terça-feira, fevereiro 22, 2011

CINEMA: OS MIÚDOS ESTÃO BEM

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OS MIÚDOS ESTÃO BEM
  
Novas formas de comportamento humano implicam alterações profundas na organização social. As instituições transformam-se, tentando adaptar-se a esses novos tempos. O casamento é uma dessas instituições em crise de crescimento, que tenta progressivamente adaptar-se às novas necessidades criadas. Mas se tudo se transforma, no comportamento colectivo e nas instituições sociais que o coordena (ou procura disciplinar), há algo de imutável na condição humana, no seu comportamento individual ou colectivo que não se deixa ensinar: as paixões humanas são imutáveis. Podem educar-se, aqui e ali, mas estão sempre prontas a explodir ao mais pequeno sinal. A esperança é que nos vamos civilizando lentamente, procurando cada vez mais interagir melhor com o nosso semelhante. Mas nada anula a paixão, o ciúme, a ira, o desejo, a violência, o ódio, o amor… São partes constitutivas da condição humana, não deixarão de existir.
Podem, e devem, civilizar-se, polir-se, aparentemente domesticar-se, mas estão prontas a romper a barreira. Nesse aspecto não devemos ser utópicos. Ou então a utopia será vivermos o melhor possível com a nossa condição. Ir melhorando na medida do exequível, sem acreditar que o óptimo chegará, porque nunca chegará. Não vai deixar de haver crimes. Por vezes odientos. Nem lutas pelo poder, nem guerras. A utopia será controlá-los, sabendo que nunca os estriparemos do nosso convívio. Não deixará de haver paixões funestas. Nem grandiosas paixões que tudo sublevam. Não deixará de haver ciúme. Nem amor-próprio magoado. Quer seja num casal heterossexual, como num homossexual. Podem os gays vivem escondidos, em comunhão de facto ou casados civilmente, os sentimentos serão os mesmos, as mesmas as dúvidas, iguais as discussões, semelhantes as disputas.
“The Kids Are All Right”, de Lisa Cholodenko, é um bom exemplo de que o que se passa entre homem e mulher, pode muito bem passar-se entre um casal de parceiros do mesmo sexo. Este é o caso de Nic (Annette Bening) e Jules (Julianne Moore), duas mulheres que vivem juntas e que têm dois filhos adolescentes, um rapaz, Laser (Josh Hutcherson), e uma rapariga, Joni (Mia Wasikowska), que foram concebidos por inseminação artificial. Quando um deles atinge os 18 anos e a possibilidade de oficialmente investigar a paternidade, ambos querem saber quem é o pai, e resolvem procurar quem vendeu o esperma. Descobrem Paul (Mark Ruffalo), agricultor e dono de um restaurante, que irá provocar uma pequena revolução na tranquilidade morna da vida do casal. Não interessa especificar pormenores, mas sim referir que os filhos começam a gostar da companhia do pai biológico, pai “dador”, e que Jules se deixa enfeitiçar pela virilidade de Paul. A complexidade das relações vem ao de cima, nada é tão sereno e plácido como parece à primeira vista.
Lisa Cholodenko e Stuart Blumberg assinam um argumento original muito bem estruturado, num estilo de comédia dramática, sensível e inteligente. A realização é sóbria, mas muito eficaz, clássica e transparente, deixando brilhar as actrizes (Annette Bening é fabulosa, de simplicidade e rigor, de interiorização e de perspicácia, e Julianne Moore é igualmente brilhante, num trabalho mais nuanceado) e o actor (Mark Ruffalo, muito bem, registando com uma contenção total a força viril que o seu retrato requeria, sem nunca cair num estereotipo). Também os dois jovens actores se movimentam à altura dos progenitores.
As pequenas e muito subtis anotações psicológicas dispersam-se pela obra, conferindo-lhe a autenticidade necessária. Este é um casal como todos os outros que, todavia, convive com especificidades muito próprias. A procura da felicidade não é fácil, mas é, mais uma vez, através da experiência e da sabedoria que se ultrapassam as dificuldades.  
Cada novo desafio justifica respostas diferentes. Mas no fundo, cada novo desafio não é mais do que a duplicação, em fórmulas novas, de velhas questões. Querelas eternas, a que nunca se soube dar uma resposta única. Afinal, não será esse um dos prazeres da existência?

OS MIÚDOS ESTÃO BEM
Título original: The Kids Are All Right
Realização: Lisa Cholodenko (EUA, 2010); Argumento: Lisa Cholodenko, Stuart Blumberg; Produção: Charles E. Bush Jr., Gary Gilbert, J. Todd Harris, Philippe Hellmann, Jordan Horowitz, Neil Katz, Todd J. Labarowski, Jeffrey Levy-Hinte, Riva Marker, Camille Moreau, Joel Newton, Anne O'Shea, Celine Rattray, Laura Rosenthal, Andy Sawyer, Steven Saxton, Christy Scott Cashman, Ron Stein, Bergen Swanson, Daniela Taplin Lundberg;  Música: Carter Burwell; Fotografia (cor): Igor Jadue-Lillo; Montagem: Jeffrey M. Werner; Casting: Laura Rosenthal; Design de produção: Julie Berghoff; Direcção artística: James Connelly; Decoração: David Cook; Guarda-roupa: Mary Claire Hannan; Maquilhagem: Cydney Cornell, Elaine L. Offers, Valli O'Reilly; Direcção de Produção: James Debbs, Tracey Landon, Bergen Swanson; Assistentes de realização: Jasmine Alhambra, Emily Hogan, Jesse Nye; Departamento de arte: Cindy Peters; Som: Frank Gaeta, Elmo Weber; Efeitos especiais: Neil Smith; Efeitos visuais: Marcus Lansdell; Companhias de produção: Mandalay Vision, Saint Aire Production, 10th Hole Productions, Antidote Films, Artist International Management, Artist International, Gilbert Films, UGC PH; Intérpretes: Annette Bening (Nic), Julianne Moore (Jules), Mark Ruffalo (Paul), Mia Wasikowska (Joni), Josh Hutcherson (Laser), Yaya DaCosta (Tanya), Kunal Sharma (Jai), Eddie Hassell (Clay), Zosia Mamet (Sasha), Joaquín Garrido (Luis), Rebecca Lawrence, Lisa Eisner, Eric Eisner, Sasha Spielberg, James MacDonald, Margo Victor, Amy Grabow, Stuart Blumberg, Diego Calderón, etc. Duração: 106 minutos; Distribuição em Portugal: Castello Lopes Multimédia; Classificação etária: M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 18 de Novembro de 2010.
Classificação: ****

