seco de carnes, mas de uma interioridade majestática, que relembra, aqui e ali, o Clint Eastwood de agora. Até no andar vagaroso, saboreado, de homem de muito saber, que anda pausadamente para chegar seguro.
Depois, o próprio Ozu declarava que as suas obras se enunciavam de forma rápida: um velho casal viaja até Tóquio para visitar os filhos que ali vivem, casados, um deles já com filhos. Mas a viagem resulta algo frustrante, os filhos encontram-se muito ocupados pelos seus empregos e trabalhos diários e pouca atenção reservam aos pais. Apenas a viúva de um dos filhos, morto na guerra (o filme data de 1953, e é ainda um reflexo dessa guerra), se mostra mais atenciosa. A estadia tem as suas peripécias, o velho visita uns amigos e perdem a cabeça com o saké durante uma noitada de recordações embebidas em álcool, e o casal resolve voltar a casa. Pouco tempo depois são os filhos que viajam até casa dos pais, para acompanhar a agonia da mãe, lamentando então as falhas passadas.
Numa notável fotografia a preto e branco, o filme passa frente aos nossos olhos como um rio a deslizar suavemente, com um ou outro percalço, mas perante a inevitabilidade do que se sabe suceder, aconteça o que acontecer. Na manhã seguinte à morte da mulher, o velho Shukishi é surpreendido a olhar o nascer do sol de um novo dia magnífico. É a vida que continua, inexorável. Ele olha esse amanhecer sem mágoa, enfrentando o futuro com a sábia nostalgia de um passado, mas com a certeza de que o rio continuará a correr, placidamente, como as imagens de Ozu. É a milenar filosofia oriental a contemplar os mistérios da vida, a surpreender-se com algumas decisões infelizes, mas a confundir homem e natureza num ciclo vital continuo. Belíssimo, doloroso pela sensação de culpa que deixa como lastro, mas igualmente grandioso pela forma como transmite esse deslizar do tempo pela memória dos homens.
A não perder. Mas é conveniente ir preparado para se assistir a uma jóia de secreta garantia, longe do tumulto das fitas comerciais que explodem de cinco em cinco minutos. Aqui a explosão é interior, discreta, subtil. Quem o sentir sairá certamente reconfortado. 



VIAGEM A TÓQUIO
Título original: Tôkyô Monogatari

Realização: Yasujirô Ozu (Japão, 1953); Argumento: Kôgo Noda, Yasujirô Ozu; Produção: Takeshi Yamamoto; Música: Takanobu Saito; Fotografia (p/b): Yûharu Atsuta; Montagem: Yoshiyasu Hamamura; Design de produção: Tatsuo Hamada; Direcção artística: Tatsuo Hamada; Guarda-roupa: Taizô Saitô; Assistentes de realização: Osamu Takahashi, Kouzou Yamamoto, Shôhei Imamura; Departamento de arte: Setsutarô Moriya, Toshio Takahashi; Som: Mitsuru Kaneko, Yoshisaburô Senoo; Companhia de produção: Shôchiku Eiga; Intérpretes: Chishû Ryû (Shukishi Hirayama), Chieko Higashiyama (Tomi Hirayama), Setsuko Hara (Noriko Hirayama), Haruko Sugimura (Shige Kaneko), Sô Yamamura (Koichi Hirayama), Kuniko Miyake (a muhr de Fumiko Hirayama), Kyôko Kagawa (Kyôko Hirayama), Eijirô Tôno (Sanpei Numata), Nobuo Nakamura (Kurazo Kaneko), Shirô Osaka (Keizo Hirayama), Hisao Toake (Osamu Hattori), Teruko Nagaoka (Yone Hattori), Mutsuko Sakura, Toyo Takahashi, Tôru Abe, Sachiko Mitani, Zen Murase, Mitsuhiro Môri, Junko Anan, Ryôko Mizuki, Yoshiko Togawa, Kazuhiro Itokawa, Fumio Toyama, Keijirô Morozumi, Tsutomu Nijima, Shozo Suzuki, Yoshiko Tashiro, Haruko Chichibu, Takashi Miki, Binnosuke Nagao, etc. Duração: 136 minutos; Distribuição em Portugal: Leopardo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 5 de Setembro de 2013.

