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segunda-feira, maio 18, 2009

MANOEL DE OLIVEIRA

:
...E OS ACTORES

Manoel de Oliveira recebeu há minutos o Globo de Ouro de carreira. E deu lição de cinema. Do seu cinema. Explicou:
Dizem alguns que sou um mau director de actores. Engano. Eu nunca os dirijo. Eu sou dirigido por eles.”
Eu, que trabalho de forma diferente, curvo-me perante a teoria de Oliveira, tão boa como outra qualquer. Saber isso é, no entanto, uma forma de compreender melhor o seu cinema, a sua estética e a sua ética ao filmar.
Coerência e sinceridade, num homem que impõe um notável respeito.
Parabéns, Mestre!

segunda-feira, maio 11, 2009

CINEMA: SINGULARIDADES

:
SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA
“Singularidades de uma Rapariga Loura” comporta singularidades a que não nos pudemos furtar. È um filme realizado por um cineasta com cem anos, que passou o seu dia de anos em rodagem. Único na História do Cinema? Não sei, nem interessa muito, mas o facto merece ser mencionado. Para lá de tudo o mais, enternece. E não é um filme senil.
Como tem acontecido ao longo da carreira de Manoel de Oliveira, há filmes de que gosto mais e outros de que gosto menos. Mas a todos há que conferir uma dignidade intelectual e artística indiscutíveis. Deste gosto menos. Acho mesmo que comporta erros de base que colocam toda a sua estrutura em causa.
O conto de Eça de Queiroz fala-nos de 1823 (ou 1933), ao que recordo. Reli-o agora depois de ver o filme. A sensação que voltou a aflorar foi a que me dominou ao ver a obra de Oliveira: este, nem de perto nem de longe, consegue aproximar-se de Eça. Primeiro equivoco, actualizar o contexto. Pelo menos da forma por que foi feita essa actualização. Eça dá-nos um retrato de uma sociedade e de um tempo que Oliveira nunca atinge. No filme, a sensação é de algo postiço: personagens de um tempo, diálogos de uma época colocados num contexto completamente diferente. Oliveira respeita os diálogos, respeita as personagens, respeita alguns ambientes, respeita certos adereços, mas não respeita o espírito de Eça querendo ser-lhe o mais fiel possível. Aqueles diálogos são impossíveis hoje, aquele leque chinês também, os saraus culturais também, aquelas personagens têm outra contextura hoje. A condição humana é a mesma? Certo, não poderia estar mais de acordo. Mas o seu comportamento mudou. Os signos por que se expressam também. Não existem aqueles Macário, Luísa, mãe da Luísa, tio de Macário, amigo o chapéu de palha, etc. Actualização ou era total, radical, ou então muito se perde do essencial.
Mas há mais: em Eça há descrições que, por uma questão de economia (financeira, e de meios, expressiva, no dizer do próprio autor), Oliveira simplesmente cortou. A sequência em casa do tabelião da Rua dos Calafates, contém momentos absolutamente indispensáveis para se compreender a crítica social da época, como a descrição da corrida de touros em que morre o conde de Arcos ou o rosnar antimonárquico do Gaudêncio.
Pequenos exemplos:
“Depois, a preciosa D. Jerónima da Piedade e Sande, sentando-se com maneiras comovidas ao cravo, cantou com a sua voz roufenha a antiga ária de Sully:
Oh Ricardo, oh meu rei,
O mundo te abandona.
O que obrigou o terrível Gaudêncio, democrata de 20 e admirador de Robespierre, a rosnar rancorosamente junto de Macário:
— Reis!... víboras!
Depois, o cónego Saavedra cantou uma modinha de Pernambuco muito usada no tempo do senhor D. João VI: lindas moças, lindas moças. E a noite ia assim correndo literária, pachorrenta, erudita, requintada e toda cheia de musas.”