sábado, fevereiro 19, 2011

CINEMA: THE FIGHTER

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THE FIGHTER - ÚLTIMO ROUND
Não vale a pena dizer que este filme não é sobre boxe, porque tem todo o aspecto de o ser. Senão não haveria filmes sobre boxe, pois o boxe cruza-se sempre com outros aspectos da vida, e este desporto (?) funciona muitas vezes como metáfora mais ou menos evidente de outras realidades. A verdade é que há muitos, e quase todos bons e muito bons filmes que têm o boxe como ponto de referência, desde o clássico “Gentleman Jim”, de Raoul Walsh, ao mais recente “Million Dollar Baby”, de Clint Eastwood, passando por “O Touro Enraivecido”, de Martin Scorsese, ou os vários “Rocky”, de John G. Avildsen e Sylvester Stallone. Podem, e devem, citar-se ainda “Um Homem e o seu Destino”, de Ralph Nelson, “A Queda de um Corpo”, ou “O Grande Ídolo”, ambos de Mark Robson, “Nobreza de Campeão”, de Robert Wise, “O Campeão”, de Franco Zeffirelli, “Ali”, de Michael Mann, ou “Cinderella Man”, de Ron Howard. Haveria muitos outros a acrescentar a esta lista que mostra o boxe sob os mais variados ângulos.
Quer se goste ou não deste espectáculo, o boxe é muito cinematográfico e tem servido de base a muito boa gente, realizadores, argumentistas, directores de fotografia e actores, para exporem o seu talento. “The Fighter – Último Round” é apenas mais um exemplo, e nem por isso dos melhores, ainda que mereça alguma atenção.
Como já aconteceu em muitos outros casos, esta é mais uma história real transposta para o cinema. O boxeur em causa é o "Irish" Micky Ward, nascido a 4 de Outubro de 1965, em Lowell, no Massachusetts, que teve vida difícil e um percurso estranho, tão invulgar quanto a sua estratégia nos combates decisivos. Vindo de um bairro suburbano e pobre, habitado por um operariado desqualificado, inscrito numa família sem grandes perspectivas de vida, Micky Ward teve no seu meio-irmão mais velho, Dicky Eklund, o seu ídolo e o seu treinador inspirado.
Dicky poderia ter sido um grande nome no mundo do boxe se o crime e as drogas o não tivessem atirado para trás das grades. Verdade ou lenda, dizia que ganhara ao mítico Sugar Ray Leonard, e servia-se dessa história para inspirar autoridade. Micky sempre o viu como um ganhador, seguiu-lhe as pisadas, e ouviu os seus conselhos, mesmo quando o visitava na prisão, antes de cada novo combate. A técnica prescrita por Dicky era aguentar, aguentar, aguentar e desferir no final um ataque fulminante, quando já ninguém esperava uma reacção sequer daquele bombo da festa. Resultou, até ao cinturão de campeão do mundo de pesos leves. Numa carreira feita de altos e baixos, mais baixos que altos acrescente-se, este combate em Londres, perante um público adverso, foi a sua coroa de glória, que não se viria a repetir, diga-se.
Nada que não se tenha visto e revisto no cinema. A crónica do jovem infeliz que resiste e faz das dificuldades a sua derradeira vitória é tema banal. Trivial também o relato de mais uma luta de David contra Golias, o que fica bem documentado neste filme, no “último round”, quando o arrogante campeão do mundo em título julga levar de vencida, em três tempos, o atrevido pretendente. É mais uma história de perseverança com bom fim. Mais uma tormentosa luta para se impor, perante as dificuldades da vida. Da vida do dia a dia, que as imagens documentam, que fica igualmente simbolizada em cada combate que se trava no ringue, perante os holofotes que iluminam a metáfora e os olhares de quem acompanha o feito.
O que “The Fighter” tem de mais interessante é a descrição desse microcosmo familiar e bairrista, esse Massachusetts sem ponta de romantismo, a família, os amigos, as mulheres sentadas, paradas, a olharem os treinos, a conversarem à porta de casa, as ruas sem graça, a existência cinzenta. A figura da mãe, protectora e exploradora, as sete irmãs que testemunham, quase sem intervir. Depois há o confronto que é também cumplicidade entre os irmãos, que se incentivam e se defrontam, que fazem dos punhos arma de arremesso contra a adversidade.
Nas personagens dos dois irmãos, dois bons actores que se enfrentam igualmente através de processos de representação muito diversos, senão mesmo contraditórios. Mark Wahlberg (Micky Ward) é a serenidade, a calma, a sobriedade de processos, a interiorização das emoções, enquanto Christian Bale (Dicky Eklund) opta pela composição barroca, sobrecarregada de tiques, esforçada, moldada num corpo mortificado, deliberadamente emagrecido para se conter na macilenta figura. Por mim, acho que Wahlberg fica um pouco aquém e que Bale ultrapassa as medidas. Mas a Academia não vai pensar assim. Ela gosta de representações desta fibra e irá reservar a Christian Bale o Óscar de melhor actor num papel coadjuvante. Que ele é um excelente actor já o demonstrou. Noutros filmes. Aqui torna demasiado evidente essa condição. Sem necessidade. Amy Adams, por seu turno, sem alardes de vedetismo, dá-nos uma belíssima composição.
David Owen Russell (que antes assinara obras curiosas, como “Três Reis”, 1999, ou “Os Psico-Detectives”, 2004) oferece em “The Fighter” um bom trabalho que, sem deslumbrar, justifica nota positiva. Sobretudo pela toada quase neo-realista que imprime a uma boa parte da obra. Mais à vontade fora do ringue do que dentro dele, onde as suas imagens perdem no confronto com muitos dos títulos atrás citados, David O. Russell assina uma obra mediana que só está nomeada para vários Oscars porque a produção do ano não foi brilhante, e porque a Academia prefere o estardalhaço ao rigor. Sete nomeações (melhor filme, realizador, argumento original, montagem, actor secundário e actriz secundária, com duas nomeações) para este filme e uma para “Hereafter”, de Clint Easwood (melhores efeitos visuais)?
Anda alguém a gozar com a gente.

