quinta-feira, outubro 31, 2013

CINEMA: FUGA

FUGA

Jeff Nichols realizou até hoje três longas metragens e pode dizer-se que cada uma delas foi um tiro no porta-aviões, de tão certeiras, o que não deixa de ser surpreendente para um autor ainda jovem (nasceu a 7 de Dezembro de 1978, em Little Rock, Arkansas, nos EUA). Na verdade, “Histórias de Caçadeiras” (2007), “Procurem Abrigo” (2011) e agora este “Fuga” (no original “Mud”), de 2012, mostram-nos, desde início, um autor na plena posse das suas faculdades e senhor de um universo muito pessoal, que passa de filme para filme com uma coerência e uma qualidade plástica e narrativa evidente. Arkansas, Ohio, de novo Arkansas, estes foram os cenários naturais escolhidos por Jeff Nichols para os seus três filmes. Todos eles longe das grandes metrópoles, próximos do seu Arkansas natal, este último tendo o rio Mississippi como referência maior e Mark Twain como inspiração óbvia.
Esta é a história de dois adolescentes amigos, que vivem em casas lacustres nas margens do Mississippi e que resolvem viajar pelo rio até uma ilha perdida, onde descobrem um barco pousado no cimo de uma árvore. Estranha descoberta que logo é superada pelo facto de o barco estar habitado: alguém ali vive, esse alguém é Mud, uma personagem misteriosa, daquelas de quem se ignora o passado e pouco se sabe do presente. Mas percebe-se que anda fugido, que tenta recuperar o barco para nele se escapar, e que para tanto precisa da ajuda de Ellis e Neckbone, os dois jovens idealistas, a meio caminho entre a meninice e a idade adulta, presos por imagens de amor perdido (os pais que se separam, a namorada que se julga ser e não é, o grande amor que se persegue, por quem se mata e, todavia, não irá concretizar o happy end idealizado) e por aspirações a uma pureza de intenções e de emoções que não se afigura tão fácil de alcançar como os seus sonhos o prediziam.
Um hesita, o outro confia, vê em Mud o grande herói das aventuras não vividas, mas ambos acabam por ajudar o acossado a perseguir o seu desejo de amor e de liberdade.
História de amizade e cumplicidade, aprendizagem da vida, das ilusões às decepções, da ternura à violência, “Mud” é um retrato de uma ternura modelar de dois jovens e um foragido aprisionados pela carcaça de um barco voador que um dia poderá sulcar as águas do rio.
Metáfora das contingências da vida? Um barco preso nos ramos de uma árvore é apenas imagem idealizada de um desejo, é preciso pô-lo a navegar nas habituais águas do rio, para o que se necessita do pragmatismo das ferramentas necessárias. Sem o sonho não se foge da dura realidade, é bem verdade, mas sem a adaptação às necessidades da existência não se sobrevive. Filme iniciático, portanto, escrito com uma tocante delicadeza, um pudor indesmentível, que nem as explosões de violência conseguem toldar. Violência que é física, violência que é também psicológica, em ambos os casos brutais, como diria Jeff Nichols algures “um conto de Mark Twain adaptado por Sam Peckinpah”.
Num universo em que se acredita na beleza da paisagem circundante e na harmonia dos homens, Ellis e Neckbone vão descobrir as asperezas que se escondem por detrás do retrato da falsa felicidade no lar, na sociedade, nas relações humanas, nas cobras venenosas que circulam nos charcos. O mundo de Jeff Nichols está povoado de irmãos desavindos, de neuróticos que se sentem ameaçados pelo fim do mundo, e por adolescentes em confronto com terríveis realidades que vão descobrindo subitamente. Há neste universo rural uma visceral verdade que torna cada um dos seus filmes uma espécie de docudrama, todo ele ficcionado, mas de uma tal plausibilidade que arrebata. Os seus protagonistas são personagens psicologicamente torturadas, envoltas num clima de uma intensidade traumatizante. Essa violência entranhada na paisagem não está, porém, isenta de um intenso lirismo que redime e transfigura. Não temos dúvidas ao afirmar que Jeff Nichols é uma das grandes certezas do actual cinema norte-americano, na esteira de um cineasta maior como Terrence Malick.