quinta-feira, setembro 05, 2013

TEATRO: LAR, DOCE LAR


LAR, DOCE LAR

Uma comédia não é material de segunda. Alguns pensam assim, e pensam mal. Realmente há muita gente que faz más comédias (o que, diga-se!, acontece com qualquer género), mas uma boa comédia é normalmente um trabalho de grande qualidade. Que o digam Gil Vicente, Goldoni, Molière, e por aí fora, até à actualidade. Depois, há grandes actores cómicos que fizeram peças boas, más e assim-assim, filmes admiráveis, fracos e que seriam horríveis sem a sua presença. Chaplin e Buster Keaton nunca erraram (Keaton teve de aceitar certos trabalhos, no final da carreira, para se alimentar). Totó, para mim um dos maiores actores cómicos de sempre, fez de tudo e a tudo vale a pena assistir só para o ver a ele, mas por vezes é de arrepelar os cabelos vê-lo desbaratar aquele talento imenso em coisas tão medíocres.
 Mas a comédia é um género muito difícil e é raro acertar-se numa grande comédia. E o que é isso? É um espectáculo em que o texto tem qualidade, é inteligente, sensível, crítico, tem ritmo, não amolece pelo caminho, nem se atropela, é servido por bons actores, que retiram das palavras tudo quanto elas encerram e, se possível, as favorecem, e depois, falando do teatro, o cenário é justo, o trabalho dos técnicos é competente, e o encenador movimenta todos os cordelinhos para o resultado final ser um sucesso. Houve épocas gloriosas da comédia, mas é um género em equilíbrio instável. Nos últimos anos, há tanta mixórdia servida como prato forte, muitas vezes com sucesso público, que espanta como se desceu tão baixo. No cinema, as comédias americanas, por exemplo, entraram numa decadência tal que se salva uma entre uma centena, com um público cada vez mais boçal a rir de imbecilidades sem nome.
Por isso se deve sublinhar devidamente uma comédia portuguesa que anda há um ano a correr o país, que bate records de audiência e que agora regressou a Lisboa, ao palco do Tivoli. “Lar, Doce Lar” parte de “O Que Importa É Que Sejam Felizes”, de Luísa Costa Gomes, e consegue ser um trabalho invulgar. O texto é muito bem escrito, com um ritmo inusitado, muito bons gags, de situação e de trocadilhos, abordando um tema que já tem servido para várias comédias, mas que resulta original e mesmo um pouco iconoclasta: a velhice passada num lar de luxo para a terceira idade, a residência Antúrios Dourados para Seniores de Qualidade. Um bom texto é sempre um bom ponto de partida e aqui Luísa Costa Gomes acerta em toda a linha, sendo popular sem que isso signifique ser idiota, muito pelo contrário. Depois os actores são magníficos. Maria Rueff e Joaquim Monchique multiplicam-se em papéis e conferem ao espectáculo um ritmo estonteante. Só predestinados conseguem fazer o que eles fazem durante quase duas horas endiabradas, em que as personagens oscilam entre travestis de velhas, jovens, enfermeiras, médicos, e etc. O entrar e sair do eficaz cenário de F. Ribeiro deixa o público sem respiração. O que fará os actores!
A encenação de António Pires é igualmente eficaz, o que também não é difícil com actores a seu lado com a experiência cénica dos dois aqui reunidos. A importância de encontrar no palco o espaço e o tempo certos é essencial para o bom desempenho e eles sabem-na toda.
Posto isto: crise? Claro que há crise, mas uma boa comédia ajuda muito a suportar as agruras que os economistas e os políticos nos impingem diariamente. Não perca “Lar, Doce Lar”. É um excelente antídoto contra o desespero. E depois, um produto natural dá sempre boa disposição, como no-lo dizem as velhinhas, as idosas, as seniores ou os elementos da terceira idade.