THE FIGHTER - ÚLTIMO ROUND
Título original: The Fighter
Realização: David O. Russell (EUA, 2010); Argumento: Scott Silver, Paul Tamasy, Eric Johnson, Keith Dorrington; Produção: Darren Aronofsky, Dorothy Aufiero, Keith Dorrington, Ken Halsband, David Hoberman, Eric Johnson, Ryan Kavanaugh, Todd Lieberman, Paul Tamasy, Tucker Tooley, Leslie Varrelman, Mark Wahlberg, Jeff G. Waxman; Música: Michael Brook; Fotografia (cor): Hoyte Van Hoytema; Montagem: Pamela Martin; Casting: Sheila Jaffe; Design de produção: Judy Becker; Direcção artística: Laura Ballinger; Decoração: Gene Serdena; Guarda-roupa: Mark Bridges; Maquilhagem: Donald Mowat, Johnny Villanueva; Direcção de Produção: Ken Halsband, Mark Kamine, Christopher Kulikowski, Andrew Troy; Assistentes de realização: Xanthus Valan, Michele Ziegler; Departamento de arte: Melissa B. Miller, Kevin L. Raper, Kurt Smith; Som: Odin Benitez; Efeitos especiais: Stephen R. Ricci; Efeitos visuais: Tim Carras, Joshua D. Comen; Companhias de produção: Closest to the Hole Productions, Fighter, Mandeville Films, The Park Entertainment, Relativity Media, The Weinstein Company; Intérpretes: Mark Wahlberg (Micky Ward), Christian Bale (Dicky Eklund), Amy Adams (Charlene Fleming), Melissa Leo (Alice Ward), Mickey O'Keefe (ele próprio), Jack McGee (George Ward), Melissa McMeekin, Bianca Hunter, Erica McDermott, Jill Quigg, Dendrie Taylor, Kate B. O'Brien, Jenna Lamia, Frank Renzulli, Paul Campbell, Caitlin Dwyer, Chanty Sok, Ted Arcidi, Ross Bickell, Sean Malone, José Antonio Rivera, Art Ramalho, Sugar Ray Leonard, Jackson Nicoll, Alison Folland, Sean Patrick Doherty, Sue Costello, etc. Duração: 115 minutos; Distribuição em Portugal: Valentim de Carvalho Multimédia; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 10 de Fevereiro de 2011.
Classificação: ***

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

CINEMA: 127 HORAS


127 HORAS
É bom começar por uma nota pessoal. Devo ser daqueles que podem ostentar uma t-shirt a dizer “Sobrevivi a 127 horas”. Não ao drama que o filme relata, mas à visão do próprio filme. Mas devo igualmente acrescentar que sobrevivi com recurso a batota. Ou seja: passei para aí 5 minutos com a mão a tapar os olhos e com os dedos entreabertos a ver se “a coisa” já tinha passado.
Esta é mais uma história de perseverança. De sobrevivência. De valorização do espírito de resistência perante as adversidades. Um jovem com um gosto talvez excessivo por desportos radicais resolve ir mais uma vez para as montanhas rochosas, pôr à prova a sua agilidade e arrojo. Vai bem apetrechado, mas ninguém sabe para onde foi. Não atende um telefonema da mãe e isso poderia ter-lhe sido fatal nesse fim-de-semana alucinante. Vai à aventura para a isolada e vasta paisagem do Grande Canyon e irá encontrar pela frente a aventura de uma vida. Não as duas agradáveis jovens com quem se cruza por momentos e com quem toma temerário banho, mas o que vem depois, sobretudo depois de se ter despedido das simpáticas raparigas, o que, como se sabe, é sempre traumatizante.
Mas ele aí vai à desfilada. Bem se pode utilizar o termo, a preceito. Escorrega por uma fresta aberta entre rochas e desce aos trambolhões largas dezenas de metros, enrolado em pedregulhos e areia. Um calhau enorme prende o seu braço direito de encontro à parede rochosa e não há volta a dar. Aron Ralston (James Franco), assim se chama o herói desta trágica aventura, não consegue sair dali. A uma centena de metros de profundidade, sem viva alma à volta, num raio de dezenas ou centenas de quilómetros, enterrado num metro de oxigénio, entre dois muros de rocha, com um litro de água potável, alguma comida, um canivete adquirido numa loja de chineses, em lugar do canivete suíço que “devia ter comprado”, uma câmara de vídeo (com boa imagem e bom som e uma bateria que nunca mais acaba – boa publicidade à marca!) e algum material de alpinista, Aron Ralston passa 127 horas enjaulado, com uma ave de rapina, águia ou abutre, que passa no céu, todas as manhãs, a assegurar-se de que a presa ainda se debate com vida.
Aron tenta arrastar o pedregulho, procura lapidá-lo com o canivete, puxa o braço, estende as pernas, empurra com os pés, bebe a urina que começa a guardar, sorve também a água da chuva, quase se afoga na posterior enxurrada e, no final, tem de cortar o braço com o canivete (chinês) para se libertar.
Não estou a contar o fim da história, pois esta é uma história de que toda a gente sabe o fim. Tal como no caso do Titanic. O interesse do filme de Danny Boyle (“Trainspotting”, 1996; “Vidas Diferentes”, 1997; “A Praia”, 2000; “28 Dias Depois”, 2002; “Quem Quer Ser Bilionário?”, 2008, entre outros) está na forma como este conta a história verídica e não tanto no seu desenrolar. Argumento bem desenvolvido, narrativa doseada na medida certa, realização cuidada e difícil de manter, mais de uma hora num beco sem saída, um homem preso entre duas rochas, um ou outro flash back, um ou outro delírio, e pouco mais. Apenas o suspense de se saber como se mantém vivo o cativo e quando chega o momento de dilacerar a carne e cortar as cartilagens, até soltar o braço do corpo. O director de fotografia faz prodígios com a câmara, encurralado num espaço mínimo, com um único actor como referência. Um “tour de force” que merece ser sublinhado.
O filme baseia-se numa obra autobiográfica do próprio Aron Ralston ("Between a Rock and a Hard Place") onde conta a sua odisseia. James Franco veste-lhe a pele e com o seu trabalho foi projectado para as nomeações ao Óscar de melhor actor. Não vai ganhar mas merece inteiramente a referência, dado que a sua representação é magnífica, impressionante de verdade, de rigor, de disciplina, sem excessos nem trejeitos escusados.
Um filme interessante, angustiante na agonia, mas nunca desesperante, sempre tocado com um ou outro toque de humor, e uma muito decisiva mensagem de optimismo. Anuncia-se mesmo a continuação: Aron Ralston, amputado, parte para a neve. O que se seguirá? 