Em “Mud”, há ainda que sublinhar o extraordinário trabalhos dos dois actores jovens, Tye Sheridan (Ellis), e particularmente Jacob Lofland (Neckbone), que tudo indica vir a tornar-se uma nova coqueluche, ao lado de um notável Matthew McConaughey, na figura de Mud, bem acompanhados por Reese Witherspoon (Juniper), Sam Shepard (Tom), Ray McKinnon (Senior), Sarah Paulson (Mary Lee), Michael Shannon (Galen) e do velho Joe Don Baker, a recordar as suas antigas criações de gangster desapiedado.

FUGA
Título original: Mud

Realização: Jeff Nichols (EUA, 2012); Argumento: Jeff Nichols; Produção: Glen Basner, Lisa Maria Falcone, Michael Flynn, Dan Glass, Sarah Green, Tom Heller, Morgan Pollitt, Aaron Ryder, Gareth Smith; Música: David Wingo; Fotografia (cor): Adam Stone; Montagem: Julie Monroe; Casting: Francine Maisler; Design bdeprodução: Richard A. Wright; Direcção artística: Elliott Glick; Decoração: Fontaine Beauchamp Hebb; Guarda-roupa: Kari Perkins; Maquilhagem: Carla Brenholtz, Matthew W. Mungle, Kelly Nelson, Clinton Wayne; Direcção de produção: Michael Flynn, Sarah Green, Nancy Kirhoffer, Christopher H. Warner; Assistentes de realização: Cas Donovan, Hope Garrison, Phil Hardage; Departamento de arte: Lizzy Faulkner Chandler, Daniel Coe, Mark Moore; Som: Will Files; Efeitos especiais: Everett Byrom III; Efeitos visuais: Method Studios; Companhias de produção: Brace Cove Productions, FilmNation Entertainment; Intérpretes: Matthew McConaughey (Mud), Reese Witherspoon (Juniper), Tye Sheridan (Ellis), Jacob Lofland (Neckbone), Sam Shepard (Tom), Ray McKinnon (Senior), Sarah Paulson (Mary Lee), Michael Shannon (Galen), Joe Don Baker (King), Paul Sparks (Carver), Bonnie Sturdivant (May Pearl), Stuart Greer (Miller), John Ward Jr., Kristy Barrington, Johnny Cheek, Kenneth Hill, Michael Abbott Jr., Earnest McCoy, Allie Wade, Douglas Ligon, Matt Newcomb, Mary Alice Jones, Tate Smalley, Jimmy Dinwiddie, Ryan Jacks, etc. Duração: 130 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: ZON Audiovisuais; Data de estreia em Portugal: 24 de Outubro de 2013.

segunda-feira, outubro 21, 2013

CINEMA: GRAVIDADE


GRAVIDADE

“Gravidade” é o típico projecto cinematográfico que ou resulta em grande ou ameaça a catástrofe. Colocar dois actores no espaço, primeiro dentro de uma estação espacial, depois literalmente no espaço, envoltos nos fatos espaciais que quase os eliminam como figuras físicas, é um ponto de partida dramático. Se falhar, será mesmo um ponto de partida e de chegada trágico. No caso do filme de Alfonso Cuarón que agora surgiu nas salas internacionais, com Sandra Bullock e George Clooney nos papéis de protagonistas, o sucesso é evidente e estamos na presença de um dos mais sensacionais filmes de ficção científica vistos nos últimos tempos. Não se trata de uma obra de acção, nada a ver com “Stars War” ou “Star Trek”. Poderá relacionar-se com “2001- Odisseia no Espaço”, mas a um nível mais intimista, o que tendo o espaço infinito como cenário único, não deixa de ser perceptível, por um lado, e angustiante pelo outro. É aliás desse confronto entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno que ressalta uma grande parte do interesse do filme, em simultâneo profundamente pessoal e metafisico.
Há especialistas do espaço que protestam por haver erros ou imprecisões científicas aqui e ali. Que importa? Em arte não se chega muitas vezes ao essencial com a verdade dos factos, mas com o sonho e a intuição. “Gravidade” não é um documentário sobre como sobreviver no espaço, em determinadas circunstâncias adversas. “Gravidade” é um filme de ficção que coloca questões existenciais: como o homem deve enfrentar as adversidades, e também como sucumbir com dignidade perante elas.