“Estavam, nesta noite, o amigo do chapéu de palha, um velho cavaleiro de Malta, trôpego, estúpido e surdo, um beneficiado da Sé, ilustre pela sua voz de tiple, e as manas Hilárias, a mais velha das quais tendo assistido, como aia de uma senhora da casa da Mina, à tourada de Salvaterra, em que morreu o conde dos Arcos, nunca deixava de narrar os episódios pitorescos daquela tarde: a figura do conde dos Arcos de cara rapada e uma fita de cetim escarlate no rabicho; o soneto que um magro poeta, parasita da casa de Vimioso, recitou quando o conde entrou, fazendo ladear o seu cavalo negro, arreado à espanhola, com um xairel onde as suas armas estavam lavradas em prata: o tombo que nesse momento um frade de S. Francisco deu da trincheira alta, e a hilaridade da corte, que até a sr.ª condessa de Pavolide apertava as mãos nas ilhargas: depois el-rei o sr. D. José I, vestido de veludo escarlate, recamado de ouro, todo encostado ao rebordo do seu palanque, e fazendo girar entre dois dedos a sua caixa de rapé cravejada, e por trás, imóveis, o físico Lourenço e o frade, seu confessor; depois o rico aspecto da praça cheia de gente de Salvaterra, maiorais, mendigos dos arredores, frades, lacaios, e o grito que houve, quando D. José I entrou: - Viva el-rei, nosso senhor! E o povo ajoelhou, e el-rei tinha-se sentado, comendo doces, que um criado trouxe num saco de veludo, atrás dele. Depois a morte do conde dos Arcos, os desmaios, e até el-rei todo debruçado, batendo com a mão no parapeito, gritando na confusão, e o capelão da casa dos Arcos que tinha corrido a buscar a extrema-unção. Ela, Hilária, ficara estarrecida de pavor: sentia os urros dos bois, gritos agudos de mulheres, os ganidos dos flatos, e vira então um velho, todo vestido de veludo preto, com a fina espada na mão, debater-se entre fidalgos e damas que o seguravam, e querer atirar-se à praça, bramindo de raiva! "É o pai do conde!", explicavam em volta. Ela então desmaiara nos braços de um padre da Congregação. Quando veio a si, achou-se junto da praça; a berlinda real estava à porta, com os boleeiros emplumados, os machos cheios de guizos, e os batedores a cavalo, à frente: via-se lá dentro el-rei, escondido ao fundo, pálido, sorvendo febrilmente rapé, todo encolhido com o confessor; e defronte, com uma das mãos apoiada à alta bengala, forte, espadaúdo, o aspecto carregado, o marquês de Pombal falava devagar e intimativamente, gesticulando com a luneta. Mas os batedores picaram, os estalos dos boleeiros retiniram, e a berlinda partiu a galope, enquanto o povo gritava: Viva el-rei!, nosso senhor! - e o sino da capela do paço tocava a finados! Era uma honra que el-rei concedia à casa dos Arcos.”
Esta saborosa descrição irónica, carregada de sinais da época, desaparece e não dá lugar a outras, igualmente significativas, dedicadas à actualidade (que também as há e de que maneira!).
A presença deste tipo de apontamentos em Eça faz a diferença, adensa a anotação social e a sua crítica. Perde-se em Oliveira, que se atém apenas ao esqueleto da história, ou da anedota, melhor dizendo, pois o que fica não passa de uma anedota.

Há outras anotações que se perdem, e com elas a referência a um determinado tempo, e igualmente ao pensamento de Eça. Macário viaja até Cabo Verde, onde enriquece. Eça escreve:

“E ao outro dia Macário partiu.
Conheceu as viagens trabalhosas dos mares inimigos, o enjoo monótono num beliche abafado, os duros sóis das colónias, a brutalidade tirânica dos fazendeiros ricos, o peso dos fardos humilhantes, as dilacerações da ausência, as viagens ao interior das terras negras e a melancolia das caravanas que costeiam por violentas noites, durante dias e dias, os rios tranquilos, de onde se exala a morte.
Voltou.”

Quanto às personagens do filme, debitando tiradas do início do século XIX, nada lhes permite criar densidade. São “actores” (como sempre em Oliveira, o que é um estilo e não se discute enquanto tal), mas são actores sem texto para se imporem, mesmo enquanto tal. Compare-se com “Amor de Perdição” ou “Francisca” e veja-se a diferença.
Depois há situações quase insuportáveis: a visita ao Circulo Eça de Queiroz, com o mordomo cicerone, é uma delas. Mas há mais. Por exemplo, o sarau já aludido, com harpista, recitador e Glória de Matos.
Um desastre?
Em Oliveira é difícil, senão impossível o desastre total, porque ao lado dos desacertos, há um cineasta que se nos impõe. Há sequências que nos relembram a arte do mestre. As cenas de janela são brilhantes. Há uma maravilhosa, em que Oliveira iguala Eça, quando este escreve:

“A rapariga loura reparou naturalmente em Macário, e naturalmente desceu a vidraça, correndo por trás uma cortina de cassa bordada. Estas pequenas cortinas datam de Goethe e têm na vida amorosa um interessante destino: revelam. Levantar-lhe uma ponta e espreitar, franzi-la suavemente, revela um fim; corrê-la, pregar nela uma flor, agitá-la, fazendo sentir que por trás um rosto atento se move e espera - são velhas maneiras com que, na realidade e na arte, começa o romance. A cortina ergueu-se devagarinho e o rosto loiro espreitou.”

Oliveira consegue tudo isso, com o levantar e o baixar dos cortinados, e a bela presença de Catarina Wallenstein. A cortina que desce, sobre uma outra já descida, não oculta, desoculta, “revela”.
As escadas, à entrada para o sarau, dadas numa imagem que se desdobra através dos espelhos, é outro plano de antologia. O início, no interior da carruagem do alfa pendular (ou intercidades) Lisboa-Algarve, que funciona como genérico, é prometedor. A imagem final, já muito comentada, de Luísa prostrada, é excelente. Temos, aqui e ali, Oliveira do melhor. Mas falta-nos Oliveira o tempo todo, o que se lamenta.

Para quem gosta de Manoel de Oliveira, “Singularidades de uma Rapariga Loura” merece a visita e o respeito. E tem uma vantagem: nas obras-primas não se percebe tão bem a arte de quem as concebe. Mas os falhanços, deixando a descoberto a tecitura da narrativa e dos processos, podem ser elementos muito interessantes para se perceber o como e o porquê de alguns processos.