                                                           Danny Boyle
127 HORAS
Título original: 127 Hours
Realização: Danny Boyle (EUA, Inglaterra, 2010); Argumento: Danny Boyle, Simon Beaufoy, segundo obra de Aron Ralston ("Between a Rock and a Hard Place"); Produção: Bernard Bellew, Danny Boyle, Christian Colson, Lisa Maria Falcone, Tom Heller, François Ivernel, John J. Kelly, Cameron McCracken, Diarmuid McKeown, Tessa Ross, Gareth Smith, John Smithson; Música: A.R. Rahman; Fotografia (cor): Enrique Chediak, Anthony Dod Mantle; Montagem: Jon Harris; Design de produção: Suttirat Anne Larlarb; Direcção artística: Christopher R. DeMuri; Decoração: Les Boothe, Cynthia A. Neibaur; Guarda-roupa: Suttirat Anne Larlarb; Maquilhagem: Ginger Anglin-Cervantes, Tony Gardner, Gina Homan, Stephanie Scott; Direcção de Produção: Craig Ayers, Bernard Bellew, Duff Rich; Assistentes de realização: Jason Allred, Cody Harbaugh, J. Scott Smiley, David Ticotin, Heather Toone; Departamento de arte: Brent Astrope, Dillon Ellefson, Jason Haase, Hollie Howton; Som: Niv Adiri, Nicolas Becker, Glenn Freemantle; Efeitos especiais: William Aldridge, Blair Foord, Ryan Roundy; Efeitos visuais:  Adam Gascoyne; Companhias de produção: Cloud Eight Films, Film4, Everest Entertainment, Darlow Smithson Productions, Dune Entertainment III, HandMade Films, Pathé; Intérpretes: James Franco (Aron Ralston), Kate Mara (Kristi), Amber Tamblyn (Megan), Sean Bott, Koleman Stinger, Treat Williams, John Lawrence, Kate Burton, Bailee Michelle Johnson, Rebecca C. Olson, Parker Hadley, Clémence Poésy, Fenton Quinn, Lizzy Caplan, Peter Joshua Hull, Pieter Jan Brugge, Jeffrey Wood, Norman Lehnert, Xmas Lutu, Terry S. Mercer, Darin Southam, etc. Duração: 94 minutos; Distribuição em Portugal: Castello Lopes Multimédia; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 24 de Fevereiro de 2011.
Classificação: ***
 

quarta-feira, fevereiro 16, 2011

CINEMA: DESPOJOS DE INVERNO

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DESPOJOS DE INVERNO

Belíssimo filme, uma das grandes surpresas destes títulos que se sabem nomeados para os Oscars. Grata revelação de uma realizadora, Debra Granik, mulher que se adivinha de forte personalidade, com um sentido descritivo profundo, um olhar atento à realidade, uma sensibilidade fina, um gosto por aprofundar o jogo psicológico das personagens, sobretudo através de elementos visíveis, gestos, olhares, silêncios, revelado inclusive pelas próprias relações físicas entre os corpos.
“Winter’s Bone” é nitidamente um filme da era Obama e relembra os do período do “New Deal” de Roosevelt, que nasceram das dificuldades criadas pela Grande Depressão dos anos 30. Os EUA vivem agora uma Depressão idêntica, depois do “crash” de 2008, e esta obra é bem um retrato do drama que o país atravessa.
Retirado de um romance do escritor Daniel Woodrell, o argumento aparece assinado por duas mulheres, a própria realizadora Debra Granik, e a produtora Anne Rosellini que aqui se reúnem pela segunda vez (ambas haviam realizado, escrito e produzido, em 2004, “Down to the Bone”, a longa-metragem de estreia de Debra Garnik).
Daniel Woodrell (nascido a 4 de Março de 1953, em Springfield, Missouri), que vive na região Ozarks, no seu Missouri natal (onde se passa “Despojos de Inverno”), tem no activo oito romances, a maior parte deles “thrillers” rurais. Além de “Winter’s Bone”, a sua obra mais recente, de 2006, Woodrell escreveu “Under the Bright Lights” (1986), “Woe to Live On” (1987), “Muscle for the Wing” (1988), “The Ones You Do” (1992), “Give Us a Kiss: A Country Noir” (1996), “Tomato Red” (1998) e “The Death of Sweet Mister” (2001). Ele próprio chamou ao estilo dos seus romances “country noir”, por evidente associação ao “filme noir”. Antes de ver em cinema “Winter’s Bone”, já assistira a “Woe to Live On” adaptado por Ang Lee, num filme chamado “Ride with the Devil” (1999).
As ásperas e agrestes montanhas Ozark, que se situam entre os rios Arkansas e Missouri, são de reduzida altitude, em jeito de planalto, e funcionam na perfeição para o tipo de obra a que Debra Granik lançou mão. Dispersas pelo seu interior, vivem pequenas comunidades e famílias isoladas, grassa o crime e a droga, cresce a pobreza e a miséria. Os habitantes são rudes e quase primitivos e a família de Ree (Jennifer Lawrence) não foge a este condicionalismo social. O pai, que cozinhava cocaína e fora preso, desaparecera em liberdade condicional, e a família ficara dependente da tenacidade da filha mais velha, com a mãe imobilizada com problemas mentais, e dois irmãos mais novos para tratar. Mais ainda: o pai dera a casa e o terreno como garantia e, se não aparecer, morto ou vivo, a garantia será cobrada pelas finanças, no prazo de uma semana.
Ree não sabe para onde se virar, mas possui a fibra das grandes mulheres, apesar dos seus 17 anos, e faz das tripas coração, revolve céu e terra para encontrar o pai e alimentar a família. À mais pequena falha, podia cair-se aqui no melodrama choramingas, mas Debra Granik aguenta o tom do filme com uma sobriedade invulgar e faz da personagem de Ree uma heroína, que se confronta com todas as intempéries da vida e com a brutalidade dos homens e do seu silêncio cúmplice.
A fome atravessa a paisagem de inverno, e Ree leva o seu cavalo ao estábulo de uma vizinha para esta o alimentar com o feno que ela não pode comprar. Cena pungente na sua serenidade e discrição. As árvores e as casas participam desta desolação inóspita, a terra parece seca e imprestável, o drama social assemelha-se ao de “As Vinhas da Ira” (Steinbeck/Ford) dos anos 30 (com diferenças epocais óbvias, mas o mesmo sofrimento inclemente a estampar-se no rosto das vítimas indefesas).
Ree é figura que vai permanecer para sempre na história do cinema, como retrato inesquecível de uma mulher/menina de antes quebrar que torcer, perseverante, teimosa, indomável (curiosamente muito parecida com a Mattie Ross, de “True Grit”, uma composição sua concorrente ao Óscar) que sofre todos os rigores que a miséria física e psicológica impõe, mas que nunca desiste da sua missão. Uma imagem de marca do outro lado do “New Deal”, que procurava encorajar o cidadão comum a enfrentar a crise e encontrar soluções para a ultrapassar. Desenvolvendo acções de voluntarismo e solidariedade que, curiosamente, são também visíveis em “Despojos de Inverno”. Mesmo num terreno tão pantanoso de um ponto de vista social e moral como este em que decorre a intriga do filme, é possível vislumbrar olhares e gestos de cumplicidade, por vezes temerosa, por vezes secreta, mas que permitem deixar a obra com alguma esperança no coração. Ree é a imagem desse querer que tudo parece remover.
Debra Granik conta com um excelente argumento, que torna densa a obra, que provoca uma inquietação sufocante, que cria um suspense invulgar, com pequenos apontamentos e uma história enxuta e austera que quase recusa toda a ganga do “thriller” tradicional, para provocar uma emoção mais íntima e discreta. A fotografia, a direcção artística, a música, a montagem são elementos primordiais para o resultado final. Mas o elenco, todo o elenco, algum dele composto por actores não profissionais, é absolutamente decisivo para o absoluto sucesso desta obra. São personagens invulgarmente impositivas, algumas com escassos minutos de presença.
Jennifer Lawrence, na protagonista, é simplesmente brilhante. Não vai ganhar o Oscar, porque este já está, há muito, nas mãos de Natalie Portman, mas bem o merecia. Desde já fica, porém, uma certeza: Jennifer Lawrence é nome a não perder de vista, bem como o da realizadora Debra Granik.
O filme triunfou em Sundance. Não podia deixar de ser: é o exemplo típico do melhor cinema indie norte-americano. A não perder.
                                              a realizadora Debra Granik 
DESPOJOS DE INVERNO
Título original: Winter's Bone
Realização: Debra Granik (EUA, 2010); Argumento: Debra Granik, Anne Rosellini, segundo romance de Daniel Woodrell; Produção: Kathryn Dean, Kathryn Dean, Alix Madigan, Michael McDonough, Anne Rosellini, Jonathan Scheuer, Shawn Simon; Música: Dickon Hinchliffe; Fotografia (cor): Michael McDonough; Montagem: Affonso Gonçalves; Casting: Kerry Barden, Paul Schnee; Design de produção: Mark White; Decoração: Rebecca Brown; Guarda-roupa: Rebecca Hofherr; Maquilhagem: Maya Hardinge, Marina Proctor; Direcção de Produção: Maura Anderson; Assistentes de realização: Jolian Blevins, Yann Sobezynski, Cedric Vara; Departamento de arte: Russ Dove, Richard Peete, Nathan R. Webster; Som: James Demer, Matt Rocker, Damian Volpe; Efeitos especiais: Nathan Shelton; Efeitos visuais: Jessica Allen Elvin, Andrew Still; Companhias de produção: Anonymous Content, Winter's Bone Productions; Intérpretes: Jennifer Lawrence (Ree), Isaiah Stone (Sonny), Ashlee Thompson (Ashlee), Valerie Richards (Connie), Shelley Waggener (Sonya), Garret Dillahunt (Sheriff Baskin), William White (Blond Milton), Ramona Blair, Lauren Sweetser (Gail), Andrew Burnley, Phillip Burnley, Isaac Skidmore, Cody Brown (Floyd), Cinnamon Schultz (Victoria), John Hawkes (Teardrop), Casey MacLaren (Megan), Kevin Breznahan, Dale Dickey (Merab), Sheryl Lee (April), Marideth Sisco, Tate Taylor (Satterfield),  Ronnie Hall (Thump Milton), Beth Domann (Alice), Charlotte Jeane Lucas (Tilly), Raymond Vaughan Jr. (Ray), Russell Schalk, Brandon Gray, etc. Duração: 100 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 17 de Fevereiro de 2011. 
Classificação: ****

