terça-feira, agosto 15, 2006

UM BLOG (POR DIA) A VISITAR (10)

"PLAY IT AGAIN"
H. (Helena F.) julgo ter 20 anos, ser do signo astrológico dos Peixes e do ano do zodíaco do Tigre. Tem um blog de cinema (“Play It Again”) e colabora num blog musical (“Take a Break”). Como filmes favoritos anuncia os seguintes: The Dreamers, Rebel Without a Cause, Lost in Translation, The Misfits, Manhattan, The Eternal Sunshine of the Spotless Mind, Lord of the Rings, Trilogy Before Sunrise / Sunset, Edward Scissorhands, Citizen Kane, The New World, Jules et Jim, Wonder Boys, The Lady Vanishes, Rushmore, Magnólia, The Million Dollar Hotel, Bus Stopk The Red Shoes, Donnie Darko... Não é uma má escolha.
Acontece que esta Helena, com vinte aninhos, tem um blog bem escrito (com ou outro lapso, mas enfim!), bem doseado, com um design moderno e vivo, falando de filmes que, à partida, são boas escolhas e cuja análise denuncia sensibilidade, inteligência, cultura, gosto. Sabe bem descobrir uma Helena com 20 anos e esta paixão pelo cinema! Por isso elejo hoje o seu blog o meu candidato a uma visita guiada.
Seguidamente transcrevo excertos de quatro comentários seus que vão de Garrell a “Maimi Vice”. Esta Helena pode ir longe.

Domingo, Agosto 13, 2006
Les Amants Réguliers - Os Amantes Regulares

A revolução, ou que se queria que fosse, as barricadas, o fogo, a polícia, as fugas. É nessa explosão de juventude que a primeira parte do filme se passa, mas há também a relevância da casa em contraposição às ruas. A casa de Antoine, o rico do grupo, o “burguês”, que faz das suas divisões o ponto de encontro para um grupo de jovens que partilham o ópio, a música, a arte e os corpos. É nessa casa que Antoine conhece Lilie (Clotilde Hesme) – e essa breve conversa inicial é das cenas mais bonitas do filme.
Entre ambos nasce um amor perfeito, de partilha artística (ele é poeta, ela é escultora) e corporal (é elucidativa a confissão de Lilie a uma amiga, dizendo que com Antoine era amor e sexo de forma incansável, mesmo que sentisse desejos momentâneos com outros – a que ele aliás nunca se opõe).
Retrato nostálgico de um tempo, mas com a amargura da consciência do seu término, Os Amantes Regulares é um filme que se demora, que não se apressa, que se concentra, que quer mostrar tudo, todos os pequenos nadas que eram tudo, e um tempo que existiu, numa confusão sonolenta de utopia estranha, mas que passou, porque a vida teve de continuar, porque haverá sempre escolhas enquanto houver sonhos.(…)
Quinta-feira, Agosto 10, 2006
Superman Returns - Super-Homem: O Regresso


‘You wrote that the world doesn't need a saviour, but every day I hear people crying for one’

Deliberadamente nostálgico dos primeiros filmes, Singer esquece-se de imprimir à sua película uma vitalidade renovada, trazendo para o ecrã uma série de lugares-comuns do cinema do género sem sequer explorar devidamente algumas cenas até ao fim. Um exemplo é o flashback curto da infância do herói, quando este começa a dominar os seus poderes, cuja pertinência é altamente duvidosa, ainda para mais quando é um caso isolado. É certo que o objectivo do filme não era explicar as origens do Super-Homem mas sim centrar a acção no seu retorno à Terra, mais precisamente a Manhattan, perdão, Metropólis, cinco anos após ter desaparecido sem um simples adeus.
Ora, quando ele (Brandon Routh) volta – como Super-Homem e como o seu “outro eu” desajeitado e atencioso Clark Kent – encontra o mundo num caos e o seu amor, a colega repórter Lois Lane (Kate Bosworth), como mãe e quase esposa de outro (James Marsden, um dos X-Men), ainda para mais o sobrinho do patrão (Frank Langella). Como se esta maré negra não bastasse, Lex Luthor (Kevin Spacey), o eterno inimigo do herói voador, vê a sua dupla sentença de prisão perpétua atenuada e volta com um projecto demolidor envolvendo kriptonite para destruir o salvador da capa vermelha.
(…) É verdade que os efeitos especiais são bons, é verdade que há duas ou três cenas fantásticas (incluindo o final), é verdade que a voz de Marlon Brando (ressuscitada das gravações do filme de 1978 em que fazia de Jor-El, pai do Super-Homem) e a breve presença de Eva Marie Saint como a mãe adoptiva de Clark valem ouro, é verdade que na conjuntura política actual um ser que impede aviões de cair e salva pessoas em pequenos e grandes perigos seja como uma materialização de um apelo colectivo subconsciente por um salvador, mas isso não apaga o facto deste retorno do Super-Homem não encher as medidas de quem esperou um blockbuster arrebatador. Eu, que aliás sempre preferi o Clark de óculos de massa e ternura atrapalhada ao Super-Homem mumificado em licra, continuo a eleger o controverso V como o herói maior deste ano. E continuo a ter saudades daqueles anos em que no espaço a guerra era a das estrelas…