quarta-feira, janeiro 23, 2008

CINEMA: CRISTOVÃO COLOMBO- O ENIGMA

CRISTÓVÃO COLOMBO
- O ENIGMA
Quem vê com alguma abertura de olhar um filme como “Cristóvão Colombo – O Enigma” não pode deixar de ficar perplexo. Normalmente quando se olha ou ouve uma obra de arte a tendência é valorizá-la colocando-a em comparação com outras, idênticas. Eu julgo nunca ter visto um filme como este. É película e 24 imagens por segundo. Ok. Aí é igual a todo o filme que se projecta numa sala de cinema. Mas o paralelismo fica-se por ai. Se o colocarmos ao lado de uma obra de Hollywood, merece bola preta pela certa. Se o cotejarmos com as vanguardas mais actuais, nada a ver. Apetecer dizer uma enormidade: parece um filme de amador (“home vídeo”, dir-se-ia hoje), realizado por um autor genial, na época do mudo, mas com som. Só paradoxos inconciliáveis. É verdade. No espaço de minutos, oscilamos entre uma interpretação que, pelos modelos actuais, é catastrófica, e um plano cuja composição e respiração tem de ser de inspiração divina, seja o que for a divindade. Tudo isto feito por um homem com 98 anos (sim, a idade tem importância, não há nenhuma dúvida de que a idade tem a sua importância na devida apreciação e usufruto pessoal do espectador desta obra).
Este não é um filme realista, é um dos filmes mais evanescentes que já vi. É um filme de fantasmas. Fantasmas que perseguem fantasmas, e falamos aqui de fantasmas enquanto almas, espíritos, corpos que interiorizam e guardam forças estranhas, ânimos e indizíveis energias. Fala-se muito de uma segunda infância quando se ultrapassa a maturidade e se entra numa outra dimensão que é a velhice ou a sabedoria. “Cristóvão Colombo – o Enigma” tem a alegria e a inconsciência de uma criança que brinca enquanto aprende alguma coisa sobre um tal Cristóvão Colombo que uns quantos dizem ser genovês e alguns afirmam português, nascido em Cuba, Alentejo, e ter dai partido para o mundo e para a descoberta da América. Numa altura em que Portugal e a Espanha dividiam o mundo entre si: uma parte para mim, outra para ti, coisa de crianças também.
Não, não se pode gostar ou não gostar deste filme com base no argumento, nos diálogos, na interpretação, até (por vezes) na iluminação ou naqueles artifícios de narração a que estamos habituados. Este filme participa de um outro registo. Não se gosta ou não. Ama-se ou não se ama. Eu amei. Há muito que não me enternecia tanto vendo um filme. Já vi majestosas obras-primas e chorei de prazer. Não é raro chorar de tanta beleza à nossa frente. No caso do filme de Oliveira, a lágrima desponta por outras razões. Ou sem-razões, sei lá. É lindo (não outra palavra: é lindo) ver Oliveira e a mulher passear por Nova Iorque em busca de Colom, desbobinando diálogos de manual de História, mas com um olhar de princípio do mundo que desarma a alma mais empedernida. “Oh Manuel (ou será: Manoel?), tu gostas mesmo de mim, tu amas-me?”, pergunta a mulher ao marido num barco com a estátua da Liberdade ao fundo (depois de nos terem dado um dos mais gloriosos planos da América que vi em cinema: a estátua ao fundo e, um primeiro plano, a bandeira a dardejar ao vento – os americanos deviam imprimir aos milhares e distribuir pelo mundo!). Trata-se de um casal que já ultrapassou todas as idades, que tem os anos marcados no rosto, a pele curtida pelas intempéries da vida, mas que conserva uma vivacidade no olhar e um sorriso malandro em cada palavra que diz. E o Manoel abraça-a e o mundo tem uma razão de ser e tudo parece estar certo e o Colom ser português de Cuba.
Numa situação destas, não há crítica que resista, o Oliveira já passou para o outro lado de tudo o que se conhece, resta-nos olhar incrédulos para o milagre, abrir a boca de espanto, sorrir aparvalhados para a beleza do mar e do céu, ficar extasiado perante um plano em casa de Colom no Porto Santo, ouvir a voz de Luís Miguel Cintra, e entrar no Paraíso.
Se Deus existe, inspirou Manoel de Oliveira. Esta serenidade de olhar, esta doce e divertida forma de olhar o mundo, é o Além. Todo o enigma está aí. Cristóvão Colombo foi apenas o pretexto para o cineasta nos levar consigo a descobrir o inexpugnável. O indecifrável, o indescritível. Não sei se é cinema ou teatro, mau ou bom, nem me interessa. Entra-se na sala, sentamo-nos, começamos por ver aquelas coisas da publicidade e dos anúncios aos filmes futuros, e sim, está bem, alguns devem ser muito bons. Depois aparece a assinatura de Colom no ecrã e entra-se numa outra dimensão. Se ao fim de quinze minutos entrou nessa dimensão, é a viagem pelo maravilhoso. Se não entrou, o melhor é sair. Não tem nada a fazer lá dentro. Este filme não é para si. Mas repare: não digo que esteja errado. É outra “coisa apenas”.