Matt Kowalsky (George Clooney) e Ryan Stone (Sandra Bullock) são dois astronautas que se encontram no espaço, em missão. Ele viaja por espírito aventureiro, o seu sonho é bater o record de permanência livre no espaço, ela refugiou-se nesta exploração em grande parte para esquecer a morte de uma filha. Ele sabe como agradar às mulheres e fala continuamente, sem parar, sabe tudo sobre técnica e tem um espírito despegado e generoso, que terá oportunidade de por à prova; ela é médica, discreta, nada a diferencia de uma vulgar dona de casa, um pouco insegura, mas resoluta quando chega a altura de mostrar o que vale. À partida, ele é um poço de vida, ela alguém que procura a morte. O futuro se encarregará de baralhar os dados.
Andam pelo espaço presos à nave por um cordão umbilical, quando uma saraivada de meteoritos se abate sobre eles. Duas outras naves chocaram no espaço, a milhares de quilómetros, e os estilhaços provocados, lançados a alta velocidade, mostram-se demolidores. Rapidamente Matt Kowalsky e Ryan Stone se descobrem sozinhos no espaço, destruída a sua estação orbital e mortos todos os restantes companheiros de expedição. É neste ponto que começa a odisseia individual de “Gravidade”. Como resistir, se é que há possibilidade de sobreviver.


É um milagre de inteligência e sensibilidade o que Alfonso Cuarón e o seu filho Jonas Cuarón conseguem como argumentistas e um novo feito o que o cineasta alcança como realizador. Sustentar durante hora e meia esta viagem peregrina mantendo o suspense e criando um clima simultaneamente onírico e de fim do mundo, mesclando a beleza das paisagens e o terror do desconhecido. Os actores mostram-se à altura do empreendimento, muito bem escolhidos em função dos papéis que desempenham e das características emocionais de cada uma das personagens. Sozinha com as estrelas por companhia e um passado trágico a recordar, Ryan Stone fará das tripas coração para sobreviver e regressar à Terra numa demonstração de apego à vida que ela própria ignorava. Lição para cada espectador, como lição fora a entrega de Matt Kowalsky quando mais nada havia a fazer e o seu sacrifício podia ser benéfico para outros.
Um blockbuster de Verão pode ser algo de surpreendente? Aí está a prova. Que as 3D confirmam. Plasticamente com imagens de um lirismo discreto e rigoroso, de uma sufocante claustrofobia (da responsabilidade do director de fotografia Emmanuel Lubezki), “Gravidade” é indiscutivelmente um dos grandes filmes de 2013, mostrando que, se tudo já foi feito e dito, há sempre maneira de inovar e surpreender o espectador. Basta um lampejo de talento, inteligência e sensibilidade. 

GRAVIDADE
Título original: Gravity

Realização: Alfonso Cuarón (EUA, Inglaterra, 2013); Argumento: Alfonso Cuarón, Jonás Cuarón; Produção: Alfonso Cuarón, Christopher DeFaris, David Heyman, Stephen Jones, Nikki Penny, Gabriela Rodriguez; Música: Steven Price; Fotografia (cor): Emmanuel Lubezki; Montagem: Alfonso Cuarón, Mark Sanger; Casting:  Richard Hicks, David Rubin; Design de produção: Andy Nicholson; Direcção artística: Mark Scruton; Decoração: Rosie Goodwin; Guarda-roupa: Jany Temime; Maquilhagem: Janine Rath, Waldo Sanchez, Pamela S. Westmore; Direcção de produção: Jennifer Corey, Marianne Jenkins; Assistentes de realização: Edward Brett, Ben Howard, Josh Robertson; Departamento de arte: Jon Bunker; Som: Glenn Freemantle; Efeitos Especiais: Neil Corbould, Manex Efrem; Efeitos Visuais: Fiona Carruthers, Emma Lian Cooper, Claire Galpin, Alessandro Gobbetti, Eoin Hegan, Adam Holmes, Alexander Kubinyi, Bonnie Lin, Sarah Lister, Nidhi Seth, Chris Watts; Companhias de produção: Warner Bros., Esperanto Filmoj, Heyday Films; Intérpretes: Sandra Bullock (Ryan Stone), George Clooney (Matt Kowalski), Ed Harris (voz), Orto Ignatiussen (voz), Paul Sharma (voz), Amy Warren (voz), Basher Savage (voz), etc. Duração: 91 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia Tristar WarnerZON Audiovisuais; Classificação etária: M / 12 anos; Data de estreia em Portugal: 10 de Outubro de 2013.