Terça-feira, Agosto 08, 2006
Romance & Cigarettes - Romance e Cigarros

Nesta sua terceira experiência atrás das câmaras, o actor John Turturro cria um musical de contornos kitsch que parece resultar de uma mescla do delírio de cor e citação musical de Moulin Rouge, com um bocadinho do universo dos irmãos Coen (que são, aliás, produtores executivos do filme), uma pitada de John Waters e um quê de Grease. Acrescente-se ainda a semelhança do título com Café e Cigarros de Jarmusch.
O melhor do filme encontra-se precisamente nos momentos em que os actores cantam (ou melhor, fazem um playback propositado, que nem sempre resulta bem) e gesticulam em coreografias de típico musical. Quando os diálogos perdem a banda sonora tornam-se demasiado básicos para terem alguma piada. Mas quando as emoções são gritadas ao som da música, de forma tão exagerada como irresistível, aí até apetece dançar na cadeira. O enfoque vai para o fabuloso Chrisopher Walker e a sua “Delilah” (original de Tom Jones), que protagoniza a melhor sequência do filme.
O elenco é composto por um rol de nomes sonantes, como James Gandolfini, Susan Sarandon, Kate Winslet, Christopher Walken, Mary Louise Parker, Steve Buscemi, Bobby Cannavale, Mandy Moore e a esposa do realizador, Aida Turturro. E se no conjunto todos se apresentam excentricamente fantásticos (talvez Susan Sarandon, sendo tão tremendamente competente tenha mais dificuldade em entrar na paródia), Christopher Walken destaca-se na sua pequena participação como o primo Bo e Kate Winslet é surpreendente na pele insaciável Tula – o motivo pelo qual James Gandolfini (cuja personagem tem o sugestivo nome de Nick Murder) porá em perigo o seu casamento – provando como ser sexy não tem necessariamente a ver com ter-se uma silhueta socialmente recomendada. (…)

Domingo, Agosto 06, 2006
Miami Vice

(…) A história de dois agentes que se infiltram num grupo de traficantes de droga pode não soar a algo de particularmente novo (um bom exemplo, embora muito diferente, é Donnie Brasco, de Mike Newell), mas tudo o que nos é mostrado prende-nos ao ecrã de tal forma que mesmo que não haja qualquer identificação com as personagens, há uma oportunidade de participar nas suas emoções.
O leque de actores escolhido é suficientemente competente para entrar convincentemente na pele das personagens, mas suficientemente longe de um patamar de perfeição e arrebatamento interpretativo que nos faça destacar algumas prestações em detrimento de outras.
(…) Tal como Collateral, Miami Vice é um filme essencialmente passado à noite. Tal como em Collateral, também tem uma sequência muito boa filmada no interior de uma discoteca. Neste caso trata-se do início do filme, em que a mestria de Mann a filmar por entre a massa de gente que enche o clube é tão hipnotizante que até nos esquecemos da pouca pertinência de uma tão longa “ouverture” para o conjunto do filme.
Há máquinas e velocidades, há explosões e sexo, há uma banda sonora que mais parece uma verdadeira playlist de rock desinteressante (embora com algumas faixas de excepção da autoria dos Goldfrapp, Mogwai ou Moby), há um corte de cabelo de Colin Farrell de gosto duvidoso... mas a dar algum sentido a tudo isto há a visão de um realizador capaz de filmar o negro do submundo de uma forma que prende sem causar admiração, que convence sem causar arrebatamento, que entretém sem olvidar a qualidade artística.
Miami Vice é pois um filme a não perder, uma vez que não defrauda as expectativas de quem procura uma ida ao cinema onde a acção frenética se alia ao deleite contemplativo de mais um Michael Mann nocturno.


“A CASA DA LAGOA”

Ela (Sandra Bullock) vive em 2006, é médica; ele (Keanu Reeves) vive em 2004, é arquitecto. Mas obviamente ambos vivem em conjunto em 2004 e 2006, só que uns vivem mais que outros, e às vezes até se cruzam, não sabendo que se vão encontrar em tempos distintos. Mas a coisa é mais complexa: vivem os dois na mesma casa do lago, nos arredores de Chicago, mas não em simultâneo. Ele viveu antes dela, ela julga abandonar a casa para ele, mas foi o contrário. Ambos deixam bilhetinhos na caixa do correio e ambos os lêem com dois anos de intervalo, mas em simultâneo. Confuso? Nada disso, se virem o filme é que descobrem o que é ser confuso.

