domingo, janeiro 21, 2007

o silvar das enxadas

Cumpriu-se o ritual: da terra à terra.
Na tarde cálida, a terra castanha, de um castanho sangue, de uma castanho magoado, dorido.
Terra desentranhada, esventrada, cortada pelos golpes das enxadas, que abriram a vala.
Para se cumprir de novo o ritual, as enxadas subiam ao céu, e em rasgões certeiros, rigorosos, hipnóticos, desciam rápido à terra, enterravam-se nela, golpeavam, e num movimento súbito, ritmado, ritualizado, ganhavam força, suspendiam a terra-sangue no alto e faziam-na tombar nesse vão assombrado que medeia entre a memória e o esquecimento.
“Doutor, afaste-se”, ouvi dizer. Não me afastei, aguentei firme o golpear da terra, inebriado, a enxada a subir e a descer silvando, a enterrar-se na terra, a salpicar de dor o fato, a chicotear o sobretudo cinzento escuro, alguma bate-me de raspão na face, outra fulmina os presentes, e a enxada continua a carregar pelo ar blocos de terra castanha, sangrenta, sequiosa de vida e de morte para nova vida.
O rasgão aberto nessa terra-mãe está finalmente repleto, saciado de uma terra de um castanho pesado, duro, sangrento. São blocos soltos, de terra livre que respira, antes de, mais tarde, no silêncio dos actos que se escondem, ser rebatida, martirizada, espalmada, comprimida. Agora, ali fica à aragem da tarde, repleta de flores circunstanciais.
Comigo trago nos ouvidos o silvar das enxadas subindo ao céu com veemência, descendo depois à terra num bailado de uma violência ritualizada, vital. São quatro enxadas que sobem e descem, compassadas. Fulminantes. Da terra à terra. Cada gesto, o rasgar da memória. De golpe certeiro.


(imagem roubada, sem licença, mas com ternura, da "Bandida")

8 comentários:

  1. Epístola para Dédalo

    Porque deste a teu filho asas de plumagem e cera
    se o sol todo-poderoso no alto as desfaria?
    Não me ouviu, de tão longe, porém pensei que disse:
    todos os filhos são Ícaros que vão morrer no mar.
    Depois regressam, pródigos, ao amor entre o sangue
    dos que eram e dos que são agora, filhos dos filhos.

    Fiama Hasse Pais Brandão, in Epístolas e Memorandos, 1996

    iv

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  2. Tristes palavras tuas, com uma beleza doloridíssima. Lindas palavras da Isabel Vitor. Não tenho palavras possíveis hoje. Beijo

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  3. na memória um acorde de Chopin.




    beijo Lauro!

    B.
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  4. E eu, vi-o... Hipnotizado pelo andamento compassado, quase ritmado, das enxadas. Vi-o fixando o olhar na terra que engolia. E por uma vez, parando o olhar do fundo do mundo, se virou para nós, como que incrédulo, como se fosse sonho e não realidade-presente...
    Mas o som chamou-o de novo à terra que engolia e o salpicava com lágrimas que não se viam...
    Um beijo com carinho.

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  5. Há momentos em que não há o que dizer, Lauro, a não ser enviar-te, através deste teu espaço, um forte e comovido abraço.

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  6. Um beijinho muito grande com muita ternura, meu querido amigo. até breve.

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