sábado, outubro 19, 2013

CINEMA: COMO UM TROVÃO

















COMO UM TROVÃO

Derek Cianfrance tinha-nos dado há pouco (2010) um filme belíssimo, “Só Tu e Eu” (Blue Valentine), com Ryan Gosling no protagonista (na companhia da magnífica Michelle Williams). Era uma história de amor desencantado, tensa, alternando momentos de aparente felicidade com outros de solidão desesperante. Merecia andar debaixo de olho, e o seu novo filme não desmerece. Derek Cianfrance é realmente um “autor” com um universo muito próprio, obsessões e fantasmas que cultiva com inegável talento. “Como um Trovão” (The Place Beyond the Pines), de 2012, reafirma as qualidades reconhecidas no filme anterior e confirma-o como um dos grandes valores do mais recente cinema norte-americano.
Ryan Gosling volta a ocupar destacado lugar nesta obra ainda que, desta feita, o filme surja como uma tragédia em três actos, cada um deles protagonizado por personagens diferentes. Gosling é um corredor de motos que se notabiliza em arriscadas peripécias num poço da morte. Depois descobre que uma antiga namorada tem um filho seu, e resolve apostar numa actividade mais rentável: assaltar bancos. Mas usando as suas credenciais pessoais. Foge na sua moto jogando com a sua perícia.
Há um fait divers curioso acerca desta personagem. Quando Derek Cianfrance chamou Ryan Gosling para lhe falar de um novo projecto, contam as crónicas que terá perguntado ao actor “o que é que ele gostaria de fazer em cinema e que nunca tivesse feito”, ao que Gosling lhe terá respondido: “Assaltar bancos e fugir numa moto”. “Pois é esse mesmo o argumento em que estou a trabalhar”, respondeu Cianfrance, e assim se fechou o contrato entre ambos.


A sua carreira como assaltante de bancos é curta, é apanhado por um polícia, Avery Cross (Bradley Cooper, magnífico, numa interpretação bastante afastada das “Ressacas” onde se tornou notado) e com esta troca de tiros acaba o primeiro acto e inicia-se o segundo, que tem como figura central o polícia, a instituição, a corrupção, os jogos de poder, o arrivismo carreirista e etc. Fechado este acto, passam-se quinze anos e vamos encontrar, lado a lado, numa mesma escola, os filhos do assaltante Luke e do polícia Avery, primeiramente sem saberem a sua ascendência, depois conhecendo-a e agindo em conformidade. Três actos, cada um com os seus protagonistas, numa progressão dramática entrecortada por hiatos, com uma atmosfera violenta, a roçar o desespero, pressagiando sempre a tragédia e oferecendo um excelente retrato da sociedade norte-americana, com uma atmosfera local (um subúrbio de Nova Iorque) magnificamente reconstituído, densamente povoado por cores espessas como as emoções que ali se vivem.
Um belíssimo filme que assegura as qualidades de actores como Ryan Gosling, Bradley Cooper ou Eva Mendes e o talento inequívoco de Derek Cianfrance para impor climas e personagens sem futuro num mundo sem esperança.