Ela é uma solitária, bem bonita e bem apresentável, mas que não se interessa por ninguém, a não ser pelo impossível. Ela gosta de esperar, como “Persuasão”, o seu romance preferido de Jane Austen. Ele é um bonitão bem colocado na vida, filho de um arquitecto célebre (que combina Le Corbusier e Frank Lloyd Wright, dizem), o mesmo que construiu a casa à beira do lago, toda envidraçada, deixando passar a luz e dando visibilidade total para fora e para dentro. De tal forma que ali o tempo não pára, não cristaliza numa cronologia precisa, e circula livremente para a frente e para trás. Confuso? Esperem pelo filme para saberem o que é confuso. Isto é apenas uma pequena amostra.
Podem dizer que a ideia é completamente irrealista e idiota. Irrealista acho que sim, mas idiota, por quê? Já se aceitou tanta fantasia no cinema e na literatura, por que não aceitar mais esta? Não me custa nada admitir como ponto de partida esta cláusula: é possível a troca de correspondência entre dois seres, com dois anos de intervalo, sem que tenham sido os CTT a atrasarem as entregas. Tudo bem. Mas depois, adoptada a premissa, é preciso assegurar que tudo o mais funciona. Ora há demasiadas falhas neste argumento, para ele ter alguma consistência ou credibilidade, mesmo no domínio da fantasia. Não se pode inventar e deixar andar ao sabor da invenção. É o que acontece, neste filme que parece conhecer grande sucesso de público, talvez pelo romantismo exacerbado de que dá mostras, talvez pelo clima de fantasia temporal que evoca. Mas jogar com o tempo já foi feito muitas vezes no cinema e muito melhor. Quem não recorda um belíssimo filme com Bill Murray, “Groundhog Day”, de Harold Ramis (1993)?
Remake de uma obra sul-coreana de 2000, chamada “Siworae” (ou “Il Maré”, na sua versão ocidental), uma realização de Hyun-seung Lee, que tinha argumento de Ji-na Yeo, baseada no romance de Jiro Asada, “The Lake House” tem direcção do argentino Alejandro Agresti, e guião escrito por David Auburn. Um verdadeiro puzzle de nacionalidades.
Quanto aos actores, Sandra Bullock é convincente, Keanu Reeves, anda um pouco aos papéis (literalmente aos papeis, ou seja às cartas), Christopher Plummer, no arquitecto egocêntrico, compõe uma personagem curiosa. Mas nada disto chega para tornar este filme numa obra a considerar. É daqueles que só se vêm quando nos enganamos na hora de inicio do filme que queríamos ver, não temos mais para fazer e lá fora está um calor de rachar. Foi o que aconteceu comigo. A sala estava fresquinha.

A CASA DA LAGOA (The Lake House), de Alejandro Agresti (EUA, 2006), com Keanu Reeves, Sandra Bullock, Christopher Plummer, etc. 105 minutos; M/12 anos; Columbia.

domingo, agosto 13, 2006

UM BLOG (POR DIA) PARA VISITAR (8)

"EROTISMO NA CIDADE"
CANTOS DE UM AMOR REINVENTADO


“Encandescente” é o nick, de quem o ostenta nada mais sabemos, apenas que o Sexo é female, o Local é Portugal e os Blogs que assina são “Erotismo na Cidade” e “Pequenas Histórias” (lamentavelmente este não tem acesso permitido). Uma mulher, portuguesa, que assina um blog profundamente erótico, é obra, sobretudo se os seus trabalhos tiverem qualidade. E têm.
Blogs com textos “poéticos”, lamechas e delicodoces, com arremedos de florbelices mais ou menos romântico-sensuais, é o que há mais e nem por isso nos sentimos felizes. Ao menos que as autores o estejam, ao efectuarem essa catarse psicanalítica. Mas literariamente a qualidade deixa muito a desejar e dessas centenas de blogs confessionais e engatatorais muito não há a dizer.
Os textos da “Encandescente”, felizmente, são normalmente fortes, densos, muito carregados de uma envolvência erótica, sensual, sexual intensa. Por vezes serve-se da elipse, da simbologia, da metáfora, mas noutros casos abdica de aligeirar a imagem, e investe com a brutal coragem de quem chama “os bois pelos nomes”. Quase sempre com propriedade, com arrojo seguramente, e com a reivindicação solene e orgulhosa de que “sou mulher e digo-o.”
“Erotismo na Cidade”, o blog, já deu origem a dois volumes que estão ali mesmo publicitados, “Erotismo na Cidade” e “Encandescente”. Fiquei curioso. Vou tentar encontrá-los na Fnac. Depois direi. Mas para já vale a pena visitar este blog e percorrer longamente as suas páginas. Num livro, esse percurso é desde logo voluptuoso. Abrir as páginas de um livro é algo profundamente sensual, dependendo da textura do papel o quão sensual pode ser. Vamos tentar perceber se as páginas de um blog também podem possuir esse inebriante contacto, levando a mão a deslizar no texto, nas fotos, a impregnar-nos desse doce encantamento. O blog da “Encandescente” permite a experiência.