Já agora: o filme tem uma história. Parte de uma obra escrita pelo médico e investigador histórico luso-americano Manuel Luciano da Silva e sua mulher, Sílvia Jorge de Silva, "Cristóvão Colon (Colombo) era Português", que defende a tese da origem portuguesa do descobridor da América. A vida do médico e a sua paixão pelos Descobrimentos são temas centrais do filme, em que, inicialmente, Ricardo Trepa interpreta o papel do jovem Luciano da Silva e Leonor Baldaque o de Sílvia Jorge da Silva. Posteriormente, em idade mais avançada, serão o próprio Manoel de Oliveira e sua mulher Maria Isabel de Oliveira, que se ocupam das mesmas personagens. "Não se trata nem de um filme científico ou histórico, nem de carácter propriamente biográfico, mas sim de uma ficção de teor romanesco, evocativa da grandiosa gesta dos Descobrimentos Marítimos", explicou Manoel de Oliveira num comunicado distribuído sobre a obra, onde acrescentou: “Irá apresentar, contudo, a novidade de que Cristóvão Colon era, afinal, de origem portuguesa, nascido na vila alentejana de Cuba, e ter por isso dado à maior ilha por ele descoberta no mar das Antilhas, o nome da sua terra natal, Cuba". Nos Estados Unidos, Manoel de Oliveira filmou no parque da Estátua da Liberdade, na praça nova-iorquina onde se ergue a estátua de Cristóvão Colombo, junto ao Central Park, no Dighton Rock Museum, na Vila de Berkeley, em Massachussetts, e na cidade de Newport, em Rhode Island. O filme encerra na ilha de Porto Santo, onde Manuel Luciano identifica as suas últimas conclusões no lugar onde, na realidade, Colombo viveu com sua mulher, D. Filipa de Perestrelo.
Mas antes, Oliveira traça o percurso de Manuel Luciano da Silva que, em 1946, parte para a América com seu irmão Hermínio (Ricardo e Jorge Trepa, netos de Oliveira). Nos EUA forma-se em medicina, e regressa a Portugal para casar com Sílvia (Leonor Baldaque, neta de Agustina Bessa Luís), e prosseguir pesquisas de forma a demonstrar que Cristóvão Colombo era português. Neste filme familiar, aparecem ainda Lourença Baldaque (que interpreta uma figura de anjo, trajando as cores nacionais), Luís Miguel Cintra e Leonor Silveira, estes dois últimos que, não sendo familiares directos, o serão mais que muitos outros, dadas as afinidades adquiridas ao longo de décadas de trabalho conjunto.
CRISTÓVÃO COLOMBO - O ENIGMA
Titulo original: Cristóvão Colombo - O Enigma ou Christopher Columbus, The Enigma
Realização: Manoel de Oliveira (Portugal, França, 2007); Argumento: Manoel de Oliveira, segundo obra de Manuel Luciano da Silva e Sílvia da Silva; Música, José Luís Borges Coelho; Fotografia (cor): Sabine Lancelin; Montagem: Valérie Loiseleux; Design de produção : Christian Marti; Guarda-roupa: Adelaide Trepa; Direcção de produção: Dorin Razam-Grunfeld, Michael Sledd; Assistente de realização: Olivier Bouffard, Patrick Huber, Greg Staley; Departamento de arte: Stephane Alberto, Gregory Kenney; Som: Jean-Pierre Laforce, Henri Maïkoff; Produção: Jacques Arhex, François d'Artemare; Companhias de produção: Filmes do Tejo, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação Luso-Americana, Les Filmes d'Après-midi, Manoel de Oliveira Filmes.
Intérpretes: Ricardo Trêpa (Manuel Luciano da Silva, jovem), Manoel de Oliveira (Manuel Luciano da Silva), Leonor Baldaque (Sílvia Jorge da Silva, jovem), Maria Isabel de Oliveira (Sílvia Jorge da Silva), Luís Miguel Cintra (Narrador, Director da casa dee Colombo, Porto santo), Lourença Baldaque (Anjo), Norberto Barroca (velho), Sam Masotto (emigrante), Leonor Silveira (mãe), Robert Gordon Spencer (emigrante), Adelaide Teixeira, Jorge Trêpa (Hermínio da Silva), etc.
Duração: 75 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Classificação etária: M7 12 anos; Locais de Filmagem: Alentejo, Cuba, Évora, Castro Marim, Castelo, Alfeite, Almada, Algarve, Lisboa, Rua Augusta, Baixa, Porto Santo, Madeira, Porto, Sé, Vila Franca de Xira, Portugal, Berkeley, California, Massachusetts, New York, Newport, Rhode Island, EUA; Estreia em Portugal: 13 de Dezembro de 2007.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

