O PERFUME
Ou eu estou muito enganado ou “O Perfume”, de Patrick Süskind, era (é) um excelente romance, um dos que mais perduram na minha memória entre os lidos nos últimos vinte anos. Creio que o que mais me impressionou não foi o enredo histórico, vagamente policial, mas a descrição de uma cidade de Paris do século XVIII, cujo cheiro, os vários odores, pestilentos quase todos, se me entranharam no nariz, no corpo, na memória. Ainda hoje, recordando o livro, me parece quase impossível que uma obra literária tivesse conseguido lograr esse efeito físico de transportar os cheiros dentro de si de forma tão evidente.
Ora bem, essa foi a primeira e logo mais grave decepção que o filme de Tom Tykwer trouxe consigo, logo desde o início, desde essa cena no mercado de peixe de Paris, onde nasce o protagonista, Jean-Baptiste Grenouille, que a mãe prontamente abandona no chão, como fizera a quatro anteriores crias que depois atirara ao rio. Há muita porcaria pelo chão, há muita brutalidade a cortar o peixe na bancada, mas não há a sensação de cheiro, por muito que recém-nascido levante a narina a procurar um cheiro que o guie. É ele e somos nós. Não é por colocar um nariz em grande plano que se atinge e se propaga a sensação de cheiro. O livro, que me lembre, nunca andou de narina erguida, mas descrevia cenas que, uma acrescentando a outra, criavam essa ilusão de cheio que tudo abafava.
Depois, durante a puberdade e a juventude, Grenouille percorre o mesmo calvário de Oliver Twist, empregado numa tinturaria e pelaria onde era açoitado e explorado, mas sempre a exercitar um olfacto bastante apurado. Olfacto que o leva até à perfumaria de Giuseppe Baldini, onde começa por aprendiz, mas rapidamente se mostra mestre na arte de identificar e misturar odores, copiando e criando perfumes raros e cada vez mais sofisticados.
Ora bem, essa foi a primeira e logo mais grave decepção que o filme de Tom Tykwer trouxe consigo, logo desde o início, desde essa cena no mercado de peixe de Paris, onde nasce o protagonista, Jean-Baptiste Grenouille, que a mãe prontamente abandona no chão, como fizera a quatro anteriores crias que depois atirara ao rio. Há muita porcaria pelo chão, há muita brutalidade a cortar o peixe na bancada, mas não há a sensação de cheiro, por muito que recém-nascido levante a narina a procurar um cheiro que o guie. É ele e somos nós. Não é por colocar um nariz em grande plano que se atinge e se propaga a sensação de cheiro. O livro, que me lembre, nunca andou de narina erguida, mas descrevia cenas que, uma acrescentando a outra, criavam essa ilusão de cheio que tudo abafava.
Depois, durante a puberdade e a juventude, Grenouille percorre o mesmo calvário de Oliver Twist, empregado numa tinturaria e pelaria onde era açoitado e explorado, mas sempre a exercitar um olfacto bastante apurado. Olfacto que o leva até à perfumaria de Giuseppe Baldini, onde começa por aprendiz, mas rapidamente se mostra mestre na arte de identificar e misturar odores, copiando e criando perfumes raros e cada vez mais sofisticados.
Traumatizado desde infância, Grenouille quer que as pessoas gostem dele, o amem à força, e para isso vai procurando criar uma essência que seja o supra sumo dos perfumes, e não hesita perante nada. Ele, que nunca soube amar, que apenas procura ser adulado, e, como qualquer tiranete populista em busca do aplauso fácil dos gentios, não olha a meios para atingir resultados, vai de assassinato em assassinato, de virgem em virgem, até possuir a quinta essência da fragrância que o aproxima dos anjos. Engano, que não há anjos na terra.
O livro possui um misterioso impacto, detectado nos muitos milhões (12) que o leram até hoje e dele fizeram um dos mais importantes best sellers das últimas décadas. O filme reduz tudo a um cinzentismo sem relevo ou densidade simbólica ou mítica: uma primeira parte piegas e decorativa, no pior sentido da palavra, com rodriguinhos manhosos, e cenas de um “realismo” pretensamente insuportável, para na segunda parte se transformar num thriller mais suportável, é certo, com uma linguagem bem mais ritmada, mas sem qualquer essência subjacente. No final, para que os espectadores percebam que se trata de um “filme com moral”, o locutor de serviço vem-nos explicar o que devíamos ter percebido ao longa das duas horas e meia de projecção, mas a arte do realizador não conseguiu transmitir.
“O Perfume – História de um Assassino” procura jogar com uma reconstituição histórica “convincente”, mas nem consegue enfiar uma peruca com arte e engenho a um Dustin Hoffman aqui completamente perdido. Quer criar grandes painéis, “murais” de personagens, mas fica-se pelo amontoado bacoco de figurantes, na linha de um “peplum” italiano de quinta categoria. A sequência na praça central da cidade de Grasse, com a multidão a preparar-se para assistir a uma execução bárbara que se transforma num bacanal, é simplesmente lamentável.