Para já dois textos a abrir o apetite:

Terça-feira, Agosto 01, 2006
Detrás da porta


Meu querido
Lembras-te quando chegavas e eu te agarrava logo ali, junto à porta, e me encostava e te encostava à parede, e te despia num ápice, as mãos vorazes, a boca colada à tua, a boca dizendo na tua: - Não te mexas. Não te movas.
E tu não podias, e tu não querias, e tu não te movias, e mordias os lábios para sufocares o grito, para não soltares o grito, para não ouvirem a tua nudez, do outro lado da porta.
E as minhas mãos que procuravam o teu sexo e encontravam a tua erecção e a seguravam e a apertavam e a consumiam e a esgotavam e te esgotavam e no chão…
No chão marcadas a tua chegada e a tua vinda, e eu olhando-te e tu cansado, e tu ofegante, e tu seco de sémen e repleto de prazer e eu...
Eu apertava-te o rosto e puxava o teu cabelo, e abria as minhas pernas, e empurrava a tua cabeça, e descias no meu corpo, e eu dizia-te apontando chão, apontando marcas:
- Falta ali junto ao teu o meu sinal.

posted by encandescente at 8/01/2006 / Foto: Kay


Perdida


Fecha-me na tua mão
Se me fechares na tua mão estarei segura
Se me guardares na tua mão nem os meus medos
De mim saberão e de mim perderão todos os sinais.
Depois…
Depois leva-me para onde fores
Num bolso fechada
Num canto do peito escondida
Que de mim me quero perdida
E por ti perdida de amores.

posted by encandescente at 8/10/2006 / Foto: Lia Costa Carvalho
Entretanto, Encandescente vai recolhendo textos seus
num arquivo a que pode ter acesso em:

ACTRIZES QUE ME MARCARAM (IV)

MARLÈNE DIETRICH

“If she had nothing more than her voice she could break your heart with it. But she has that beautiful body and the timeless lovliness of her face. It makes no difference how she breaks your heart if she is there to mend it.”
- Ernest Hemingway

“Não sou uma actriz, sou uma personalidade”, disse Marlène um dia. Uma personalidade, é certo, e mais: um mito. Mito-mulher, mulher-mito de uma geração que foi a dos nossos pais. Mito-mulher, mulher-mito de todos nós que a descobrimos depois, feita “Anjo Azul” descido à cidade para desespero dos homens. Marlène é mais do que um nome. É lenda. Lenda que não consegue ultrapassar a realidade, porque Marlène perdura para além da lenda que a não consegue totalmente abarcar.

“No Oeste, quando a lenda ultrapassa a realidade, nós imprimimos a lenda”, afirma um jornalista a James Stewart no final do “O Homem que Matou Liberty Valance”, de John Ford. Que fazer, porém quando a própria realidade ultrapassa a sua lenda? Que fazer quando as palavras se mostram absolutamente impotentes para transmitir o que quer que seja que vá além de uma simples aproximação? Já Robert Benayount (na revista "Positif") pusera idêntica questão: “Ela ultrapassa a obra de arte, por muito genial que a obra seja e que se queira... Ela ultrapassa até o próprio mito, sem se distanciar, sem o pôr em questão. Porque essa mulher verdadeira, apesar do mito, vale sempre mais do que o próprio mito”.

Marlène nasceu em Berlim, a 27 de Dezembro de 1901. O nome de baptismo: Maria Magdalena Dietrich von Losch. Filha de um oficial de cavalaria e de uma pianista, foi educada segundo uma disciplina monacal que a levou a resguardar no seu íntimo a vitalidade e a alegria de viver que a sua personalidade desde logo denunciou. Conta-se até que a mãe a obrigava a sair de casa nos dias mais frios do inóspito clima nórdico, levando-a a suportar estoicamente as maiores privações, da fome à sede, a fim de lentamente a «despojar de todos os sintomas de angústia e descontentamento que uma educação menos rígida poderia favorecer».

Os estudos secundários fê-los em Weimar, e durante algum tempo dedicou-se ao piano e ao violino (onde poderia ter sido uma virtuose, se não fora a existência de «um gânglio no nervo primário do pulso esquerdo»), recebendo ainda lições de dança, equitação e línguas estrangeiras. Antes de se estrear no teatro, frequentou o curso de Arte Dramática de Max Reinhardt, célebre encenador alemão de inícios do século XX, que revolucionou profundamente a estrutura cénica do teatro, jogando com o aproveitamento da luz e dos volumes que estão na base de uma estética expressionista.

Quando Josef von Sternberg a descobre numa revista por ele considerada medíocre (“Zwei Kravatten”) já Marlène (então casada com o argumentista e produtor Rudolph Sieber, de quem teve uma filha) ostentava o corpo miraculosamente desenhado que Sternberg saberia realçar, encobrindo-o com véus diáfonos e plumas, possuindo também aquele rosto de volumes admiravelmente conjugados que lhe avivavam o mistério inefável de uma sensualidade simultaneamente serena e obsessiva. A sua carreira profissional fora, contudo, e até aí, pouco promissora. Repartira o tempo por operetas medíocres, espectáculos de «music-hall» de terceira ordem ou papéis pequenos e insignificantes em filmes que nunca deram a medida aproximada do seu talento. Apesar disso, porém, Marlène fora dirigida por cineastas de importância incontroversa, caso de C. W. Pabst (“Die Freudlose Gasse”, “Rua Sem Sol”), William Dieterie (“Menschen am Weg”), Joe May (“Die Tragodie der Liebe”), Alexander Korda (“Eine du Barry von Heute”), Arthur Robinson (“Manon Lescaut”), Maurice Tourneur (“Das Schiff der Verlorenen Menshcen”) ou Kurt Bernhart (“Die Frau Nach der Man Sich Sehnt”).