terça-feira, fevereiro 15, 2011

CINEMA: TRUE GRIT X 2, + UM ROMANCE

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UM LIVRO E DOIS FILMES
1.
Um crítico literário norte-americano escreveu que “Portis é o mais extraordinário escritor de que nunca se ouviu falar.” Por esta frase (e pela proximidade da estreia da segunda versão deste romance em cinema), resolvi ler a obra e não me arrependo. Trata-se efectivamente de um escritor muito interessante, com uma linguagem fluida mas que impõe uma narrativa elegante e sensível, construindo uma história que aborda temas como a vingança e a justiça, num Oeste que aplica as suas regras muito próprias, num cenário invernoso, com personagens bem desenvolvidas, densas e ricas de nuances, com a característica de ser um relato memorialista, de uma mulher de meia idade, solteirona, que recorda a aventura vivida quando tinha catorze anos, o seu pai foi morto cobardemente por uma bala disparada por um empregado bêbado e exaltado, que Mattie Ross jura apanhar e matar. Para isso contrata o mais violento dos marshalls, o temível Reuben J. 'Rooster' Cogburn. Na companhia de um outro caçador de assassinos, La Boeuf, um ranger do Texas, penetram os três no “Território”, terra de índios, onde se acobertavam os perseguidos, para uma caçada sem tréguas.
                                                                        Charles Portis com John Wayne
Charles Portis nasceu a 28 de Dezembro de 1933, em El Dorado, Arkansas, passou pela guerra da Coreia, alistado no “U.S. Marine Corps”, formou-se depois em jornalismo, trabalhou no “New York Herald Tribune”, como correspondente em Londres, e em 1964 abandonou o jornalismo, regressou ao Arkansas, e iniciou um carreira literária. Além de vários contos, reunidos em colectâneas, assinou cinco romances: 1966, “Norwood”, 1968, “True Grit”, 1979, “The Dog of the South”, 1985, “Masters of Atlantis” e 1991, “Gringos”. Julgo que nenhum deles se encontra traduzido para português, com excepção de “True Grit”, agora lançado com o suporte do filme dos irmãos Coen.
Este foi igualmente o primeiro romance de Portis adaptado ao cinema, numa versão assinada pelo mestre veterano Henry Hathaway, em 1969, a que se seguiram duas outras versões, uma para televisão, “True Grit” (1978), com direcção de Richard T. Heffron, e interpretação de Warren Oates, Lisa Pelikan e Lee Meriwether, outra, recente, da responsabilidade dos já citados Ethan Coen e Joel Coen, “Indomável” (2010), de que falaremos mais à frente.
Entretanto, em 1975, Stuart Millar tinha repescado a personagem de Rooster Cogburn e, com argumento de Martha Hyer, voltara a dar a John Wayne a oportunidade de reviver o truculento “marshall”, agora ao lado de Katharine Hepburn. O filme chamava-se precisamente “Rooster Cogburn” (O Sheriff). Não deixou saudades.
Mas houve ainda uma outra incursão de Charles Portis no cinema, uma adaptação de “Norwood” (A Rapariga do Autocarro), de Jack Haley Jr. (EUA, 1970), com Glen Campbell, Kim Darby e Joe Namath. Uma comédia que nos dizem sem grande qualidade. 
2.
A versão de “True Grit” de 1969, mereceu a John Wayne o único Óscar da sua carreira, e impôs-se com um dos grandes westerns desta época, em que o género começava a ameaçar desmoronar-se na América, enquanto na Europa florescia o chamado “western spaghetti” que contribuía em muito para a decadência do género e das suas características, criando uma espécie de paródia, em tons excessivos, de uma violência desregrada e de um acentuado cinismo.
“Velha Raposa” apresentava-se num classicismo sóbrio, escorreito, solar (sublinhamos “solar”, em oposição ao “nocturno” “Indomável”, dos Coen). A história acompanha de perto o romance de Portis, com uma ou outra alteração de pormenor (prescindia-se, por exemplo, do final, com a narradora a demandar Rooster Cogburn integrado num velho circo do Oeste, a saber da sua morte e a levar o seu caixão para repousar junto do pai, na sua herdade).
Henry Hathaway foi um belíssimo realizador, com vasta filmografia (mais de 70 filmes), que deu algumas obras inesquecíveis no “thriller” e no western (ao lado de outras, como “Niágara”, com Marilyn Monroe) e, em “True Grit”, esmerou-se num trabalho magnífico, na maneira sóbria como definiu personagens, como explorou espaços, como sustentou o suspense, como trabalhou o humor, como sustentou a violência de algumas situações e as nimbou de um humanismo e de uma sensibilidade directamente retirados do olhar de uma criança determinada e voluntariosa.
Conta-se uma curiosa história sobre a compra dos direitos do romance de Charles Portis. Parece que dois pretendentes o disputavam, até que o produtor Hal Wallis os adquiriu pela considerável soma de 350.000 dólares, desconhecendo quem era o outro licitador. Hal Wallis veio finalmente a descobrir que quem pretendia comprar os direitos da obra era John Wayne, que iria interpretar o papel. Mas foi Portis quem não quis vender os direitos a Wayne pois achava que ele poderia desvirtuar a ideia do romance e retirar protagonismo à jovem. Afinal Hal Wallis acabou por ter o melhor de dois mundos: os direitos de adaptação, o concurso de John Wayne. Melhor ainda: 15.000.000 de dólares de receitas, só no mercado americano (a maior receita de um filme interpretado por Wayne).
