terça-feira, setembro 26, 2006

CINEMA - O Paraíso, Agora

“O PARAÍSO, AGORA”


“Já foste ao Cinema”, pergunta ela. “Já, uma vez: incendiámo-lo.”, diz ele.

O que leva um homem de vinte e tal, trinta e poucos anos a enrolar à volta da barriga uma carga de explosivos e a fazer-se explodir num mercado, num autocarro, numa estação de metro, matando dezenas ou centenas de pessoas, a maior parte das quais inocentes, sem terem nada a ver com a causa que esse suicida poderá defender, ao assim se imolar?
Será fanatismo político e religioso? Será uma tal indiferença à vida que nada o leva a querer manter-se por cá? Será um tal ódio ao resto da humanidade que a todos pretende assassinar? Será uma mente totalmente desequilibrada? Será que uma pessoa igual a nós, a mim ou a si, seria capaz de um tal acto, se as circunstâncias fossem as mesmas?
Estas as interrogações a que de certa forma responde um dos filmes sensação desta temporada: “Paradise, Now”, assim no título inglês, porque não sabemos escrevê-lo em árabe.
Said (Kais Nashef) e Khaled (Ali Suliman) são dois amigos que se conhecem desde miúdos e trabalham juntos numa oficina de mecânica de automóveis. Um dia, um deles é despedido e o outro reencontra uma antiga amiga, Suha (Azabal), que estivera fora durante largo tempo e por quem sente uma forte atracção. Retribuída, diga-se de passagem, apesar da diferença social que existe entre ambos. Said é pobre, Suha vive nos bairros mais elegantes da cidade, uma pequena cidade palestiniana, que faz fronteira com Telavive. Onde explodem bombas, e ninguém quase dá por isso, de tão frequente se tornou a violência.
Este o início de “Paradise Now”, uma obra de Hany Abu-Assad (escrita por este, de colaboração com Bero Beyer e Pierre Hodgson), que conseguiu provocar a admiração de meio mundo, ganhar o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro, ganhar, no Festival de Berlim, o Prémio do Público, o Prémio de Melhor Filme Europeu e o Prémio Amnistia Internacional, para lá de ter sido o primeiro filme palestiniano a ser nomeado para Melhor Filme Estrangeiro na cerimónia dos Óscares 2006.
Said e Khaled quando se sentam num velho banco de automóvel a olhar a cidade, enquanto fumam narguilé, bebem café e conversam sobre a vida, são dois gajos parecidíssimos com outros das zonas suburbanas de Lisboa, Paris ou Nova Iorque. A cidade (Nablus) que se estende a seus pés e que não tem nada a ver com as outras atrás mencionadas. A miséria, a incultura, a crendice, a falta de horizontes são algumas das razões que levam estes homens a entregarem-se a actos de desespero como os atrás referidos. Aliás, o filme de Hany Abu-Assad não é de todo ingénuo: há uma altura em que o “comissário político” palestiniano explica a alguém que lhe pergunta se ainda anda pelas escolas, que as continua a acompanhar, porque é muito importante saber o que se ensina aos alunos. A “lavagem ao cérebro” é indispensável para eles continuarem a acreditar no que lhes dizem durante o resto da vida e, quando os mandam envolverem-se em plástico e explodirem, o fazerem pensando que vão ser heróis cheios de honrarias na Terra (os cartazes com os seus nomes na praça central) e no Paraíso, onde os espera o seu Deus, rodeado de virgens.
Assim acontece com Said e Khaled que são chamados por elementos da resistência palestiniana para cumprirem uma “tarefa”, isto é, perpetrarem um atentado suicida na capital israelita. Said e Khaled não pestanejam e aprestam-se a cumprir o que foi deliberado. Vestem-se como se fossem para um casamento, mas por baixo dos fatinhos pretos esconde-se a morte, um hábil dispositivo de explosivos que basta puxar um cordelinho para fazer ir pelos ares algumas dezenas de pessoas. Há então alguma lógica neste mecanismo mental que leva homens a passarem por bombas? Óbvio que há. "Paradise Now", ao procurar humanizar essas personagens que diariamente surgem nos nossos telejornais já quase