A revelação de Marlène Dietrich será, entretanto, obra do sexto sentido de um homem que soube olhar para além das aparências e descortinar o essencial de uma personalidade estranhamente rica e fascinante. Uma das poucas mulheres que poderiam ser Lolo-Lola e cantar o tema de “O Anjo Azul”: “Ich bin von Kofp bis Fuss auf Liebe eingestellf” (“Sou toda amor, da cabeça aos pés”).

Marlène teve consciência da importância decisiva do seu encontro com Josef von Sternberg e nunca se cansou de o repetir para quem a quis ouvir: “Foi Sternberg quem me descobriu, quando eu não era ninguém. Acreditou em mim, fez-me trabalhar, deu-me todo o seu saber, a sua experiência, a sua energia e construiu desta maneira o meu triunfo.” Ou ainda, a famosa dedicatória de uma fotografia sua «a Von» “Sem ti não seria ninguém.” A isto responde Sternberg, do alto da sua megalomania e do seu incomensurável talento: “Marlène não é Marlène. Marlène sou eu!” Mas, que era este “Pigmalião” consciente e autorizado?

Duas personalidades invulgares irão encontrar-se por força do destino. Esse encontro, visualizado em “O Anjo Azul”, será, simultaneamente, o desdobrar de uma paixão impetuosa. Mas, como se terá passado na realidade nos bastidores? Isso mesmo nos conta o próprio Josef von Sternberg, em páginas das suas memórias (“Fun in a Chineses Laundry”):

“Vestida com um "tailleur" de Inverno, chapéu, luvas e muitas peles, tinha o ar de vir ver-me para gozar de um descanso bem mereceido para a fazer sair da sua letargia, perguntei-lhe porque é que a sua reputação de actriz era tão pouco conhecida. Ela olhou longamente as mãos enluvadas e, bruscamente, como se as tivesse mostrado muito tempo, escondeu-as atrás das costas. Decididamente, pensei, iria ser muito difícil transformar em "devoradora de homens" a mulher acanhada que estava à minha frente!”

“O Anjo Azul”, datado de 1930, marca portanto a convergência de duas carreiras, para além de assinalar igualmente o encontro com um outro actor admirável, esse Emil Jannings a que o cinema alemão das décadas de 20 e 30 ficou a dever algumas das suas criações mais notáveis.

Em 1935, depois do êxito clamoroso de filmes como “Marocco” (30), “Dishonored” (31), “Song of Songs” (33), e “The Scarlet Empress” (34), e depois do fracasso de “The Devil is a Woman”, Marlène e Sternberg rompem a sua ligação, indo, cada um por seu lado, à procura de um ideal perdido: Sternberg tentará fazer de cada nova vedeta uma nova Marlène; Dietrich, por seu turno, só muito tardiamente conseguirá libertar-se do retrato que dela impunham os produtores e que o público não se cansava de reclamar.

Posteriormente, apareceu ainda em muitos filmes memoráveis, muito embora nenhum deles ostente a auréola lendária das obras interpretadas sob a direcção de Sternberg. Mas “Destry Rides Again”, “A Foreign Affair”, “Witness for the Prosecution”, “Touch of Evil2, ou “Judgment at Nuremberg” foram obras a todos títulos importantes. Deve ainda salientar-se a sua actividade como cantora, em filmes (o caso de “The Blue Angel”, onde canta um tema que se colaria a ela para sempre, uma das mais belas canções de amor de que há memória, "Falling In Love Again"), mas também em, concertos, em tournées pela Europa e América.

Em 1937, torna-se cidadã americana, depois de ter fugido da Alemanha nazi, recusando todos os cargos que as autoridades do III Reich lhe ofereceram. Pelo contrário fez campanha pelos Aliados, e radicalizou posições políticas, cantou em diferentes frentes de batalha e gravou discos de apoio à causa (como o famoso “Lili Marleen” que, durante a II Guerra Mundial, era cantado os sdois lados das barricadas). A sua vida sentimental também foi muito movimentada e sobretudo muito comentada. Casada com Rudolf Sieber, assistente de realização, veio com Sternberg para a América, teve, ao que dizem, relações lésbicas (Mercedes de Acosta conta-se entre os seus amores femininos), mas confessou sempre que o grande amor da sua vida tinha sido o actor francês Jean Gabin.

