quarta-feira, agosto 05, 2009

CINEMA: A VERDADE E SÓ A VERDADE

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A VERDADE E SÓ A VERDADE
Na realidade

“A Verdade e só a Verdade” (Nothing But The Truth), filme de Rod Lurie, aparece como sendo baseado em factos reais, mas que, apesar disso, não segue à letra nem factos nem personagens que lhe serviram de base. Compreende-se por quê depois de se saber um pouco mais sobre o caso em que se baseia.
Nos alicerces desta obra está a jornalista Judith Miller, nascida em 1948 em Nova Iorque, que se tornou uma polémica e contestada jornalista de investigação trabalhando no “New York Times”. Especialista em assuntos do Médio Oriente, de Árabes e de terrorismo internacional, nomeadamente bioterrorismo, Judith Miller desenvolveu várias reportagens sobre exilados políticos iraquianos que permaneciam nos EUA, tal como Ahmed Chalabi, que lhe serviam como fonte de informação privilegiada.
Em 2005, vê-se envolvida num caso controverso que abalou a América e que ficou conhecido pela designação “Cooper-Miller-Novak”. É especialmente este caso que serve de inspiração ao filme “Nothing But The Truth” que, neste caso, é tudo menos a verdade sobre o que então se passou e sobre a personalidade de Judith Miller.
Judith Miller começou a sua carreira de jornalista no “New York Times” em 1977. Em 1986 já era manifesta a sua simpatia pelos falcões americanos, ao escrever uma série de artigos sobre a Líbia de Mouammar Kadhafi, que muitos incluíram numa campanha de desinformação sobre aquele país, campanha essa orquestrada pelo almirante John Poindexter, depois caído em desgraça. Em 1993, casa com Jason Epstein, escritor e editor literário. Depois de 2000, Judith Miller vê-se sobrecarregada de acusações, todas elas com a mesma orientação política: ela servia os interesses da administração Bush.
Publica falsas informações sobre a existência de armas de destruição massiva no Iraque (mais tarde o jornal explica que cinco dos seus seis artigos continham informação falsa), descobre possível material (tubos metálicos) que se destinavam ao Iraque e que ela conota com a fabricação de armas atómicas (o que depois alguns cientistas contradizem), afirma ter recebido uma carta no seu escritório do NYT, contendo antrax, numa altura em que vários meios de comunicação social americanos receberam realmente cartas com antrax, como ABC News, CBS News, NBC News ou New York Post, todos em Nova Iorque, ou ainda o National Enquirer na Flórida. Ou os senadores Tom Daschle e Patrick Leahy, em Washington. Deste ataque resultaram 22 pessoas infectadas, das quais cinco morreram, mas, analisada a carta de Judith Miller, veio a verificar-se que não era antrax o que continha. Nesse ano ela recebe o Prémio Pulitzer sobre as suas investigações sobre a Al-Qaida e Oussama Bin Laden.
Aquando da morte de Yasser Arafat, dirigente palestiniano, a necrologia aparecida no NYT (11 de Novembro de 2004) continha gritantes erros, e fora redigida por Miller. Choveram mais críticas, o que voltaria a acontecer com o caso “Cooper-Miller-Novak”. Que se resume assim:
Judith Miller escreve no “New York Times”, que Valerie Plame, mulher do diplomata Joe Wilson, era agente da CIA. Pensa-se que foi a própria Casa Branca a espalhar a notícia como forma de manchar a honra de Joe Wilson e mulher, dado que o diplomata havia criticado a política da administração Bush, acusando-o de impor uma guerra sobre falsas informações. Em 6 de Julho de 2005, Judith Miller é presa porque se recusa a revelar as fontes em que se baseara para denunciar uma agente da CIA. Nos EUA denunciar um agente secreto é crime. Permanece algumas semanas em prisão, mas, em 30 de Setembro, admite depor, dado que a sua fonte aceitou levantar a confidencialidade. Em Novembro, depois de um acordo negociado entre a jornalista e o NYT, afasta-se do jornal e escreve um texto dirigido ao editor do NYT, onde explica a demissão.