99 ANOS DE MANOEL DE OLIVEIRA

Manoel de Oliveira - 99 anos
Manoel de Oliveira, que completou 99 anos, disse à agência Lusa que está determinado a realizar todos os filmes que ainda tem em projecto: "Continuo enquanto me deixarem e enquanto tiver saúde", disse Manoel de Oliveira, garantindo que quer realizar todos os projectos que tem, sem dar prioridade a nenhum em especial.
«Não quero chegar a parte nenhuma, [o cinema] foi só a minha paixão, foi quase que instintivo», afirmou o cineasta. Escusou-se a falar sobre o seu passado, sublinhando que está concentrado apenas nos planos para o futuro: "Não olho para os filmes que fiz", frisou.
Manoel de Oliveira nasceu no Porto em 11 de Dezembro de 1908, mas foi registado como se tivesse nascido no dia seguinte. Com 76 anos de cineasta e 99 de idade, Manoel de Oliveira é o mais velho realizador de cinema do mundo em actividade e o mais premiado do cinema português. «Douro, Faina Fluvial» (1931), «Aniki Bobó» (1942), «Benilde ou a Virgem Mãe» (1974), «Amor de Perdição» (1979), «Francisca» (1981), «Le Soulier de Satin» (1985), «Os Canibais» (1988), «Vale Abraão» (1993) e «O Quinto Império» (2004) são alguns dos mais de 40 filmes que realizou. «Belle Toujours» e «Cristóvão Colombo - O Enigma» (com estreia marcada para 10 de Janeiro) são as obras mais recentes de Manoel de Oliveira, que tem em projecto «O estranho caso de Angélica» e a adaptação para cinema do conto de Eça de Queiroz «Singularidades de uma rapariga loira». Estas foram as palavras recolhidas em "Diário Digital / Lusa".