LAR, DOCE LAR

Texto: Luísa Costa Gomes; Encenação: António Pires; Cenografia: F. Ribeiro; Desenho de luz: Paulo Sabino; Figurinos: Dino Alves; Intérpretes: Joaquim Monchique, Maria Rueff; Produção: UAU; Teatro Tivoli (de 4 de Setembro a 6 de Outubro, quartas, quintas, sextas, sábados e domingos). 

quarta-feira, setembro 04, 2013

Valter Hugo Mãe fala de "Manhã Submersa"


Autobiografia imaginária / Valter Hugo Mãe
Manhã Submersa


Vergílio Ferreira precisava de ser ressuscitado. Mesmo que muitos me digam que ele nem era simpático, andava de cara fechada, reagia pouco bem aos leitores, era severo, um daqueles cidadãos de antigamente cheios de infernos para se culpar e culpar os outros. O Vergílio Ferreira, ainda que difícil de aturar, precisava de ficar vivo e escrever sempre mais para traduzir o intraduzível de que tantas vezes dependemos. Essas máquinas todas sofisticadas que o mundo já tem são muito tolas se não servem para eternizar a vida de alguém. E não me venham dizer que os escritores são eternos, porque os livros do Vergílio Ferreira nunca estiveram tão bonitos [Quetzal] e não me parece que muita gente lhes esteja a pegar. Deve andar tudo maluco. Também urge ir pelas ruas mandar para a cadeia todos quantos não leem Vergílio Ferreira.
Sou a favor de cadeias para crimes de desperdício de maravilha. Quem tem acesso à maravilha e a despreza não pode reclamar da falta de amores, da falta de felicidade.
Volto sempre ao Manhã Submersa. Passei um tempo em estadias breves num seminário de Famalicão, nunca fui forçado a nada, mas tive muito da tentação inexplicável de me sacrificar, abdicar de mim para cumprir uma função exclusivamente dedicada aos outros. Não era uma ideia burra, era apenas uma ideia exagerada. Achava que estar vivo efetivamente me obrigava, e achava que podei pensar e sentir acerca da miséria alheia me condenava à necessidade de intervir. Não poderia ser outra coisa senão um missionário.
Ainda vivi naquele Portugal de casas frias, as poucas cores, os adultos tristes, cansados, pobres, a esperança inteira e tão mal fundada na graça divina. Lembro-me bem da beatitude em meu redor, a senhoria tão religiosa, as tias, a família muito grande, a minha ingenuidade. Eu era um rapaz perfeito para a virtude. Tantas vezes me disseram que haveria de crescer para padre, com a fé toda e a vida resolvida de trabalho, teto e comida. Tinha um medo profundo do que pudesse ser o futuro. Sentia que crescer era ir ao contrário da vontade ou das coisas
naturais.
Hoje estive a rever o filme do Lauro António e poucos filmes me fascinam e magoam tanto quanto este. A sua plasticidade austera, o severo das personagens, a música desoladora e bela,
tudo me impressiona. Compadeço-me com ver o rapaz, sempre a honra da família nas mãos, completamente encurralado pela candura, esforçando-se para aceitar um destino avesso.
Lembro- me de ler pela primeira vez o livro do Vergílio Ferreira e de tentar não dar um rosto ao miúdo, nem que fosse o meu. Tinha-Ihe muita compaixão e sentia-me intimidado. De algum modo, não arranjava coragem para o conhecer ou nunca teria coragem para pensar que poderia ser eu. Compreendia tão bem porque cada coisa lhe acontecia, eram-me tão inteligíveis as suas razões e a sua tristeza que não podia chegar demasiado perto, para não tomar a ficção por realidade.
O Lauro António deu um rosto ao miúdo e podia ser que me salvasse definitivamente de me confundir com ele. Mas há qualquer coisa na maneira como a memória fica que se vai apoderando das diferenças e dizendo que elas são apenas aparentes. Com a idade, sobretudo no que diz respeito à infância, as coisas revelam -se- nos e quase. sempre correspondem às nossas mais estranhas e inconfessáveis ideias. Eu sei que parte de mim deveria andar missionária em África. Isso nunca ninguém me apagará da consciência. Por outro lado, o ser um bocado lingrinhas e dado a dores de cabeça e todo ocupado com livros e histórias não promete muito um missionário. Provavelmente, ao fim de um mês, estaria com os paludismos todos e o calor demasiado esmaga-me o cérebro, e ia faltar-me a mordomia das casas que temos, o café, a roupa da Zara, a estreia de outro filme, os livros.
O que queria dizer era que o Lauro António também devia ser acusado de crime contra o desperdício da maravilha. Isto porque ficou grandemente pelo Manhã Submersa e O Vestido
Cor de Fogo. Um homem que faz destes filmes não pode esquecer-se. Havia de haver escolas verdadeiras. Daquelas públicas que pudessem continuar a ser públicas, para toda a gente, integradoras, generosas, onde se ensinassem as pessoas exatamente para a maravilha. E, depois, havia toda a gente se pôr a ler o livro e a ver o filme. A tirar notas, fazer testes sobre
isso como quem gosta de fazer testes, porque estudar ia ser perfeito. Era fundamental que pensássemos acerca daquela realidade e que pensássemos acerca de como um livro e um filme podem ser tão intensos e guardar dentro partes de gente como para sempre vivas, vigentes, com sentido.
O Vergílio Ferreira não estou a ver quem ressuscite. Resta ler. O Lauro António, desnecessitado de ressurreições, há que consciencializar-se das suas obrigações. Que isto de filmar como filma não lhe dá o direito de recusar-se a voltar ao grande cinema. Depois de Ferreira e Sena, José Cardoso Pires ou Urbano Tavares Rodrigues ficariam muito lindos.