Essa Marlène de olhar voluptuoso, a meio caminho entre a mítica pureza de uma deusa inacessível e a diabólica presença inquietante de uma mulher destruidora; essa Marlène regressada do reino das sombras e das trevas, esse rosto iluminado, que permanece misterioso para além de toda a descoberta; essa Marlène de tempos idos, mulher-mito, mito-mulher, estará para sempre entre nós, fazendo de cada um, um novo professor Unrat que, por amor desmedido e desejo incontido, mergulha no irracional e no desespero. Morreu aos 90 anos de idade, em Paris, há muito retirada dos palcos, no dia 6 de Maio de 1992.

sábado, agosto 12, 2006

Fotos de
Luísa Cavalheiro Gomes
na estreia de MISS DAISY

Luísa Cavalheiro Gomes é fotógrafa, fotógrafa de espectáculos, essencialmente. Não há estreia no meio teatral em que ela não apareça. Mas há mais: ela acompanha ensaios e espectáculos de várias companhias. Vai registando o que vê, com olhos de quem vê.
No seu portfólio há um pouco de tudo, do teatro à música, do cinema à literatura. Há anos, deu-me a honra de ter uma exposição sua na abertura do Famafest 2001, com um impressionante conjunto de fotografias de actores portugueses e músicos de jazz internacionais.
A Luísa esteve na estreia da peça “Miss Daisy”, no Teatro Eunice Muñoz, em Oeiras (de que aqui falei). Aí me fotografou por diversas vezes e fez agora o favor de me enviar as fotos. Excelentes como sempre nela, apesar de ela confessar não gostar de fotografar com flash. São igualmente bons momentos para recordar, o bom abraço à “minha” Eunice, à "minha" Lia Gama, à minha Maria Eduarda Colares, e ainda a cavaqueira com o bom amigo e encenador Celso Cleto (infelizmente aqui sem a “sua” bela Sofia Alves).



UM BLOG (POR DIA) PARA VISITAR (7)

"uma forma...
LIA COSTA CARVALHO
Photography"


“O sonho é ver as formas invisíveis da distância imprecisa, e, com sensíveis movimentos da esperança e da vontade…” de Mensagem (1934) / Horizonte / Fernando Pessoa

uma forma... LIA COSTA CARVALHO Photography” é o blog de uma fotógrafa que eu não conhecia e que descobri viajando de blog em blog. Descoberta preciosa, porque Lia Costa Carvalho (será brasileira?), que vive em Lisboa, e trabalha em Portugal, e que se interessa sobretudo pelo universo do espectáculo e da literatura, apresenta um portfólio magnifico, ilustrando um olhar novo, moderno, contemporâneo, mas bem radicado na realidade, atento ao pormenor significativo e à verdade interior. Joga com cores puras e formas simples, enquadra de forma surpreendente por vezes, e tem sobretudo uma limpidez de visão que encanta. Um blog magnífico, que aqui saúdo e proponho à visita/visão dos bloguistas que me lerem. Já agora visitem também, além deste blog, o Portfólio Fotográfico / Lia Costa Carvalho. E dêem-se por felizes. São excelentes fotografias, excelentes para estes dias de canícula de Agosto.
Para ilustrar o que digo, retiro com a devida vénia (espero que a Lia não se importe) duas fotos de mulheres de quem gosto muito, A Adelaide João, minha actriz de sempre, grande prémio de interpretação no cinema, num filme meu (“Mãe Genoveva”), e Raquel Freire, realizadora de uma longa-metragem por que tenho especial carinho, “Rasganço”. E “roubo” também um “vermelho” de uma estranha sensualidade, de uma mulher que não devo conhecer, mas que gostaria muito certamente de conhecer.

UM BLOG (POR DIA) PARA VISITAR (6)

"CORPO VISIVEL"

"Corpo Visivel" é um belissimo blog, de colagens efectuadas com um bom gosto e um sentigo gráfico e poético indiscutíveis. Um bom blog pode ser um blog de palavras, de sons, de imagens, ou de uma conjugação de tudo isso, sendo que a originalidade do/a bloguista vem precisamente da escolha e da arrumação desses materiais. Este "Corpo Visível" é notável de sobriedade, de "sentido", de definição de um gosto e de uma sensibilidade, que obviamente adora cinema e poesia.
Quem é este "Corpo Visivel" não sei. Não sei se é homem ou mulher, novo ou velho, daqui ou dali. Sei que o blog me impressionou francamente e que dá prazer passear pelas suas raras páginas. Vale a pena percorrer este "corpo visível" e imaginar o outro invisível que lhe estará por detrás.