COMO UM TROVÃO
Título original: The Place Beyond the Pines

Realização: Derek Cianfrance (EUA, 2012); Argumento: Derek Cianfrance, Ben Coccio, Darius Marder; Produção: Matt Berenson, Lynette Howell, Sidney Kimmel, Katie McNeill, Alex Orlovsky, Jamie Patricof, Crystal Powell, Jim Tauber, Bruce Toll; Música: Mike Patton; Fotografia (cor): Sean Bobbitt; Montagem: Jim Helton, Ron Patane; Casting: Cindy Tolan; Design de produção: Inbal Weinberg; Direcção artística: Michael Ahern; Decoração: Jasmine E. Ballou; Guarda-roupa: Erin Benach; Maquilhagem: Patricia Grande, Michael Marino, David Presto, Leo Won; Direcção de produção: Carrie Fix, Marcelo Gandola, Samantha Housman, Louise Runge, Nicola Westermann; Assistentes de realização: Mariela Comitini, Alex Finch, Brad Robinson; Departamento de arte: Richard Hebrank, Arthur Jongewaard; Som: Dan Flosdorf; Efeitos Especiais: Drew Jiritano; Efeitos Visuais: Alice Kahn Studios, Jim Rider, Raven Sia; Companhias de produção: Focus Features, Sidney Kimmel Entertainment, Electric City Entertainment, Verisimilitude, Hunting Lane Films, Pines Productions, Silverwood Films; Intérpretes: Ryan Gosling (Luke), Bradley Cooper (Avery Cross), Eva Mendes (Romina), Rose Byrne (Jennifer), Ray Liotta (Deluca), Dane DeHaan (Jason), Ben Mendelsohn (Robin Van Der Zee), Harris Yulin (Al Cross), Bill Killcullen (Bruce Greenwood), Anthony Pizza, Craig Van Hook, Mahershala, Olga Merediz, Rev. John Facci, Thomas Mattice, Adam Nowichi, Mark J. Caruso, G. Douglas Griset, Vanessa Thorpe, Brian Smyj, Paul Steele, Gabe Fazio, Rose Byrne, Jan Libertucci, Robert Clohessy, Bruce Greenwood, Heather Chestnut, Greta Seacat, Luca Pierucci, Emory Cohen, Joe B. McCarthy, Ephraim Benton, Kevin Green, Alex Pulling, Dante Shafer, Kayla Smalls, Leah Bliven, Whitney Hudson, Breanna Dolen, Hugh T. Farley, Michael Cullen, etc. Duração: 140 minutos; Distribuição em Portugal: Classificação etária: M / 12 anos; Data de estreia em Portugal: 19 de Setembro de 2013.

TEATRO: O ALDRABÃO

O ALDRABÃO
Antes de mais uma pequena anotação pessoal que vale o que vale. Julgo que muitas das peças, nomeadamente as comédias, da dramaturgia clássica greco-latina, estão demasiado datadas para hoje surtirem o efeito desejado. Não deixam de ser clássicos, mas só grandes encenações servidas por actores de eleição as tornam particularmente interessantes. De resto, estas comédias de senhores e escravos, de jovem suspirando por amores correspondidos ou não, neste caso de escravas sexuais que se pretendem libertar, já nem são muito divertidas nem muito críticas, por muito inteligentes e actualizadas que possam ser as encenações. Soam a questões de um passado remoto.
“O Aldrabão”, de Plauto, chama-se no original “Pseudolus” e é considerada uma das melhores comédias do autor, para alguns a sua obra-prima. Seja. O autor é um dramaturgo latino, da Roma Clássica, a peça decorre numa rua de Atenas, na Grécia antiga, e a encenação de João Mota, não sei se consciente ou inconscientemente, relembra nalguns aspectos a “commedia dell'arte”, quer pela representação frontal, diante de uma parede e porta de casa, quer pela forma caricatural como se apresentam as personagens.
O resultado não é desinteressante, e não sei se não vou dizer uma heresia, mas tomo-o como um elogio: o todo assemelha-se a um divertido espectáculo popular de troupe, com o seu quê de tropelia burlesca, satírica e mesmo brejeira. Neste aspecto, a actualização da tradução e o engenho da encenação funcionam bem, num belo cenário, e com alguns desempenhos a salientar, nomeadamente os de Rui Mendes e João Ricardo, num elenco onde surgem ainda Virgílio Castelo, Fernando Gomes, Carlos Vieira de Almeida, Rui Neto, Miguel Costa e  Miguel Raposo. Muito divertida a introdução protagonizada por João Mota, e que ajuda a enquadrar a obra no seu tempo e espaço. 


