quarta-feira, dezembro 20, 2006

MAIS PATRICK SUSKIND

"O CONTRABAIXO"

Depois de reler "O Perfume", de Patrick Suskind, a propósito da adaptação para cinema, resolvi reler “O Contrabaixo”, cá por coisas, e ler “Sobre o Amor e a Morte”, recentemente lançado em Portugal. Primeira constatação a retirar, o homem é mesmo um “autor” com uma temática muito precisa e obsessões característica. Os seus heróis são personagens com muito pouco de heróico, repelidas desde sempre pela sociedade, a família, o meio ambiente, perdidas numa solidão traumática, que criam recalcamentos e frustrações tremendas que são a base das suas obras. Era assim em “O Perfume”, é assim com essa figura de contrabaixista que vive isolado, sem amor, obcecado pela presença omnipresente do instrumento. É assim nesse (meio) ensaio sobre Jesus Cristo e Orfeu, figuras míticas que o autor opõe e entre si, criando uma interpretação nova para Jesus Cristo, na sua relação com o erotismo, o prazer, outro dos temas centrais de Suskind.

Veja-se uns excertos de “O Contrabaixo”, muito claras nas intenções:

(…) Não, de facto não se nasce para contrabai­xista. Até lá se chegar, passa-se por desvios, aca­sos e desilusões. Posso dizer-vos que lá na nossa Orquestra Nacional, de oito contrabaixistas não há um único a quem a vida não tenha abanado fortemente e a quem os golpes por ela desferidos ainda hoje se notem bem na cara. O percurso típico de um contrabaixista é, por exemplo, o meu: pai dominador, funcionário, arredado das artes; mãe fraca, flautista, dada às artes; eu, en­quanto criança, amo a minha mãe com idolatria; esta ama o meu pai, que por sua vez ama a minha irmã mais nova; só a mim ninguém me amou, na minha maneira de ver, claro. De tanto odiar meu pai decido em vez de funcionário ser artista; para fazer pirraça à minha mãe escolho o instru­mento maior, o menos portátil e o menos indi­cado para solos; e para quase a ofender de morte e, ao mesmo tempo dar ainda ao meu pai uma bofetada sem mão, acabo mesmo por vir a ser funcionário: como contrabaixista, na Orquestra Nacional, terceiro nível. É assim que, diariamente, através do contrabaixo - o maior de todos os instrumentos que lembra o corpo feminino - violo a minha própria mãe; e esta eterna relação sexual incestuosa simbólica é obviamente uma constante catástrofe moral e esta catástrofe moral inscreve-se no rosto de todos nós contrabaixistas. Já basta no que diz respeito ao lado psicanalítico do instrumento. Só que reconhecer isto não ajuda lá muito, porque... a psicanálise tem os dias contados e a própria psicanálise também o sabe. Porque, em primeiro lugar, a psicanálise põe mais questões do que as que ela própria é capaz de resolver, como uma hidra que corta a sua própria cabeça, em sentido figurado, claro está; e este é o conflito interior insolúvel da psicaná­lise com que ela constantemente se debate. E, em segundo lugar, hoje em dia, a psicanálise acabou por se transformar em património comum. Isto é do domínio público. De cento e vinte e seis membros da orquestra, mais de metade faz psicanálise. Podem pois imaginar que aquilo que hoje podia ser, ou poderia ter sido talvez uma descoberta científica sensacional, é hoje em dia absolutamente normal, de tal modo que já ninguém se preocupa com isso. Ou espanta-vos que dez por cento das pessoas sofra de depres­são? Espanta-vos? A mim não. Estão a ver! É por isso que eu não preciso da psicanálise para nada. Teria sido muito mais importante, já que estamos a falar no assunto, que aqui há cem ou cento e cinquenta anos tivéssemos tido uma psicanálise. Nesse caso, teríamos, por exemplo, sido poupados a algumas das obras de Wagner. O sujeito era altamente neurótico. Por exemplo, uma obra como o Tristão, a maior que ele jamais escreveu, como é que ela surgiu? Afinal só porque ele andou metido com a mulher de um amigo, que o sustentou anos a fio. Anos a fio! E esta traição, esta, como hei-de dizer, esta forma mesquinha de relacionamento mortificou-o de tal forma em relação a si mesmo que se viu forçado a fazer, segundo se diz, a maior tragédia de amor de todos os tempos. Total repressão através de total sublimação. “O mais elevado