In “Jornal de Letras”, 4 de Setembro de 2013

domingo, setembro 01, 2013

TEATRO: A ESTALAJADEIRA

A ESTALAJADEIRA


“A Estalajadeira”, de Carlo Goldoni, na sua versão encenada por Jorge Silva Melo (que só agora vi, no Luísa Todi, em Setúbal), coloca curiosas questões que sabe bem discutir. Diga-se desde já que a encenação é sóbria, enxuta, movimentando-se com agilidade num cenário frugal, discreto, dispondo apenas dos elementos indispensáveis para o essencial da acção. Escolheu-se um tempo neutro, fala-se de cavaleiros e condes, de estalajadeiras e de outras miudezas do século XVIII, mas bem se podia estar na actualidade. Essa intemporalidade é intencional, e tem a graça de poder também ser obra do século XVIII, como é. Jorge Silva Melo está numa fase da sua vida e da sua arte em que parece que fundamental para si são as palavras dos autores e o corpo e as vozes dos actores. Gosta do clássico que é ainda novo, e do actual que já se apresta a ser clássico. Ainda bem. Assim ninguém se engana com piruetas desnecessárias e vamos ali para ver o que é bom. Os últimos espectáculos dos Artistas Unidos são garantia de que na casa ninguém vende gato por lebre, quando gatos há por aí tantos, anunciados como pitéus de uma iguaria vanguardista que disso só tem o nome.
Posto isto, e prolongando a lógica do que atrás ficou dito, acrescente-se que o trabalho dos actores é globalmente muito bom. Os Artistas Unidos fazem escola, a começar desde logo pela escola de bem dizer. Tudo se ouve e bem, o que não será de somenos quando por aí existe tanta excelência que mal se ouve, que entaramela as sílabas e come as vogais. É norma nalgumas plateias ouvirem-se os espectadores segredarem entre si: o que é que ele/ela disse? Claro que pode ser a estética do “indizível”, porque há justificações para tudo, mas acredito que uma boa dicção ajuda muito, sobretudo se há talento por detrás. Noutras ocasiões, junta-se a falta de talento à deficiente dicção e dormir será mesmo o melhor remédio para ajudar a passar a soirée. No caso dos Artistas Unidos os elencos são preparados com cuidado extremo, e apesar de jovens portam-se muito bem. No caso de “A Estalajadeira”, Américo Silva, António Simão, Catarina Wallenstein, Elmano Sancho, Rúben Gomes, Maria João Falcão, Maria João Pinho, João Delgado e Tiago Nogueira não só estão à altura como nos dão uma lição de representar modernamente. Representam com a voz, mas também com todo o corpo. Vê-los evoluir no palco é algo de reconfortante. Catarina Wallenstein e Elmano Sancho são excepcionais.
Dito o que me parecia importante sobre o espectáculo, resta-me abordar um tema que julgo muito curioso e que se prende com a forma como se adaptam clássicos à actualidade. Há quem diga que os clássicos estão velhos e caducos e que ninguém tem paciência para eles. Portanto, Bach ou Mozart só se aproveitam tocados em punk, Vitor Hugo e Dickens o melhor mesmo é reescrevê-los sob a forma de manifestos vanguardistas, ou então em versão light, e Ibsen ou Tchekov não se vêem se não disserem precisamente o contrário do que diziam, ou vice-versa. O que vale é que há tantos génios a pulular por aí que qualquer deles agarra num clássico e o transforma num ápice numa brilhante peça de desconstrução contemporânea.
Goldoni escreveu “A Estalajadeira” em meados do século XVIII e preparou uma introdução sobre o significado da peça. Texto magnífico, que não precisa de actualização para se perceber e que, através dele, se entender igualmente a mentalidade da época. A sua comédia amável mas corrosiva destinava-se a criticar alguns usos e abusos do tempo, desde os aristocratas falidos que tentam comprar o amor de belas estalajadeiras através do dinheiro ou das honrarias, até às estalajadeiras que descobrem certas fraquezas dos homens e os lisonjeiam e manipulam até os terem a seus pés estendidos (também pode ser ao contrário: elas estenderem-se desmaiadas aos pés dos homens que desejam conquistar, para alcançarem o fim pretendido). 