apenas como números, eles e as suas vítimas, reflecte obviamente sobre o conflito do Médio Oriente que dramaticamente se estende por mais de meio século. Sem solução aparente à vista e despoletando à sua volta muitos outros conflitos a este indissociavelmente ligados. O que se joga neste filme são críticas em diversas direcções, o que torna o filme complexo e de maneira nenhuma maniqueísta. Hany Abu-Assad torna seu porta-voz a jovem Suha, que “sabe” que este conflito se pode resolver sem o sistemático recurso à violência de um lado e outro. Mas o realizador, um árabe israelita nascido em Nazaré, que roda com capitais alemães, franceses, holandeses e israelitas (que mistura!), apresenta também a versão mais radical. É um dos jovens que explica que do. Vestem-se como se fossem para um casamento, mas por baixo dos fainho”se aceitarmos que os mais fortes devorem os mais fracos, então não seremos melhores do que os animais”. Mais, um deles teve no pai um colaboracionista que foi morto pelos resistentes. Ele sabe que o pai era um “homem bom”, mas sabe também que as traições se pagam. Sabe muito pouco mais. Sabe apenas aquilo que diariamente lhe inocularam no cérebro: “que Alá é grande e Maomé o seu profeta.”
"Paradise Now!" sobressai pelo humor com que consegue distanciar esta história de horror que a televisão banaliza diariamente. As despedidas dos heróicos suicidas são registadas em vídeo, mas nem tudo corre bem: à pose digna da primeira “take” que a câmara não grava, sucedem-se outras muito menos heróicas, incluindo o registo de recados para familiares. Quando atravessam a fronteira para atingirem Telavive, perdem-se um do outro e vários episódios caricatos se sucedem. Regressam à base e voltam a partir, mas as dúvidas assaltam um e outro. Ao contrário do que seria de supor, é o que tem mais razões para desistir que vai até ao fim.
Seguramente que este é um filme visto com desconfiança pelos “falcões” de Israel e da Palestina. Para uns torna simpáticos e “humanos”, iguais a qualquer um de nós, os “homens-bombas”. Para outros, o simples esboço das dúvidas dos protagonistas converte em perigosa esta obra. Se Israel nunca é bem vista e no final o passeio por Televive torna insuportável a comparação com a vida em Nablus, não é menos evidente que os “controleiros” não são totalmente simpáticos (o diálogo entre um deles e os futuros “heróis” é significativo da hipocrisia reinante: “E o que acontece depois?”; “Dois anjos virão buscá-los”; “Tem certeza?”; “Absoluta”.) e o negócio dos vídeos é um “achado” do mais acabado humor negro: um negociante de vídeos explica que os registos que se vendem melhor são os dos fuzilamentos dos “colaboracionistas”, muito melhor que os das despedidas dos “ heróis mártires”. Enfim, nem aqui o comércio da morte deixa de progredir.
Há uma cena de alguma simbologia que não aparece por acaso: quando se preparam para conduzir os dois “executantes” ao outro lado da fronteira, todos os elementos do grupo resistente se sentam para uma lauta refeição, que para dois será “uma última ceia”. As semelhanças são muitas com a representação tradicional do “Ceia de Cristo”. Esta aproximação iconoclasta tem apenas uma ideia: sublinhar o sacrifício em nome de uma ideia, de uma causa. Também a cena final, elidindo o atentado, antevisto apenas pelos olhos daquele que se vai imolar, é um bom fecho para um filme que apela ao diálogo mas sempre vai explicando por que algumas coisas acontecem: “Prefiro ter o Paraíso na cabeça do que o inferno nesta vida.”

O PARAÍSO, AGORA (Paradise Now), de Hany Abu-Assad (França, Alemanha, Holanda, Israel, 2005), com Kais Nashef, Ali Suliman, Lubna Azabal, Amer Hlehel, etc. 90 min; M/ 12 anos.

1 comentário:

Isabel Magalhães disse...

Excelente artigo com a qualidade a que nos habituou ao longo dos tempos.

Ah! tomei conhecimento do seu espaço no blogue da minha amiga Maria Sobral Mendonça. :)

Votos de uma boa noite.