sexta-feira, agosto 11, 2006

NOVO MUSICAL DE LA FÉRIA


"MÚSICA NO CORAÇÃO"
NO CINEMA
NO TEATRO


NO TEATRO (2)
PROXIMAMENTE (SETEMBRO)
NO TEATRO POLITEAMA

“Música no Coração” é, seguramente, um dos mais célebres musicais de toda a história do teatro e do cinema musicais. O seu êxito triunfal em (quase) todas as temporadas teatrais e o seu apoteótico sucesso nas salas de cinema, a quando da estreia do filme assinado por Robert Wise, que esteve em Lisboa, quase dois anos consecutivos no Tivoli, com sessões esgotadas e espectadores que repetiam a sua visão vezes sem conta, não termina de surpreender tudo e todos. A odisseia sentimental e bélica da famosa família Von Trapp vai figurar na memória de qualquer espectador medianamente atento ao que se passa no mundo. Ninguém se pode furtar a mais uma “Música no Coração” num qualquer canal de televisão na quadra no Natal, ninguém passa por Londres ou Nova Iorque sem se confrontar com uma nova encenação do êxito de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein III. Ninguém se furta ao fascínio de um novo lançamento em DVD (com dezenas e dezenas de extras, a explicar como foi o que foi), e ninguém pode negar a genialidade de Robert Wise a conduzir este filme, muito embora muitos possam não suportar o tom algo lamechas e o peso de um argumento que, não sendo convencional, acaba por não se furtar a todos os rodriguinhos do melodrama musical.
Acontece que revisto agora, o que sobressai é realmente a portentosa realização de um mestre, Roberto Wise. A sua relação com os cenários, a forma como enquadra, como movimenta a câmara, como dirige os actores, como se serve da sumptuosa paisagem, como estabelece a relação entre as personagens no interior de um mesmo plano (como realiza a mise-en-scéne, em suma) é realmente brilhante. Depois a história por vezes arrasta-se nalguns convencionalismos escusados. Mas a verdade é que o filme sobrevive, e sobrevive bem.
Agora anuncia-se a versão teatral portuguesa, com a assinatura de Filipe La Féria, com Lúcia Moniz e Anabela a alternarem no papel de “A Noviça Rebelde” (título do filme no Brasil). Em Setembro, no Teatro Politeama. Lá estaremos.

UM BLOG (POR DIA) PARA VISITAR (5)


Sei apenas que se chama Rita. Não a conheço. Andava voando de blog em blog, de comentário em comentário, quando deparei com o blog “A(mar)”, assinado por uma Rita. Uma Rita que se despedia da blogosfera. Assim:

Domingo, Agosto 06, 2006
A-MAR

Não sei bem porque é que o a-mar surgiu. Quando comecei, pensava que sabia. Durante estes meses, embora que em constante reformulação do sentido, pensava que sabia. Hoje não sei nada. Esta é aquela fase em que, dizem os sábios, despojados de tudo, estamos finalmente aptos a começar a conhecer. Não sei se é assim. Sempre tive medo de me perder. Esta sensação de desamparo, de total vazio, em nada me estimula - e só me paralisa. Perdi-me, apesar de tudo. Isso sei.
Suponho que já não tenho vontade de continuar o a-mar, que já não me faz sentido continuar o a-mar.
Fazem-se afectos na blogosfera. Há pessoas que conhecemos, ou melhor, reconhecemos, porque têm algo que nós também temos, e de que passamos a gostar. Falo agora delas e se, possível, também para elas.
O meu obrigada a todas, não por me terem lido, mas por me terem permitido lê-las, no que isso tem, apesar de tudo, de subjectivo, e que é ler-me também. O meu mundo ficou maior!
Obrigada ao Jorge, porque tudo o que constrói me parece sempre sério e belo.
Obrigada ao mfc, que há muito que deixou de me visitar, ele que sempre me visitava no impossibilidades, mas cuja ausência me fez repensar a importância de não desistirmos, mesmo quando estamos sós e, sobretudo, a importância de cuidarmos melhor dos nossos afectos.
Obrigada ao jrd, também ausente.
Obrigada ao Pedro Ferreira, por ser sempre igual a ele próprio.
Obrigada à Elsa, amiga da vida, dita real, que me mostra sempre o outro lado da Lua ou do Sol e que me faz relembrar os momentos mais bonitos da minha infância.
Obrigada ao Alba, pela sua consistência, coragem e perseverança.
Obrigada à Maria do Rosário, cujas visitas silenciosas me fizeram acreditar que haveria algo em mim de imutável, ela que me leu no impossibilidades e que pareceu reconhecer-me também aqui, ela que, como eu, adora ser mãe.
Obrigada ao Pedro Estácio e ao Lino, do Porto, que me mostraram, de outra forma, o calor daquela cidade.
Obrigada ao Pedro Farinha e a toda a equipa do Farol das Artes, pela paz interior e harmonia que sempre me inspiraram e inspiram.
Obrigada ao jmnk, que acabo de conhecer mas que já me faz pensar.
Obrigada a todos os que não referi, mas que constam da minha lista de favoritos, e que também ajudaram a tornar maior o meu mundo.
Finalmente, obrigada ao jctp, pessoa que mais mexeu comigo durante estes escassos seis meses e que deitou por terra muitas das minhas certezas. Obrigada por me fazeres crescer!
Até breve, espero.
posted by Rita at 09:35