Goldoni cria uma personagem soberba, Mirandolina, cobiçada por condes, barões, marqueses, cavaleiros e criados, que ela vai pondo e dispondo à distância. Um deles, porém, Ripafratta, acha que mulheres só à distância, não querendo nada com esse sexo dito fraco, que aqui faz das fraquezas forças e mostra que, afinal, quem desdenha quer comprar. Esta a lógica da peça que, no entender de Goldoni, é um severo aviso às mulheres. Com alguma ironia discreta escreve: “Não sabia o que havia de fazer ao terceiro acto, mas, vindo-me à mente que costumam estas aduladoras mulheres, quando os vêem caídos nos seus laços, tratar asperamente os amantes, quis dar um exemplo desta bárbara crueldade, deste injurioso desprezo com que se riem dos desgraçados que venceram, para mostrar o horror da escravidão que esses infelizes procuram e tornar odioso o carácter das encantadoras sereias. (…) Basta que alguém me fique grato pela lição que lhe ofereço. As mulheres que são honradas rejubilarão também por se desmascararem estas simuladoras que desonram o seu sexo, e essas mulheres aduladoras corarão ao encontrarem-me e não me importa que me digam: maldito sejas tu!”
Percebe-se, portanto, que ao escrever “A Estalajadeira” Goldoni, entre outras, pretendia criticar a personalidade da estalajadeira, essa “aduladora sereia”, de “práticas bárbaras”. Estávamos no século XVIII a crítica seria pertinente nesse contexto. Hoje, a personagem da estalajadeira adquire um outro significado, que a encenação de Jorge Silva Melo e a interpretação de Catarina Wallenstein acentuam subtilmente: hoje essa mulher é vista como uma personalidade forte que sabe o que quer, que não se deixa levar pelas lisonjas, que escolhe com quem casa e que se atreve a demonstrar pelo absurdo a falácia do extravagante Ripafratta. A peça adquire um outro significado não por terem desvirtuado o seu teor, mas simplesmente porque os tempos mudaram e o que poderia ser criticável há três seculos é hoje elogiável. Fazer sobressair essas nuances é dever de uma encenação inteligente e atenta aos ares dos tempos.

Pelo que julgo não ser necessário atraiçoar os clássicos para os tornar actuais. Basta apenas ser-se inteligente e retirar deles o que de actual todos conservam.