Houve quem chamasse à criação de John Wayne o Falstaff do Oeste, e a designação tem muito de correcta, dada a forma como o actor compôs para a eternidade a figura deste “marshall” zarolho, beberrão e destemido, agente da lei, que aplica de forma muito pessoal, expedito e sucinto no julgamento. Uma figura concebida à medida da personalidade deste ícone do cinema americano, que aqui tem um dos papéis da sua vida. Mas Hathaway é um pouco sádico ao apresentar este herói muito pouco ortodoxo: para lá de zarolho e velho, bêbado e pouco ágil, não se coibiu de o mostrar sob a aparência de final de uma época de ouro, anunciando um adeus carregado de feridas no corpo e na alma. Mas, por outro lado, mesmo no Outono da vida, Rooster Cogburn não se exime a actos de extrema coragem, como o prova o duelo final, dele sozinho, em campo aberto, contra quatro bandidos, com a heróica postura do vingador, a cavalo, um revólver em cada mão, as rédeas presas pelos dentes, partindo à desfilada ao encontro aos inimigos. É simultaneamente o auge do heroísmo do western e o anúncio do seu desaparecimento. Antes de morrer, ergue-se aqui a estátua do mito.
Também Kim Darby criava uma figurinha cheia de serena impetuosidade, boa contabilista, excelente negociante, fria na vingança, sempre senhora das situações. Como lhe disse Hathaway, “tu é que és a patroa, não o Rooster Cogburn”. A seu lado, Glen Campbell, o mais fraco da companhia, Jeremy Slate, Robert Duvall, Dennis Hopper, Jeff Corey, entre outros, organizavam-se para compor uma galeria de tipos muito convincentes.
Muitos se perguntaram, se já existindo este “True Grit”, para quê regressar ao tema, quando o original se mantinha tão moderno na sua leitura e tão clássico na sua concepção. Falsa questão, claro: não é por haver já uma excelente encenação de Shakespeare que não se tentam outras. E assim surgiu a versão de 2010. 
3.
“Indomável”, dos irmãos Coen, coloca-se desde já entre os melhores filmes realizados por esta dupla, ainda que afastando-se um pouco do seu caminho tradicional. Esta não é uma obra que prolongue o seu estilo muito próprio, movido normalmente por uma narrativa excêntrica, moderna, cínica. Eles, que nunca tinham tentado o western, fazem-no aqui optando por um classicismo que se quadra bem com o género.
Trata-se de um “remake”, obviamente, mas não tanto do filme de Hathaway, com o qual mantém muitas semelhanças, mas de que se distancia consideravelmente. Pode falar-se, sobretudo, de um releitura da obra de Portis. Li por aí que esta era uma versão mais fiel à obra literária, mas também não creio que seja o caso. Ambas são bastante fiéis ao texto de onde partem, ainda que aqui e ali valorizem alguns aspectos em detrimento de outros. O filme dos Coen, por exemplo, aproveita o capítulo final da obra de Portis (com a narradora a levar para a sua propriedade e a enterrar junto do pai o cadáver de Rooster Cogburn, 25 anos depois da sua aventura de adolescente), enquanto Hathaway dispensava este final. Mas há igualmente na versão dos Coen elipses de episódios relatados no texto de Portis.
Há, todavia, diferenças de estilo óbvias e olhares distintos. Os Coen optaram por conservar a narrativa na voz Mattie Ross, assumindo o filme uma toada memorialista, e sobretudo mantiveram-se fieis ao cenário natural, aqui o Arkansas, com uma paisagem mais inóspita do que o Colorado de Hathaway. Depois há aspectos que são próprios dos Coen, o seu humor, o seu realismo mais cru, a austeridade de processos, o lado nocturno da narrativa, que confere a toda a obra uma assinalável densidade dramática. Digamos que em Hathaway prevalecia a aventura, e nos Coen o drama.
Este novo “True Grit » não se afasta muito, na intriga, do anterior. Mesmo o tom é clássico, sem malabarismos escusados, mas com alguns belos momentos, como aquele que marca o início da narrativa, a chegada de comboio da adolescente Mattie Ross (Hailee Steinfeld) à cidade, onde o seu pai fora morto, onde vem recuperar o corpo e os haveres, e iniciar a vingança. Os enquadramentos e os movimentos, quer do comboio quer da câmara, são excelentemente coreografados. A contratação de Rooster Cogburn (Jeff Bridges), o encontro com LaBoeuf (Matt Damon), toda a perseguição ao malvado Tom Chaney (Josh Brolin), agora incluído no gang de Lucky Ned Pepper (Barry Pepper), decorrem com o ritmo certo, revelando personagens e situações, impondo o suspense necessário, sem descurar a definição psicológica e, sobretudo, o jogo de relações, subtil mas denso.
As sequências nocturnas revelam um director de fotografia de grande sensibilidade, Roger Deakins (que pode muito bem levar para casa o Óscar da categoria). As interpretações são todas elas excelentes, e a música de Carter Burwell cria habilmente a envolvência necessária.
Jeff Bridges afastou-se da tentação de se emular a John Wayne. Constrói um novo Rooster Cogburn, menos truculento e mais discreto, e ganha uma postura mais humana, mais nuanceada.  A estreante Hailee Steinfeld, nos seus 13 anos, surpreende pela maturidade. Matt Damon é discreto e inspirado, e  Josh Brolin brilhante no seu malvado Tom Chaney.
Uma vez por outra o western regressa em todo o seu esplendor. Em boa hora. “Indomável” fica como um dos prováveis grandes candidatos aos Oscars.