Lido na diagonal o “A(mar)”, ficou-me a vontade de ler mais Rita, de ir até aos seus blogs anteriores, esse “im(possibilidades”, que mudou de poiso em Novembro de 2005, e passou a “im(possibilidades 2”, transformando depois neste “A(mar)”, e embrenhei-me ainda mais e fui descobrir colaboração sua num tal “o princípio e o fim”, blog sobre livros, que são lidos e referenciados também por outros loguistas: katraponga, broa quente, Ana, jmnk, kyler, Isabela, Carrie, Daniela, Susana e Bês. Uma boa iniciativa que seria muito melhor se os colaboradores fossem mais persistentes. A ideia é óptima.
A Rita tem sempre uma tonalidade de nostalgia a roçar a tragédia em tudo o que escreve. Há uma sombra de solidão e tristeza em muitos textos. Há uma mistura de dor e prazer, de cumplicidade e insularidade que tornam os seus textos entre lamentos e gritos que nos tocam. Para essa solidão, para essa forma distante de olhar a vida (que, no entanto, necessita tanto de companhia), há muitas formas de resposta. Uma delas é não abandonar os seus post no “A(mar)” ou noutro blog qualquer, e não esquecer o que a própria Rita citou de Rouseau:

Não há felicidade solitária
É a fraqueza do homem que o torna sociável; são as nossas mi­sérias comuns que levam os nossos corações a interessar-se pela humanidade: não lhe deveríamos nada, se não fôssemos homens. Todos os afectos são indícios de insuficiência: se cada um de nós não tivesse necessidade dos outros, nunca pensaria em unir-se a eles. Assim, da nossa própria enfermidade, nasce a nossa frágil fe­licidade. Um ser verdadeiramente feliz é um ser solitário; só Deus goza de uma felicidade absoluta; mas qual de nós faz uma ideia do que isso seja? Se algum ser imperfeito se pudesse bastar a si mes­mo, de que desfrutaria ele, na nossa opinião? Estaria só, seria mi­serável. Não posso acreditar que aquele que não precisa de nada possa amar alguma coisa: não acredito que aquele que não ama na­da se possa sentir feliz. - Jean-Jacques Rousseau, in 'Emílio'

Rita do A(mar), não vá, fique. Quero ler mais textos seus. Eu e muitos outros amigos e leitores seus.

Não resisti a “roubar” esta sequência de fotogramas de “Der Himmel Uber Berlin” e já agora acrescento-lhe um texto meu de há uns anos onde se destca bem a minha paixão por esta obra única.

Segunda-feira, Junho 05, 2006
Der Himmel Uber Berlin, Wim Wenders

"AS ASAS DO DESEJO"

Depois de obras como “O Amigo Americano” ou “Alice nas Cidades”, Wim Wenders lança-se na realização de “As Asas do Desejo”, um título de 1987, rodado portanto somente dois anos antes da queda do muro de Berlim.
A um período de um certo nihilismo ideológico, representado por exemplo por “Alice nas Cidades”, sucede uma nova forma de encarar a realidade. Wim Wenders assume um olhar metafísico, ou pelo menos denotando uma procura do espiritual de que “As Asas do Desejo” é não só um claro síntoma, como um excelente e belissimo exemplo.
Dois anjos, Daniel e Cassiel, descem à cidade. A cidade é Berlim, terra dividida pelo muro. Os anjos descem do céu, misturam-se com os humanos, observam-nos nas ruas e nas bibliotecas, no circo ou durante a rodagem de um filme... E descobrem, um pouco por todo o lado, uma certa tristeza, uma visível indiferença, uma profunda incomunicabilidade. Entre os humanos, um antigo anjo é hoje actor de cinema e chama-se Peter Falk. Os anjos descobrem mais, descobrem por entre os homens que se ignoram, o amor possível de um anjo por uma trapezista de nome Marion. O amor de um anjo que desceu do céu à terra, por uma mulher que diariamente partindo da terra tenta agarrar o céu, equilibrando-se no frágil fio da sua arte. É um momento mágico de cinema, este que Wim Wenders consegue neste filme admirável, único, surpreendente.
Enquanto o cinema recria o pesadelo nazi, através do filme dentro do filme, Wim Wenders retrata-nos a cidade dividida, a Alemanha dividida, o mundo dividido. Primeiramente a preto e branco, porque os anjos não conhecem as cores; depois, a cores, porque os anjos quizeram experimentar a natureza do humano, e se confrontam com os perigos bem complexos da realidade.
Mais do que um filme, “As Asas do Desejo” é um poema sobre o destino do homem. Os poemas só muito dificilmente se explicam. Sentem-se, ou não se sentem. Gostaria muito de partilhar convosco esta experiência que julgo singular na história do cinema, e dar simplesmente as boas vindas aos anjos que vêm lá "do céu sobre Berlim". Assim, sem mais. (LA. 29.10.1994).

AS ASAS DO DESEJO
Título original: Der Himmel Uber Berlin; Realização: Wim Wenders (RFA, 1987); Argumento: Wim Wenders e Peter Handke; Fotografia (p/b e cor): Henri Alekan; Música: Jurgen Knieper; Montagem: Peter Przygodda; Direcção artística: Heidi Ludi; Produção: Wim Wenders e Anatole Dauman /Argos Films, Road Movie, Westdeutscher Rundfunk.
Intérpretes: Bruno Ganz, Peter Falk, Solveig Dommartin, Otto Sander, Curt Bois, etc. Duração: 130 minutos.