Se a imagem é, ora estereotipada, ora lamechas, a banda sonora é sempre intragavelmente lamechas. Dizem que esta foi a produção alemão mais cara de sempre, e que o realizador foi escolhido pela sua direcção em “Corre, Lola, Corre!” Cheira-me que nem tudo corre bem, lá para os lados da cinematografia alemã. A verdade é esta: este ano tivemos já dois “best sellers” históricos assassinados no cinema. Apesar de provirem de obras literárias de qualidade e valores desiguais (eu até gosto de Dan Brown, mas Suskind é outra música!); tanto “O Código Da Vinci” como “O Perfume” se arrastam numa mediocridade de tom que irrita. Salvam-se duas ruivas bonitas e um Alan Rickman de boa voz, mas não sei se chegam só por si para colmatar a terrível machadada em Dustin Hoffman que deve ter o pior papel da sua carreira.
Parece que muitos realizadores se recusaram a adaptar “O Perfume” (fala-se nos casos de Milos Forman, Tim Burton, Martin Scorsese, Ridley Scott ou Stanley Kubrick, que declarou que o mesmo era “infilmável”), mas o produtor alemão Bernd Eichinger (que se especializou em obras como “Resident Evil”, “Der Untergang” ou “Fantastic Four”) comprou os direitos do romance por quase 10 milhões de euros e gastou mais 50 milhões na sua produção. "Perfume: The History of a Murderer” não é a história de alguém que não se consegue adaptar à realidade, mas apenas a história de um filme que nunca consegue transmitir a essência, pode mesmo dizer-se a fragrância, da obra literária onde se inspira.
O livro possui um misterioso impacto, detectado nos muitos milhões (12) que o leram até hoje e dele fizeram um dos mais importantes best sellers das últimas décadas. O filme reduz tudo a um cinzentismo sem relevo ou densidade simbólica ou mítica: uma primeira parte piegas e decorativa, no pior sentido da palavra, com rodriguinhos manhosos, e cenas de um “realismo” pretensamente insuportável, para na segunda parte se transformar num thriller mais suportável, é certo, com uma linguagem bem mais ritmada, mas sem qualquer essência subjacente. No final, para que os espectadores percebam que se trata de um “filme com moral”, o locutor de serviço vem-nos explicar o que devíamos ter percebido ao longa das duas horas e meia de projecção, mas a arte do realizador não conseguiu transmitir.
“O Perfume – História de um Assassino” procura jogar com uma reconstituição histórica “convincente”, mas nem consegue enfiar uma peruca com arte e engenho a um Dustin Hoffman aqui completamente perdido. Quer criar grandes painéis, “murais” de personagens, mas fica-se pelo amontoado bacoco de figurantes, na linha de um “peplum” italiano de quinta categoria. A sequência na praça central da cidade de Grasse, com a multidão a preparar-se para assistir a uma execução bárbara que se transforma num bacanal, é simplesmente lamentável.
Se a imagem é, ora estereotipada, ora lamechas, a banda sonora é sempre intragavelmente lamechas. Dizem que esta foi a produção alemão mais cara de sempre, e que o realizador foi escolhido pela sua direcção em “Corre, Lola, Corre!” Cheira-me que nem tudo corre bem, lá para os lados da cinematografia alemã. A verdade é esta: este ano tivemos já dois “best sellers” históricos assassinados no cinema. Apesar de provirem de obras literárias de qualidade e valores desiguais (eu até gosto de Dan Brown, mas Suskind é outra música!); tanto “O Código Da Vinci” como “O Perfume” se arrastam numa mediocridade de tom que irrita. Salvam-se duas ruivas bonitas e um Alan Rickman de boa voz, mas não sei se chegam só por si para colmatar a terrível machadada em Dustin Hoffman que deve ter o pior papel da sua carreira.
Parece que muitos realizadores se recusaram a adaptar “O Perfume” (fala-se nos casos de Milos Forman, Tim Burton, Martin Scorsese, Ridley Scott ou Stanley Kubrick, que declarou que o mesmo era “infilmável”), mas o produtor alemão Bernd Eichinger (que se especializou em obras como “Resident Evil”, “Der Untergang” ou “Fantastic Four”) comprou os direitos do romance por quase 10 milhões de euros e gastou mais 50 milhões na sua produção. "Perfume: The History of a Murderer” não é a história de alguém que não se consegue adaptar à realidade, mas apenas a história de um filme que nunca consegue transmitir a essência, pode mesmo dizer-se a fragrância, da obra literária onde se inspira.
(Agora vou reler um pouco de "O Perfume", de Suskind.
Fiquei com saudades da obra. Da que eu conhecia.)
O PERFUME — HISTÓRIA DE UM ASSASSINO (Perfume: The Story of a Murderer), de Tom Tykwer (Alemanha, França, Espanha, 2006), com Ben Whishaw, Dustin Hoffman, Alan Rickman, Rachel Hurd-Wood, Corinna Harfouch, Birgit Minichmayr, etc. 147 min; M/ 12 anos.