A VERDADE E SÓ A VERDADE
Na óptica de Judith Miller
O Adeus de Judith Miller (9 de Novembro de 2005)

Ao editor:
Em 6 de Julho escolhi ir para a prisão para defender o meu direito de jornalista de proteger uma fonte confidencial, o mesmo direito que permite que advogados garantam a confidencialidade dos seus clientes, padres a de seus paroquianos e médicos ou psicoterapeutas a de seus pacientes. Embora 49 estados tenham estendido este privilégio a jornalistas, pois sem tal protecção a imprensa livre não pode existir, não há lei federal equivalente. Escolhi ir para a prisão não apenas para honrar meu juramento de confidencialidade, mas também para dramatizar a necessidade desta lei federal.
Após 85 dias, mais que o dobro de tempo que qualquer outro jornalista americano passou na cadeia por esta causa, concordei em testemunhar perante o grande júri do procurador especial Patrick J. Fitzgerald sobre as minhas conversas com a minha fonte, I. Lewis Libby Jr. Fiz isso somente depois de as minhas duas condições terem sido atendidas: primeiramente, o Sr. Libby libertou-me voluntariamente, por escrito e por telefone, da minha promessa de proteger as nossas conversas; e, em segundo, o procurador especial limitou as suas perguntas somente às questões relevantes ao caso Valerie Plame Wilson. Diferentemente do que afirmaram relatos inexactos, estes dois acordos não poderiam ter sido alcançados antes de eu ter ido para a prisão. Sem eles, eu ainda estaria na cadeia, talvez, advertiram os meus advogados, acusada de obstrução da justiça, um crime. Embora alguns colegas tivessem discordado da minha decisão de testemunhar, permanecer na cadeia após ver atendidas minhas condições pareceria um martírio autólatra ou pior, um esforço deliberado para obstruir a investigação sobre crimes sérios do procurador.
Em parte por essas objecções de alguns colegas, decidi-me, após 28 anos e com sentimentos misturados, deixar o Times. Sinto-me honrada por ter feito parte deste jornal extraordinário e orgulhosa de minhas realizações – um Pulitzer, um DuPont, um Emmy e outros prémios –, mas triste por deixar minha casa profissional.
Mas principalmente escolhi demitir-me porque nos últimos meses me transformei em notícia, algo que um repórter do New York Times nunca quer ser.
Mesmo antes de ir para a prisão eu já me tinha transformado num pára-raios da fúria pública sobre as falhas da área de informações que ajudaram a levar o nosso país para a guerra. Diversas matérias que escrevi ou co-escrevi foram baseadas nesta falha dos serviços secretos, e em Maio de 2004 o Times concluiu, em nota dos editores, que a cobertura deveria ter reflectido um cepticismo maior.
Num discurso que fiz no Barnard College em 2003, um ano antes da publicação desta nota, perguntei se as informações dos serviços secretos sobre armas de destruição em massa (ADM) eram meramente erradas, ou se eram exageradas ou mesmo falsificadas. Acreditei então, e ainda acredito, que a resposta à má informação é mais reportagem. Lamento que não me tenha sido permitido buscar respostas para as perguntas que levantei em Barnard. A falta das respostas continua a corroer a confiança na imprensa e no governo.
O direito de resposta e a obrigação de corrigir imprecisões são também marcas de uma imprensa livre e responsável. Estou satisfeita por Bill Keller, editor-executivo do Times, finalmente ter esclarecido as observações feitas por ele, sem apoio nos factos e pessoalmente dolorosas. Alguns de seus comentários sugeriram insubordinação da minha parte. Eu sempre escrevi as matérias que me cabiam de acordo com as normas éticas e de apuramento da verdade do jornal, e cooperei com as decisões editoriais, mesmo quando delas discordei.
Saúdo a página editorial do Times por advogar uma lei federal de protecção dos jornalistas antes, durante e depois da minha prisão e por apoiar recentemente, apenas duas semanas atrás, minha disposição de ir para a cadeia em defesa deste princípio vital. Quero agradecer sobretudo aos colegas que me apoiaram depois de ter sido criticada nessas páginas. A minha resposta a esta crítica pode ser lida na íntegra no meu site: JudithMiller.org.
Continuarei a defender uma lei federal de protecção do jornalista. Nos meus escritos futuros, pretendo chamar a atenção para as ameaças internas e externas às liberdades no nosso país – al-Qaida e outras formas de extremismo religioso, terrorismo convencional e com ADM e o sigilo crescente no governo em nome da segurança nacional –, assuntos que têm definido há muito tempo o meu trabalho. Saio sabendo também que o Times continuará a sua tradição de excelência que o tornou indispensável aos seus leitores, um padrão para os jornalistas e um reduto da democracia.”
A VERDADE E SÓ A VERDADE
No filme de Rod Lurie
Este é apenas mais um filme sobre jornalismo e os problemas que o mesmo encontra para levar as notícias ao público? Sim e não. É verdade que, por um lado, se trata precisamente disso, de como exercer a profissão de jornalista e de como enfrentar algumas das dificuldades que se levantam a essa prática. Mas, por outro lado, este filme (como por exemplo o também recente “Ligações Perigosas”), parece recuperar uma via liberal do cinema norte-americano (dos anos 30, 40, 50, retomada depois periodicamente por alguns cineastas isolados) onde se faz a defesa dos princípios e das virtudes democráticas. De certa forma, uma confissão de confiança no sistema e na sua regeneração através do quinto poder, a comunicação social.