De pessoal vai o meu maior abraço de profunda amizade para este homem que nos enche de orgulho, não direi só como portugueses, mas como "pessoas".
(esta semana estreia-se o seu último filme: "Cristovão colombo - O Enigma").

domingo, agosto 05, 2007

CINEMA: BELLE TOUJOURS

DIÁLOGO ENTRE DOIS CINÉFILOS,
À SAÍDA DE “BELLE TOUJOURS”
À saída da projecção de “Belle Toujours”, de Manoel de Oliveira, dois espectadores, cinéfilos de longa tradição, trocavam opiniões acaloradas. Os dois eram objectivamente adeptos fervorosos de Luis Buñuel, sendo que um deles não o seria tanto de Oliveira. Mas a conversa decorria animada, começando logo à porta do cinema, e continuando num café da esquina onde ambos se sentaram para a bica da praxe e a troca de impressões que a seguir relato, sem a hipótese de a transcrever palavra a palavra. Socorro-me da memória, que já não é o que foi, mas que ainda vai segurando as pontas do que se ouve.
Cinéfilo Um – … mas, para quê ir buscar uma obra como “Belle de Jour” para ainda por cima a transfigurar através de uma sequela que nunca seria a de Buñuel? Se há filme transgressor, representativo da melhor fase francesa de Buñuel, é este. Se há obra-prima indiscutível que se notabilizou pelo mistério que deixou no ar, atrás de si, que levou o indizível a um plano de perfeição, é esta…
Cinéfilo Dois - … referes-te ao caso da misteriosa caixa de que nunca se soube o conteúdo no filme de Buñuel? Aquela caixa que o cliente asiático abria, na deslumbrada presença de Catherine Deneuve, donde saía um estranho silvo, e que deixava antever prazeres indizíveis, possivelmente sado-masoquista, uma onda que aquecia todo o filme?
Cinéfilo Um – Esse é o aspecto mais marcante, mas todo o filme do Buñuel deixa quase tudo sem explicação, tudo embrenhado nos domínios do subconsciente, do sonho ou do pesadelo psicanalíticos, do mais inquietante que a narrativa automática do surrealismo já nos deu… Ora Manoel de Oliveira parece vir procurar dar respostas ao que não tem respostas. Onde não se deve sequer procurar respostas racionais e inteligíveis. Arranjar soluções para o filme de Buñuel seria aniquilar a obra.
Cinéfilo Dois - O que nunca acontece, nota. A caixa aparece, e o conteúdo continua desconhecido, Severine quer saber de Henri Husson o que o marido conhecia realmente sobre ela e a sua dupla vida, e também não o consegue saber, nem nós, espectadores…
Cinéfilo Um - Pois, é verdade. Mas as conversas entre Henri Husson e o barman são uma explicação demasiado primária da história de “Belle de Jour”. Aquele arrazoado sobre sadismo e masoquismo parece saído das Selecções do Reader’s Diggest. Tudo muito simplista, quando o filme de Buñuel é tudo menos simplista.
Cinéfilo Dois – Acontece que o filme de Oliveira não belisca de qualquer forma o filme de Buñuel (ambos existem por si próprios, com valorização intrínseca, e não é por haver uma sequela que o original se diminui), e o português consegue algumas boas malhas.
É sabido desde sempre, mas sobretudo desde “A Caça” (mas já era visível em “Douro, Faina Fluvial”) o parentesco entre Buñuel e Oliveira, parentesco “à contre coeur”, mas parentesco real. Há muitas afinidades entre o cinema de um e de outro, apesar de Buñuel ser profundamente anti-clerical e Oliveira nunca desdizer a sua costela cristã. Mas as aparências iludem: nem Buñuel era o ateu por que se queria fazer passar, nem Oliveira o cristão exemplar que muitos julgam ver à transparência. Um e outro se referem a uma mesma religiosidade, ambos ostentam uma imagética muito particular, o cinema opaco de Buñuel tem muito a ver com a representação obsessiva de Oliveira. Repara que neste filme não há um plano que não seja objectivamente uma “representação” de actores, logo desde o plano inicial, da orquestra tocando Dvorak no auditório da Gulbenkian. Tudo é “representação”, tudo se passa num palco (ou num décor), até os passeios de Henri Husson por essa Paris outonal, com a estátua de Joana d’Arc sempre no horizonte, as colunatas de pedra, as portas dos hotéis, culminando nessa magnífica cena de jantar num quarto de hotel, à luz das velas, em que quase nada se diz, onde apenas se pensa e repensa o filme de Buñuel, “à luz” do olhar de Oliveira. Eu sei que este não é um filme qualquer, é um filme de Oliveira, o que pressupõe logo uma estética muito determinada que, ou se aceita ou se rejeita, de que se gosta ou não se gosta. Eu por vezes gosto muito, doutras não tanto, desta feita fico hesitante, a meio caminho, mas sou incapaz de recusar integralmente. Não esqueço que este homem tem 97 anos, uma lucidez desarmante, uma inesperada vitalidade, uma austeridade de processos e, ao mesmo tempo, uma ironia que me tocam profundamente. Acho uma bonita homenagem ao filme do mestre, feita com muito amor e alguma perversidade. Penso que Buñuel teria gostado.