Como eu gosto deste livro, como eu gosto destes cartazes e como eu gosto do Alan Rickman, desde que o vi no filme Truly, Madly, Deeply, um filme de uma beleza incrível.
ResponderEliminarRealmente não sei o que fazer em relação a este filme. Não se trata propriamente do Código Da Vinci em que, apesar de estar muito longe de ser um dos meus livros favoritos, devo admitir que o filme foi uma desilusão ainda maior do que o trabalho literário. Com o Perfume não é bem assim, a desilusão pode, inclusivé, deixar marcas.
Acho que prefiro ficar com as belas imagens do cartaz, a ideia do Alan Rickman e o cheiro do livro.
Já aqui passei uma vez ou outra mas desta vez cheguei cá via m.m., um pouco como uma personagem de desenho animado quando flutua atrás do cheiro.
ResponderEliminarNão vou ver o perfume...já li o cheiro em cada página do livro. quase que diria ter aprendido a pensar alguns dos cheiros com esse romance.
Procurar o cheiro traduziu-se em procurar-se a si mesmo invejando os que, ao contrário dele, têm cheiro.
Os usos de um século distante, os cheiros da cidade...
Confesso que na altura em que li gostei bastante. Teria medo de reler, porque tal como com alguns filmes que sucedem os livros, uma segunda leitura filtra gostos passados e às vezes desaponta.
Volto a cumprimentá-lo sob esta capa "algo" anónima mas lembro-me bem de conversas que tivemos há alguns anos.
Merdinhas, como deve calcular não me lembro, só porque não me recorda quando e onde. Mas os seus "Do segredo das Artes" e "Big blog is watching you" são de leitura (e visão) reconfortante. Que tal um encontro, durante o Encontro de Blogues de Cinema. Já viu no meu blog?
ResponderEliminarObrigado M.M. pelo "querido" no seu excelente blog. Fiquei derretido. Já viu a sugestão do "Encontro de bloguesw de Cinema"? Não vai aparecer com o seu belo blogue? Um beijo LA
ResponderEliminarH: Mais uma vez de acordo. Mas quando estivermos em desacordo, lá virá o dia, estaremos ainda e sempre de acordo.
ResponderEliminarConcordo plenamente com o texto do Lauro António. O que me incomodou verdadeiramente no filme do Tykwer foi que ele não se tivesse libertado da herança do excelente 'Lola Rennt'. O Perfume é mais do mesmo: a mesma montagem 'pós-moderna', a mesma câmara frenética e até, mais uma vez, um pouco da teoria do caos. Tudo isto poderá ter funcionado magnificamente com a Lola, mas O Perfume é um material completamente diferente e o realizador não o compreendeu. Para mim, que sou um fã do trabalho do Tom Tykwer, foi uma desilusão.
ResponderEliminarinteressante apontamento sobre o filme e o livro, ainda assim e tendo gostado muito do livro, não desgostei assim tanto da adaptação ao cinema não obstante a narração ter-me parecido um pouco desnecessária e foi de facto um recurso mais fácil.
ResponderEliminarObrigado pelo seu Blog....sou uma visita atenta!
Não vi nada sobre esse tal encontro de blogs (blogues)...
ResponderEliminar???
...e não se recordar de quando e onde falou com o "merdinhas" parece-me perfeitamente natural. Lá para a Av. de Roma. Há muitos anos. Mas, mesmo que adivinhasse, aqui sou merdinhas, mais nada. Por lá tinha uma identidade mais definida.
Bem, parece que estou sozinha na minha apreciação do filme. Mesmo após a releitura do livro. Porque acredito que dois meios totalmentes distintos possam estar impregnados de uma mesma energia. Podem ser apenas os meus olhos, claro. Ou simplesmente a minha vontade de ser diferente e subversiva!
ResponderEliminar:)
Acho que as pessoas estão procurando no filme a sensação que encontraram no livro e não foi isso que o diretor tentou fazer. Realmente, acho que é um livro infilmável, mas, filosoficamente, prefiro muito mais o filme que o livro.
ResponderEliminarO Grenouille do livro é um ressentido, reacionário. O do filme é alguém diferente de nós, que tem sua própria forma de sentir o mundo e que é indiferente em relação a alguém viver ou não porque o valor atribuído a vida humana é algo construído (embora eu concorde com essa construção) e ele nunca tinha conseguido formar laços que o levassem a essa conclusão.
O protagonista elabora um processo unilateral de conquistar a essência do objeto de desejo, por não entender que esse vira outra coisa quando forçado desse modo (no caso do filme, o cheiro se perde com o tempo ou se torna mero fetiche). O que ele percebe no final do filme é que o melhor jeito de conseguir o que busca é a reciprocidade, a comunicação.
No final do filme, ele se mata talvez pela culpa de ter assassinado quem ele poderia ter amado. Praticou um amor-possuir unilateral, e no fim do filme, as pessoas fazem o mesmo com ele.