Desta feita, o caso da jornalista Judith Miller e da sua polémica investigação ao serviço do “New York Times” serve não tanto para ser adaptada fielmente, mas como base para ficcionar um caso idêntico, mas curiosamente de sinal contrário. Enquanto Judith Miller era acusada de direitista e apologista de Bush, o que argumentista e realizador de “Nothing But The Truth” faz é rigorosamente algo de efeito oposto, um libelo na defesa de princípios e de comportamentos que defendem a liberdade de imprensa e do jornalista, lutando pela confidencialidade das fontes. E porquê? O jornalista vive muitas vezes de dicas “off de record”, que poderá utilizar caso não mencione as fontes. Esta prática é discutível, mas tem vantagens e desvantagens democráticas (ambas exemplificadas ou no caso verídico e ou no ficcionado de Judith Miller). Por mim, acho que o anonimato nunca foi bom conselheiro em democracia, mas a verdade é que se não fosse ele não teríamos tido conhecimento do Watergate, para só citar um exemplo do conhecimento geral.
Em “Nothing But The Truth” a jornalista em causa chama-se Rachel Armstrong (Kate Beckinsale) e é igualmente repórter num (fictício) jornal diário de grande tiragem na América. É ela que descobre que Erica Van Doren (Vera Farmiga), mulher de um diplomata norte-americano que escreveu um artigo contra a política externa da Casa Branca, pertence à CIA. Erica Van Doren viajou pela América Latina e investigou se a Venezuela estivera ou não associada ao assassinato de um presidente dos EUA. Retirou dessa investigação conclusões negativas, que o governo resolveu ignorar para poder actuar em território venezuelano. Dar a conhecer a identidade de agente secreta de Erica Van Doren pode ser uma manobra da própria administração Bush, para desprestigiar a sua investigação, ou simplesmente uma forma de pressão, sobre a comunicação social e sobre as “fontes informativas” anónimas. O governo, estribado numa lei que permite perseguir quem denuncie a identidade de agentes secretos, e servindo-se de uma outra lei, federal, que obriga à identificação de fontes, coloca Rachel Armstrong em tribunal, respondendo perante um grande júri, num processo dirigido pelo promotor público “especial” destacado para este caso, Patton Dubois (Matt Dillon).
O filme acompanha esta batalha jurídica, e a luta do elegante advogado Albert Burnside (Alan Alda), que, de início, parece mais interessado nos seus fatos de marca e na sua aparência cosmopolita, mas que finalmente, empolgado pela causa, tudo fará para ajudar Rachel Armstrong que se vê envolvida num escabroso processo, com direito a prisão (mais de 350 dias), humilhação pública, violenta tareia na cela, afastamento de marido e filho, críticas de colegas, levando mesmo ao assassinato de Erica Van Doren, executado por um demente extremista.
O filme é particularmente interessante, eficaz na sua narrativa, bem interpretado, com saliência para Kate Beckinsale, Matt Dillon (excelente em Patton Dubois, que ele interpreta como se fosse o “bom da fita”, segundo palavras do próprio), Angela Bassett e Alan Alda (bom regresso à ribalta num papel à sua medida). Não será obviamente um filme inesquecível, a sua construção é por demais banal a nível cinematográfico, mas não deixa de tratar um tema forte e importante, fazendo-o de forma interessante e inteligente, que permite relançar uma polémica que a todos diz respeito.
A VERDADE E SÓ A VERDADE
Título original: Nothing But The Truth
Realização: Rod Lurie (EUA, 2008); Argumento: Rod Lurie; Produção: Dennis Brown, Marc Frydman, David Glasser, William J. Immerman, Rod Lurie, James Spies, Bob Yari; Música: Larry Groupé; Fotografia (cor): Alik Sakharov; Montagem: Sarah Boyd; Casting: Mary Jo Slater; Design de produção: Eloise Crane Stammerjohn; Guarda-roupa: Lynn Falconer; Maquilhagem: Gloria Belz, Janice Byrd; Direcção de Produção: Ed Cathell III, Buddy Enright, Jill Greenblatt, Shana Fischer Huber, Linda L. Miller; Assistentes de realização: John Greenway, Thomas A. Reilly, Scott Rorie; Departamento de arte: Rachel Boulden, Frank Hendrick, Dane Moore; Som: Anna MacKenzie; Efeitos visuais: Daniel Kumiega, Curt Miller, Doug Spilatro; Companhias de produção: Battleplan Productions, Yari Film Group (YFG); Intérpretes: Kate Beckinsale (Rachel Armstrong), Matt Dillon (Patton Dubois), Angela Bassett (Bonnie Benjamin), Alan Alda (Alan Burnside), Vera Farmiga (Erica Van Doren), David Schwimmer (Ray Armstrong), Courtney B. Vance (Agente O'Hara), Noah Wyle (Avril Aaronson), Floyd Abrams (Juiz Hall), Preston Bailey (Timmy Armstrong), Kristen Bough (Allison Van Doren), Julie Ann Emery, Robert Harvey, Michael O'Neill, Kristen Shaw, Angelica Torn, Jamey Sheridan, Pamela Jones, Jennifer McCoy, David Bridgewater, Jenny Odle Madden, Rod Lurie (Larry), Janie Paris, Jim Palmer, Clay Chamberlin, Joseph Murphy, Ashley LeConte Campbell, Scott Williamson, Dan Abrams, Elizabeth Annewilson, Jon W. Sparks, Erin Dangler, Randall Hartzog, Craig Wright, Phil Darius Wallace, Kelly Holleman, Allen O. Battle III, Teri Itkin, Angie Gilbert, Antonio Morton, Blake Brooks, Carol Russell-Woloshin, Verda Davenport, Robert P. Campbell, Michael Detroit, Jeffrey W. Bailey, Garnet Brooks, William J. Immerman, D'Army Bailey, Lowell Perry, etc. Duração: 108 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Locais de filmagens: Memphis, Tennessee, EUA; Estreia em Portugal: 30 de Julho de 2009.