Cinéfilo Um – Meu caro, a integridade de Oliveira nunca a ponho em causa. Se há homem íntegro no cinema actual, último avatar de uma floresta de génios de que restam poucas árvores, será ele. Mas esta sua deliberada invasão dos terrenos do surrealismo não me parece conseguida, surge-me algo parecido com a visão iconoclasta de Buñuel, revista pelo olhar “culpado” de um católico que por vezes “pecou”, ao longo da vida, por “pensamentos, palavras e actos”, mas no final da mesma se mostra subitamente “arrependido”. Não contente em se arrepender sozinho para descansadamente ir para o Céu, quer levar consigo, postumamente, o seu amigo Buñuel... Catherine Deneuve terá tido razão em não querer embarcar na aventura.
Cinéfilo Dois – Não o vejo assim, além de que Bulle Ogier a substitui à altura. Aliás, ela e Michel Piccoli vão muito bem (o que já não direi do restante elenco, aí dou a mão à palmatória).
Nesta altura o Cinéfilo Dois levanta-se, vai ao balcão e pede um whisky, “duplo!”. O empregado, em vez de um “tout de suite”, diz-lhe que o servirá de imediato. Quando chega à mesa, já os dois cinéfilos reataram a conversa sobre “Belle Toujours” que o empregado, “sem querer ser intrometido”, disse que também já vira (“O cinema fica mesmo aqui à frente!”) e que não compreendera uma coisa:
Empregado – Parece que este filme é baseado num outro, dos anos 60, de Buñuel… Ora eu tenho 29 anos, não o vi nunca. Como posso saber de que tratava, se nem existe em versão DVD (já me fui informar na Fnac!)? Peço desculpa pela intromissão, mas os senhores são clientes habituais…
Cinéfilo Um – Nenhum problema com isso. É sempre bom descobrir pessoas que gostam de cinema. Você não tem Internet? É fácil procurar por “Belle de Jour”, ler umas coisas sobre o filme. Na verdade este de Oliveira, procura ser uma homenagem a esse outro filme, a Buñuel e Jean-Claude Carrière, ambos argumentistas que adaptaram inicialmente o romance de Joseph Kessel …
Cinéfilo Dois – …mas posso dar-lhe uma ideia num minuto. Este é daqueles filmes que, ou se demoram dias a tentar descrever, ou se resumem, de forma muito simplista, em meia dúzia de linhas. A história do filme de Buñuel fala de um casal de burgueses bem instalados na vida: ele é Pierre Serizy (Jean Sorel), médico, ela é Severine (Catherine Deneuve).
Só para lhe dar uma ideia da complexidade da narrativa, o filme começa com o casal passeando de carruagem. De repente o marido pára e ordena aos cocheiros que dispam a mulher, a amarrem a uma árvore, a torturem e a violem a seu belo prazer. Estamos no domínio mais puro do sado-masoquismo ou do bondage, mas afinal tudo não passa de um sonho. Severine acorda e descobre que sonhara, que tivera um pesadelo…
Cinéfilo Um – Terá sido mesmo um pesadelo? Não seria a realidade sonhada? Os desejos mais íntimos satisfeitos?
Cinéfilo Dois – Ora aí está toda a complexidade da obra. Nunca se saberá nada. O que é sonho, o que é realidade, o que se deseja, o que se teme, ou mesmo quando se teme o que se deseja ou se se deseja o que se teme. Puro surrealismo, aqui atravessando zonas de um freudianismo de profunda pulsão libidinal.
Empregado – estou a ver… quer dizer… procuro ver…
Cinéfilo Dois – Continue a procurar, enquanto não aparecem mais clientes. Eu também vou continuar: Severine percebe-se que ama o marido, mas que está sexualmente descontente. Para dar satisfação a si própria e ao marido (só sexualmente feliz dará prazer ao marido), e aceitando o conselho de um amigo, Henri Husson (Michel Piccoli), que lhe indicara o endereço de uma casa de prostituição fina, resolve procurar Madame Anaïs (Geneviéve Page) para aceitar clientes diurnos. Passará a ser, de dia, uma puta de luxo, para clientes de estimação, e de noite a bela e amantíssima esposa de Pierre.
Empregado – O Michel Piccoli aparece então nos dois filmes a fazer o mesmo papel…?
Cinéfilo Dois – Pois aí está outro dos argumentos de Oliveira: ver o que aconteceu àquelas personagens 38 anos depois. O Piccoli aceitou participar na sequela, a Catherine Deneuve não, foi substituída pela Bulle Ogier. Ambos são Henri Husson e Severine quase quarenta anos depois. Encontram-se ocasionalmente num teatro, ouvindo a 8ª Sinfonia de Dvorak, ela foge ao confronto, vai-se esgueirando ao destino, até que o que tem de acontecer, acontece e jantam juntos num quarto de hotel, rodeados de criados…
Empregado – Cena pouco real… Se queriam estar sós, não seria preferível jantarem sós, sem aquela gente toda à volta?
Cinéfilo Um – Meu caro, este casal não quer sexo, quer relembrar o passado. Na impossibilidade de viverem o presente, querem reviver o passado. E acertar contas. Ele vingar-se dela, ela acertar contas consigo própria. Ambos querem a paz possível para a inquietação que os atormenta. Ela afirma-se mesmo “uma outra mulher”. Quer “entrar para um convento”, talvez para se martirizar por um passado de culpa. Mas a inquietação permanecerá: nenhum alcançará os seus intentos. Tanto ela como ele não conseguirão acalmar o seu íntimo, saber o que não sabiam, ir além da realidade mais aparente. Este não é um filme para resolver as dúvidas do outro filme, mas para as prolongar, 38 anos depois. Buñuel levantou as questões, Oliveira manteve-as.
Empregado – Qual a vantagem? Se não resolve nada, nem levanta as questões que já tinham sido colocadas numa obra anterior?
Cinéfilo Um – Essas são as virtudes e os limites do filme. O olhar é diferente. Buñuel nunca pensaria em mandar Severine para o convento, expiar as culpas. Era mais provável manter Severine aos 70 anos a frequentar ainda a casa de Madame Anais. Por isso Oliveira prolonga as dúvidas, mas numa outra direcção: a sua. Curioso este entrelaçar de caminhos, este cruzar de olhares.
Cinéfilo Dois – Traga aí a conta. Tenho de ir. Sabem que mais? Dois velhos sabidos, é o que é!
Ambos pagam, e saem para a luz coada da noite. Cruzam-se com duas garridas senhoras que segredam entre si, antes de entrarem no café.
Cinéfilo Um – Olha lá, estas não são…?
Cinéfilo Dois - … se não são, são tão parecidas!...
Ambos riram. Corre o pano e ouve-se Dvorak em fundo. Não é Paris, não chove. Passa um galo no corredor de um hotel, por entre as portas dos quartos. Uma está aberta.
Lisboa, 20 de Julho de 2007

in "O Progresso", nº 1, Agosto de 2007