prazer” etcetera, sabem. Naquela época, o rompimento conjugal era ainda uma coisa invulgar. E agora imaginem Wagner a ir, por causa disso, ao psicanalista! Pois... é certo e sabido que não teria havido Tristão nenhum! Disto não há dúvida, pois a neurose só por si não teria sido suficiente. Aliás ele batia na mulher, o Wagner, Na primeira, claro. Não na segunda. Nessa, nem pensar. Mas a primeira apanhava. Em suma, uma pessoa desagradável. Pode bem ter sido um tipo extremamente simpático, insinuante a mais não poder, mas desagradável. Imagino que ele nem a si mesmo se suportava. Também andava permanentemente com eczemas na cara causados pela... antipatia. Enfim. Mas as mulheres faziam bicha atrás dele. O tipo exercia um tremendo fascínio entre as mulheres. Difícil de compreender...”
Ou
(...) Na música, a mulher ainda por cima tem um papel secundário. Quero dizer, na realização musical criadora, na composição. A mulher tem um papel secundário. Ou será que conhecem alguma compositora célebre? Uma única? Estão a ver! Já alguma vez tinham pensado nisso? Mas deviam. Pensemos... O feminino na música. Vejamos: o contrabaixo é um instrumento feminino. Apesar do seu género gramatical é um instrumento feminino e, contudo, extremamente sério; aliás como a própria morte que é feminina na sua crueldade salvadora, isto falando em termos associativos; ou como se queira, na sua inevitável função maternal surge também, por outro lado, como complementaridade no princípio de vida, como fertilidade, terra-mãe, etcetera, tenho razão? E nesta função, falando agora outra vez em termos musicais, o contrabaixo como símbolo de morte luta contra o Nada absoluto que ameaça simultaneamente afundar Música e Vida. Nós, os contrabaixistas, somos neste contexto os Cerbéros nas catacumbas do Nada, ou, por outras palavras, Sísifo que carrega aos ombros, montanha acima, a carga sensual de toda a música, ora façam favor de reter esta imagem!”
Ou finalmente:
“Sabem, muitas vezes estou só. Em casa estou quase sempre sozinho, nos dias de folga oiço então uns discos, às vezes pratico, mas não há ninguém de quem eu goste, é sempre a mesma coisa. Hoje à noite temos a estreia do Ouro do Reno no festival; dirige a orquestra o maestro convidado Carlo Maria Giulini e na primeira fila está o Presidente do Conselho de Ministros; a nata da sociedade, os bilhetes vão até trezentos e cinquenta marcos, um disparate. Mas eu estou-me nas tintas. Praticar também não pratico. No Ouro do Reno somos oito, mas isso de que é que vale, que é que interessa o que cada um toca. Quando, de certa forma, o primeiro dá o tom, os outros lançam-se atrás dele... A Sarah também canta. Faz de Wellgunde. Logo ao princípio. É um grande papel para ela, poderia vir a ser o seu grande papel de destaque. É de facto uma lástima que o grande salto seja com Wagner. Mas não somos nós que escolhemos. Nem lá nem aqui. Normalmente temos ensaio das dez à uma e depois à noite temos espectáculo das sete às dez. O resto do tempo passo-o em casa, aqui na minha sala à prova de som. Bebo umas cervejas por causa da perda de líquidos. E às vezes ponho-o ali na cadeira de verga, ali ao fundo, encosto-o assim para dentro, ponho o arco ao pé dele e eu sento-me aqui no cadeirão de braços. E depois ponho-me a olhar para ele. E. ponho-me então a pensar: um instrumento horrível! Por favor, olhem bem para ele! Mas olhem mesmo. Parece uma velha gorda. As ancas muito descaídas, a cintura perfeitamente fora do sítio, moldada muito acima e pouco estreita; e para além disso estes ombros estreitos, raquíticos e pendentes... um desgosto! Isto acontece, porque o contrabaixo é hermafrodita, do ponto de vista do desenvolvimento histórico. Na parte inferior parece uma enorme rabeca e, em cima, uma espécie de grande viola de gamba. O contrabaixo é o instrumento mais horrível, mais pesadão, mais deselegante que jamais houve. Até parece um sátiro. Ás vezes só me apetece dar cabo dele. Serrá-lo. Parti-lo aos bocados. Desfazê-lo em bocadinhos, moê-los, reduzi-los a pó e enfiá-los... num transformador de carvão! Gostar dele, lá isso não posso dizer que goste. Além disso tocar nele é repugnante.”
"SOBRE O AMOR E A MORTE"