UM LIVRO:
INDOMÁVEL (True Grit)
de Charles Portis (EUA, 1968); Ed. Presença; Colecção Grandes Narrativas; Lisboa, 2011.

DOIS FILMES:
VELHA RAPOSA
Título original: True Grit
Realização: Henry Hathaway (EUA, 1969); Argumento: Marguerite Roberts, segundo romance de Charles Portis; Produção: Paul Nathan, Hal B. Wallis, Joseph H. Hazen; Música: Elmer Bernstein; Fotografia (cor): Lucien Ballard; Design de produção: Walter H. Tyler; Decoração: John Burton, Ray Moyer; Guarda-roupa: Dorothy Jeakins; Maquilhagem: Carol Meikle, Jack Wilson; Direcção de Produção: Frank Beetson; Assistentes de realização: William W. Gray; Departamento de arte: Adam John Backauskas; Som: Roy Meadows, Elden Ruberg; Companhias de produção: Paramount Pictures; Intérpretes: John Wayne (Marshall Reuben J. 'Rooster' Cogburn), Glen Campbell (La Boeuf), Kim Darby (Mattie Ross), Jeremy Slate (Emmett Quincy), Robert Duvall (Ned Pepper), Dennis Hopper (Moon), Alfred Ryder (Mr. Goudy), Strother Martin (Coronel G. Stonehill), Jeff Corey (Tom Chaney), Ron Soble, John Fiedler, James Westerfield, John Doucette, Donald Woods, Edith Atwater, Carlos Rivas, Isabel Boniface, H.W. Gim, John Pickard, Elizabeth Harrower, Ken Renard, Jay Ripley, Kenneth Becker, etc. Duração: 128 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audioviduais; Classificação etária: M/ 12 anos.
Classificação: ****

INDOMÁVEL
Título original: True Grit
Realização: Ethan Coen, Joel Coen (EUA, 2010); Argumento: Joel Coen, Ethan Coen, segundo romance de Charles Portis; Produção: Ethan Coen, Joel Coen, David Ellison, Megan Ellison, Robert Graf, Scott Rudin, Paul Schwake, Steven Spielberg; Música: Carter Burwell; Fotografia (cor): Roger Deakins; Montagem: Ethan Coen, Joel Coen; Casting: Ellen Chenoweth; Design de produção: Jess Gonchor; Direcção artística: Stefan Dechant, Christina Ann Wilson; Decoração: Nancy Haigh; Guarda-roupa: Mary Zophres; Maquilhagem: Kay Georgiou, Thomas Nellen, Christien Tinsley; Direcção de Produção: Catherine Farrell, Karen Ruth Getchell; Assistentes de realização: Stephen Clarke, Bac DeLorme, Betsy Magruder, Jeremy Reisig; Departamento de arte: Jeff B. Adams Jr., John Frick; Som: Craig Berkey; Efeitos especiais: Steve Cremin; Efeitos visuais: Vincent Cirelli, Katie Godwin, Catherine Hughes, Michael Perdew, Payam Shohadai; Companhias de produção: Paramount Pictures, Skydance Productions, Scott Rudin Productions, Mike Zoss Productions; Intérpretes: Jeff Bridges (Rooster Cogburn), Hailee Steinfeld (Mattie Ross), Matt Damon (LaBoeuf), Josh Brolin (Tom Chaney), Barry Pepper (Lucky Ned Pepper), Dakin Matthews (Coronel Stonehill), Jarlath Conroy, Paul Rae, Domhnall Gleeson, Elizabeth Marvel, Roy Lee Jones, Ed Corbin, Leon Russom, Bruce Green, Candyce Hinkle, Peter Leung, Don Pirl, Joe Stevens, David Lipman, Jake Walker, Orlando Storm Smart, Ty Mitchell, Nicholas Sadler, Scott Sowers, Jonathan Joss, Maggie A. Goodman, Brandon Sanderson, Ruben Nakai Campana, etc. Duração: 110 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 17 de Fevereiro de 2011.
Classificação: ****


BAFTAS, OS OSCARS INGLESES

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 OS BAFTAS ENTRONIZAM
“O DISCURSO DO REI”

“O Discurso do Rei” saiu triunfador da noite do Baftas, os Oscars ingleses, atribuídos em Londres. O filme de Tom Hooper ganhou sete troféus (dos 14 para que estava nomeado): melhor filme, melhor actor (Colin Firth), melhores actor e actriz secundários (Geoffrey Rush e Helena Bonham Cárter), melhor argumento original, melhor música e ainda o prémio para “outstanding British Film”, que sublinha o filme britânico que melhor contributo deu esse ano para a indústria do cinema. Curiosamente, Tom Hooper, perdeu o de melhor realizador para David Fincher, de “A Rede Social”, que levou para casa ainda os troféus para melhor argumento adaptado e melhor montagem..
Colin Firth ganhou pelo segundo ano consecutivo o Bafta de melhor actor. É a segunda vez que tal acontece. O anterior triunfador fora Rod Steiger, em 1967 e 1968. Natalie Portman fez o que se esperava e ganhou o prémio de melhor actriz com “Cisne Negro”.
Outro ganhador foi “A Origem” com três prémios: melhor banda sonora, melhor design e efeitos especiais. “Toy Story 3” também não surpreendeu: foi o melhor filme de animação.

Lista dos vencedores:

Melhor Filme: O Discurso do Rei
Melhor Filme Britânico: O Discurso do Rei
Melhor Realizador: David Fincher, A Rede Social
Melhor Actor: Colin Firth, O Discurso do Rei
Melhor Actriz: Natalie Portman, O Cisne Negro
Melhor Actor Secundário: Geoffrey Rush, O Discurso do Rei
Melhor Atriz Secundária: Helena Bonham Carter, O Discurso do Rei
Melhor Actor em Ascensão: Tom Hardy, A Origem
Melhor Estreante Britânico: Argumentista/Realizador Chris Morris, Four Lions
Melhor Argumento Original: David Seidler, O Discurso do Rei
Melhor Argumento Adaptado: Aaron Sorkin, A Rede Social
Melhor Filme Estrangeiro: The Girl With the Dragon Tattoo
Melhor Música: Alexandre Desplat, O Discurso do Rei
Melhor Fotografia: Roger Deakins, True Grit
Melhor Montagem: A Rede Social
Melhor Design de Produção: A Origem
Melhor Guarda-Roupa: Alice no País das Maravilhas
Melhor Som: A Origem
Melhores Efeitos Especiais: A Origem
Melhor Caracterização: Alice no País das Maravilhas
Melhor Filme de Animação: Toy Story 3
Melhor Curta-Metragem: Until the River Runs Red
Melhor Curta-Metragem de Animação: The Eagleman Stag
Troféu de “Academy Fellowship”: Christopher Lee 