O Aldrabão, de Plauto; tradução Luís Vasco, adaptada a partir da tradução francesa de Édouard Sommer; versão cénica e encenação João Mota; cenografia João Mota e Eric da Costa; figurinos Carlos Paulo; desenho de luz José Carlos Nascimento; música original, direção musical e sonoplastia Hugo Franco; movimento Jean-Paul Bucchieri; Intérpretes: Virgílio Castelo, Rui Mendes, João Ricardo, Fernando Gomes, Carlos Vieira de Almeida, Rui Neto, Miguel Costa, Miguel Raposo e ainda figurantes: Diogo Tormenta, Guilherme Gomes, João Dantas, João Ventura, José Leite, Nuno Rodrigues, Rafael Gomes, Ricardo Teixeira, Sérgio Coragem e Simão Biernat; músicos Luís Bastos (sopros), Rini Luyks (acordéon e teclados) e Gonçalo Santuns (percussão); pintura de telão Silveira Cabral e Teresa Varela; confeção de adereços Teresa Varela; produção TNDM II; M/12 anos. 

quinta-feira, outubro 10, 2013

CINEMA: POR DETRÁS DO CANDELABRO


POR DETRÁS DO CANDELABRO
Michael Douglas (em cima) e o verdadeiro Liberace (em baixo)

Devo dizer que nunca fui tocado pela arte e o virtuosismo de Liberace. Quando eu era miúdo e ele um ídolo, a sua excentricidade afastava-me desse pianista showman que tinha programa de televisão e tudo e era um dos homens mais ricos do showbiz norte-americano.
Wladziu Valentino Liberace nasceu West Allis, a 16 de Maio de 1919 e viria a falecer, em Palm Springs, a 4 de Fevereiro de 1987, vítima de SIDA. Vinha de uma família de músicos e tudo indicava que se tornaria num pianista clássico. Mas um dia, durante um dos seus primeiros recitais, quando chegou aos encores, em vez de um trecho clássico, optou por algo mais ligeiro e esta escolha iria mudar a sua carreira.
Liberace era um pianista extraordinariamente treinado sob o ponto de vista da escola tradicional do piano, mas que ousou o inesperado: usar toda a sua arte não apenas num repertório clássico, mas também na música popular. Além de tocar, ele cantava e dançava. A sua celebridade cresceu e rapidamente se tornaria o "Liszt de Las Vegas". Nunca interpretava Chopin ou Berlin (ou quem quer que fosse) sem lhes dar um cunho muito pessoal. Aparecia de Rolls Royce em cena, com aparatosas capas, rodeado de corpo de baile, cantava e dançava e era o mais bem pago de todos. A sua fortuna pessoal permitia-lhe coleccionar automóveis de marcas de topo, pianos históricos e mobiliário, além de possuir um guarda-roupa que fazia inveja a qualquer teatro de vaudeville. Tinha um programa de televisão a nível nacional, orgulhava-se dos seus “protegidos” e ostentava trejeitos que denunciavam homossexualidade de que alguns meios de comunicação o acusavam. Ele negou sempre e processou os acusadores. No seu período áureo recebeu mais de cinco milhões de dólares anualmente, o que lhe permitia ter cinco luxuosas mansões. A última aparição pública de Liberace foi em Novembro de 1986, no Radio City Music Hall, em Nova Iorque. Três meses após esta despedida, morria, com 67 anos, por complicações causadas pelo vírus da SIDA, na residência de Palm Springs, na Califórnia.


Um dos seus últimos “protegidos”, Scott Thorson, escreveu uma autobiografia (de colaboração com Alex Thorleifson), a que deu o título “Behind the Candelabra: My Life With Liberace”. Foi esta obra que deu origem ao filme de Steven Soderbergh, tendo sido adaptada a cinema pelo argumentista Richard LaGravenese. Aborda os últimos anos da vida de Liberace e a relação amorosa e sexual que durou seis anos entre Liberace e Scott Thorson. As memórias são evidentemente pessoais e vistas sob a perspectiva de Scott Thorson e o filme assume esta óptica sem nunca a por em causa.
O elenco escolhido é magnífico, sobretudo os protagonistas, Matt Damon na figura algo cinzenta de Scott Thorson, que se confessa bissexual e oscila entre o amante incondicional e o arrivista à procura de riqueza fácil, e Michael Douglas, numa composição absolutamente fabulosa de Liberace, de uma subtileza notável, mesmo nos momentos de maior exuberância. Este ano os Oscars de actores principais não parecem suscitar nenhum suspense. Cate Blanchett, em “Blue Jasmine” e Michael Douglas, em “Por Detrás do Candelabro” arrumam as contam à priori.