Agora voltemo-nos para “Sobre o Amor e a Morte”.

“O que Santo Agostinho diz do tempo vale também para o amor. Quanto menos reflectimos sobre ele, mais ele parece explicar-se por si mesmo; mas, se começarmos a cismar nele, ficaremos completamente desorientados. Este curioso paradoxo é confirmado pelo facto de que, desde o início da história da civilização, o homem enquanto criador e, desde a época de Orfeu, o homem enquanto poeta se debruçaram com mais obstinação sobre o amor do que sobre outra coisa qualquer. É assim porque, como bem sabemos, os poetas não escrevem sobre aquilo de que detêm o conhecimento, mas sobre aquilo de que não possuem a última palavra; não o fazem porque não sabem mais, mas porque querem a todo o custo saber com muita precisão. É este conhecimento imperfeito, é este sentimento de profunda estranheza que os leva a pegar no cinzel, na pena ou na lira. (A cólera, o luto, a exaltação, o dinheiro, etc. são completamente secundários.) De outro modo não haveria poemas, romances, peças de teatro, etc, mas tão-só comunicados.”

Depois de ter analisado três exemplos de amor e de estados amorosos, e da relação entre Eros e Tanatos, Suskind põe lado a lado as vivências de Jesus e Orfeu, “que por amor não aceita a morte”, e ambos os discursos políticos e amorosos. Veja-se o resultado, exaltante como proposta:

“(…) Deve dizer-se que o discurso de Orfeu se distingue agradavelmente do tom bruto e de comando de Jesus de Nazaré. Jesus era um pregador fanático, não pretendia convencer, queria que o seguissem, e sem condições. As suas falas são entremeadas de ordens, de ameaças e desta forma recorrente e apodíctica: "Mas em verdade vos digo..." É assim que falam em todas as épocas, aqueles que pretendem amar e salvar, não um ser humano, mas a humanidade. Quanto a Orfeu, apenas ama uma mulher e é apenas essa mulher que ele quer salvar: Eurídice. É por isso que o seu tom é conciliador, mais amável: ele pleiteia - a raíz da palavra é o provençal “plait” e significa que ele quer agradar e quer que sejam agradáveis para com ele. E pronto, o seu discurso é um êxito! Os soberanos do reino dos mortos entregam-lhe a mulher que ele ama - mas com a condição bem conhecida de que, no caminho de volta ao mundo do alto, ele não volte uma única vez a cabeça para ela, que seguirá atrás dele. É aqui que Orfeu comete um erro. (O Nazareno nunca os comete. E mesmo quando comete erros evidentes - por exemplo, quando recruta um traidor para o seu grupo -, é um erro calculado e faz parte do plano escatológico.) Quanto a Orfeu é simplesmente um homem, sem capacidades nem planos sobre-humanos, estando portanto sujeito a cometer a qualquer instante um erro crasso, uma asneira terrível – o que, uma vez mais o torna simpático.”