segunda-feira, fevereiro 14, 2011

UMA ANTOLOGIA DA ZARZUELA NA REITORIA

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NOITE LÍRICA ESPANHOLA
NA REITORIA DA UNIVERSIDADE CLÁSSICA

Na  Aula Magna da Reitoria da UCL,  integrada nas comemorações dos 100 desta Universidade, decorreu uma “Noite Lírica Espanhola”, dedicada à zarzuela, género musical espanhol por excelência, que conta muitos adeptos em Portugal. A meio caminho entre a ópera e o musical, paredes-meias com a opereta, a zarzuela foi particularmente acarinhada no séc. XIX e início do seguinte. Mas em Espanha há muitas entidades a preservar o género, como a Fundação Guerreiro, que se dedica sobretudo à sua promoção. Foi da colaboração entre esta Fundação, a Universidade Clássica e a Embaixada de Espanha que se pode ver e ouvir, no último sábado, com entrada livre, uma antologia de trechos célebres de algumas das mais conhecidas zarzuelas, como “As Bodas de Luís Alonso”, “Luísa Fernanda”, “Leces Y Sombras”, “Doña Francisquita”, etc.
A Orquestra Sinfónica de Ghamartin, o Coro Talía, a soprano Sagrario Salamanca, o barítono Karoly Szemerédy, o tenor Alejandro Gonzalez del Cerro, a directora musical Silvia Sanz Torre, no total mais de oitenta pessoas em palco, foram os intérpretes que reavivaram, na medida das suas desiguais possibilidades, o gosto por este género musical.
Pena não se ouvir/ver com maior frequência, nos palcos portugueses, uma ou outra zarzuela, como espectáculo integral. As últimas a que assisti foram em Madrid, onde existe quase sempre um teatro que lhes está destinado durante toda a temporada.
Na impossibilidade de apresentar as versões ouvidas na Aula Magna, aqui ficam dois trechos, muito distintos, para matar saudades. 


Mas sempre se conseguiu, no You Tube, uma amostra da orquestra, coro e directora musical.

TEATRO: MAIS RESPEITO QUE SOU TUA MÃE

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MAIS RESPEITO QUE SOU TUA MÃE

Não se percebe muito bem o porquê, mas a verdade é que a imprensa portuguesa quase não critica teatro dito comercial. É normalmente fraco? É verdade, mas também é muitas vezes fraco o teatro dito mais sério e nem por isso, aqui e ali, deixa de merecer as suas referências. Depois há um aspecto que acho profundamente injusto: quem trabalha no teatro comercial merece ser olhado com o mesmo respeito que os demais. Goste-se ou não, merece que as opiniões sejam conhecidas. É bom ter interlocutores, concorde-se ou não com eles. É bom saber o que X ou Z acham do trabalho de A ou B.
Quase não li críticas a “Mais Respeito que sou Tua Mãe” que se estreou há vários meses no Casino do Estoril, passou pelo Rivoli do Porto, e voltou agora a assentar arraiais no Teatro Armando Cortez, na Casa do Artista. Muita gente viu a peça, chegaram-me opiniões pessoais desencontradas. Houve quem detestasse, ou quem se divertisse muito. Mas quase todos eram unânimes quanto à interpretação de Joaquim Monchique, num travesti divertido e muito bem executado.
Quase todos os grandes cómicos adoram, uma vez por outra, experimentar as dificuldades de se fazerem passar por alguém do sexo oposto. Nomeiem um cómico e logo surge o seu momento de travesti. António Silva? Sim. Raul Solnado? Sim. José Viana? Sim. Herman José? Sim. Vamos lá para fora, e a lista prolonga-se.
Actualmente, em Portugal, há dois exemplos máximos desta arte. Herman e Monchique. O poder de transmutação destes dois actores é absolutamente notável. Parece que não representam, que se transformam em. Olhamos para eles como outras personagens, homens ou mulheres, e deixaram de ser eles, não os reconhecemos como eles próprios, são “outros”.
Joaquim Monchique, em “Mais Respeito que sou Tua Mãe”, encarna a figura de uma mulher, Esmeralda, quarentona ou cinquentona, mãe de uma família disfuncional, suburbana, que vive na outra banda, na Baixa da Banheira, e tem sogra, marido, e três filhos. Ela é o esteio da comunidade. A sogra gosta de fuminhos, o marido é reformado, benfiquista ferrenho e passa os dias no sofá frente à sport tv, e quanto aos filhos, há para todos os gostos, a escanzelada galdéria que ganha a vida com strip teases na internet, o homossexual que se torna hétero e não deixa de se entusiasmar com esta descoberta, e o ganzado que faz esculturas com matéria orgânica.
A peça do argentino Hernán Casciari (nascido em Mercedes, Buenos Aires, a 16 de Março de 1971), mas radicado há muito na Catalunha, tem graça, mas abusa, não tanto da brejeirice, como da escatologia. O seu humor oscila entre a anotação crítica certeira e divertida e a vulgaridade de um diálogo sem controlo.
Entusiasta dos blogues, é aí que Hernán Casciari tem cumprido a maior parte da sua actividade jornalística, inclusive para o jornal “El Pais”. Escreveu blogonovela e crítica a séries de TV. Foi chefe de redacção da revista argentina “La Ventana”. Assinou duas obras premiadas, “Subir de Espaldas la Vida” e “Nosotros Lavamos Nuestra Ropa Súcia” (Prémio Juan Rulfo, Paris, 1998). “Weblog de una Mujer Gorda” (melhor blogue para a cadeia alemã “Deutsche Welle”), foi editado com o título “Más Respeto, que soy tu Madre”. Publicou ainda "El Diario de Letizia Ortiz". Em 2007 lançou “España, Perdiste”. Iniciou agora a publicação de uma revista trimestral, “Orsai”, sem publicidade, de distribuição mundial.
Com discreto e eficaz cenário único, numa sóbria encenação do próprio Joaquim Monchique, “Mais Respeito que sou Tua Mãe” está longe de ser uma obra importante, pretendendo ser apenas um divertimento de duas horas, servido por um elenco que cumpre (Luís Mascarenhas, Maria Tavares, Tiago Aldeia, Rita Tristão da Silva e Emanuel Santos). Um maior rigor no texto (que não convidasse tanto à facilidade) seria bem vindo, mas a adaptação à realidade portuguesa é convincente.
Posto isto, o teatro também vive de espectáculos destes, que não ficam na História, mas ajudam alguns espectadores a passar pelas agruras da vida, e trazem público às salas.