Mas, para lá do virtuosismo da interpretação, o filme é ainda magnificamente realizado por um inspirado Steven Soderbergh que encena com brilho esta vida de excessos, recriando a vida íntima de Liberace com pudor, mas não se furtando a cenas que facilmente poderiam cair no ridículo, e que ele segura com mão de mestre, ao mesmo tempo que nos oferece a féerie dos seus concertos e aparições públicas. Distante de início, com a câmara fixa, próximo e hesitante nas sequências finais, rodadas com a câmara à mão, pelo próprio realizador (que, além da realização, assina ainda fotografia e montagem), “Por Detrás do Candelabro” é uma lição de cinema. Curiosamente, este filme não foi produzido por nenhum dos grandes estúdios de cinema americanos, nunca foi estreado em salas nos EUA, tendo sido directamente lançado na televisão por cabo (quem o produziu foi a NBO, que assim permitiu ao realizador concretizar este projecto longamente amadurecido). De resto, Steven Soderbergh, um dos mais interessantes cineastas do actual cinema norte-americano, um homem que tem alternado ao longo da sua filmografia obras de grande público, como “Os Onze do Oceano” e sequelas, e outras de um certo experimentalismo, como “Sexo, Mentiras e Vídeo”, anunciou que o cinema para ele tinha acabado, dadas as condições de produção que existem hoje na América. Ele vai ficar-se pela televisão e pelo vídeo, que lhe oferecem maior liberdade.

POR DETRÁS DO CANDELABRO
Título original: Behind the Candelabra

Realização: Steven Soderbergh (EUA, 2013); Argumento: Richard LaGravenese, segundo obra de Scott Thorson e Alex Thorleifson; Produção: Susan Ekins, Gregory Jacobs, Michael Polaire, Jerry Weintraub; Música: Marvin Hamlisch; Fotografia (cor): Steven Soderbergh (como Peter Andrews); Montagem: Steven Soderbergh (como Mary Ann Bernard); Casting: Carmen Cuba; Design de produção: Howard Cummings; Direcção artística: Patrick M. Sullivan Jr.; Decoração: Barbara Munch; Guarda-roupa: Ellen Mirojnick; Maquilhagem: Christine Beveridge, Kate Biscoe, Stephen Kelley, Marie Larkin, Yvette Stone; Direcção de produção: Julie M. Anderson, David Kirchner, Michael Polaire; Assistentes de realização: Gregory Jacobs, Jody Spilkoman, Lynn Struiksma; Departamento de arte: Nicole Balzarini, Greg Berry, Karen Higgins, Jessica Ripka, Eric Sundahl, Karen Teneyck; Som: Larry Blake; Efeitos especiais:  Josh Hakian, David Waine; Efeitos visuais: Thomas J. Smith; Companhia de produção: HBO Films; Intérpretes: Michael Douglas (Liberace), Matt Damon (Scott Thorson), Dan Aykroyd (Seymour Heller), Rob Lowe (Dr. Jack Startz), Debbie Reynolds (Frances Liberace), Scott Bakula (Bob Black), Tom Papa (Ray Arnett), Nicky Katt (Mr. Y), Cheyenne Jackson (Billy Leatherwood), Paul Reiser (Mr. Felder), Boyd Holbrook (Cary James), David Koechner, Eddie Jemison, Randy Lowell, Tom Roach, Shamus Cooley, John Smutny, Eric Zuckerman,Jane Morris, Garrett M. Brown, Pat Asanti, Casey Kramer, James Kulick, Bruce Ramsay, Paul Witten, Deborah Lacey, Susan Todd, Nicky Katt, Austin Stowell, Francisco San Martin, Anthony Crivello, Mike O'Malley, Kiff VandenHeuvel, Nikea Gamby-Turner, Charlotte Crossley, Josh Meyers, Harvey J. Alperin, Jerry Clarke, Lisa Frantz, Shaun T. Benjamin, John Philip Kavcak, etc. Duração: 118 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Audiovisuais; Classificação etária: M / 16 anos; Data da estreia em Portugal: 19 de Setembro de 2013.