“(...) Lembremos que Orfeu é um artista e, como todos os artistas, não deixa de ter vaidade, ou antes: orgulho na sua arte. (...) enquanto subia, numa paisagem escarpada e cheia de ravinas, já muito longe dos mortos e ainda insuficientemente perto dos vivos, ninguém o ouvia. Excepto a pessoa que seguia atrás dele. E ela não dizia nada. Porquê? Tê-la-iam proibido de falar? Não poderia ela gritar uma vez "Bravo!" ou "Que lindo!"? Não poderia ela, pelo menos, bater as palmas, movida pela alegria e entusiasmo?
”(...) A história de Orfeu ainda hoje nos comove porque é uma história de fracasso. Acaba por falhar a prodigiosa tentativa de reconciliar as duas forças primitivas e misteriosas da existência humana, o amor e a morte, e de obrigar a mais cruel das duas a, pelo menos, um pequeno compromisso. A história de Jesus, pelo contrário, no que toca à confrontação com a morte, é triunfante desde o princípio até ao seu triste final.”

“(…) E o amor? O Eros cheio de pulsões e de desejos de que falámos? Pois bem, é desconhecido nesta morada. Em Jesus, o Eros está ausente. O Diabo, quando o tentou, bem o sabia. Oferecer lindas raparigas ou efebos à volonté àquele jovem carpinteiro arisco? Ele não teria mordido o isco. O poder era tudo o que lhe interessava. Por isso o Diabo lhe oferece o poder sobre todos os reinos do mundo desde que ele se ajoelhasse a seus pés e o adorasse — em vão, como sabemos, não porque Jesus renunciasse a todo e qualquer poder, mas porque, para o conseguir, ele apostava no partido adversário, mais poderoso.
Esta faceta calculista, esta maneira de se mostrar sempre (ou quase sempre) senhor de si, de nunca ter agido com embriaguez erótica, confere à pessoa de Jesus de Nazaré muita frieza, distância e falta de humanidade. Mas talvez não se possa pedir-lhe muito mais. Talvez ele, precisamente, tenha sido apenas um deus.
Nesse sentido, Orfeu está mais perto de nós: apesar da sua exaltação e da sua ulterior extravagância, por causa da sua coragem sem fanatismo, das suas maneiras civilizadas, da sua inteligência astuciosa que nunca tinha nada de apodíctico; apesar e por causa do seu fracasso. Dos dois, Orfeu era sem dúvida o ser humano mais completo.”

Patrick Süskind, “O Contrabaixo”, Ed. Difel, 2001.
Patrick Süskind, “Sobre o Amor e a Morte”, Ed. Presença, 2006.

7 comentários:

  1. Adorei o excerto do "Contrabaixo". Li "O perfume", mas não lembro de passagens assim tão instigantes e comprometidas com um discurso de gênero e de choque entre gêneros, com essa construção conflitante da personalidade que faz parte do percurso de cada um, mas que arrumamos num cantinho pra não pensar. Vou já comprar isso.

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  2. Acabo de chegar das livrarias. Ta esgotada a ediçao brasileira. :( Para o natal, há uma nova ediçao do "Perfume"... livro é supérfluo neste país, pra que reeditar?

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  3. ida: Olha,queres "Perfume"? Vai haver mesmo nova edição já este Natal? Senão, eu mando-to. "Perfume" com todo o prazer pelo envio. Um beijo. LA

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  4. Li todos os livros de Suskind, há alguns anos, editados por cá. O meu favorito continua a ser 'O Contrabaixo' :)

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  5. O "Perfume", do Suskind, eu já tenho. Obrigada. É muita gentileza da tua parte.

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  6. Queria "O contrabaixo", mas só há ediçao da DIFEL, portuguesa, vou ver se encomendo na livraria da universidade. Se não for possível, aceito a gentileza tansatlântica. Beijo.

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  7. 1 livro magnífico. Li-o ontem num ápice. Em breve ponho o meu comentário no meu blogue.

    silenciosquefalam.blogspot.com

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