terça-feira, agosto 04, 2009

CINEMA, ELEGIA

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ELEGIA

"O Animal Moribundo", de Philip Roth, que é definitivamente um dos maiores escritores norte-americanos vivos, está na base de “Elegia”, o novo filme de Isabel Coixet. Devo confessar que Philip Roth é escritor de minha muito particular estima, quer pelos temas abordados, quer pelo seu estilo, que muito bem se coaduna com o seu universo, quer ainda pelas suas posições políticas e preocupações sociais.
Quando li “O Animal Moribundo” afirmei que, por várias razões, o livro me tocou profundamente. Curiosamente, dias antes, alguém lera uns textos meus e me disse: “Relembram-me “O Animal Moribundo””. Fui ler e concordei: era verdade. Seguramente, com uma longa distância de talento a separar-nos. Mas as preocupações estão lá e as formas de as enfrentar também.
“O Animal Moribundo" é um escritor, professor universitário de literatura, semi-reformado, que já só dá um seminário de Crítica Prática, embora continue a ser um considerado crítico cultural, respeitado pelas suas intervenções semanais na televisão, e por uma ou outra ocasional crítica teatral. Tem sessenta e alguns anos, está divorciado há muito, desde os libertadores “anos 60”, tem um filho com quem se relaciona mal (que nunca lhe perdoou o divórcio da mãe), sente a velhice aproximar-se e a morte rondar. Vai rodando casos amorosos ou, melhor dizendo, vai multiplicando aventuras sexuais com alunas actuais e antigas. Até que um dia encontra, numa das suas aulas, Consuela, muito mais nova que ele, com vinte e quatro anos de origem cubana, ardentes e apaixonados. David Kepesh leva-a a jantar e depois para casa, fala de Kafka e de Velásquez, mas a obsessiva ideia inicial é levar Consuelo para a cama. Sexo duro e puro parece ser o horizonte, mas o que nasce dessa aproximação é algo de muito mais profundo, uma história de amor que tem o corpo e o sexo como origem, mas se transfigura à medida que o tempo passa e os sentimentos se fortalecem.
O que se conta no livro e no filme é o angustiante encontro de um homem a caminho da velhice e de uma mulher, na sua plenitude, ao encontro da morte. O resultado em livro é brilhante, notável, arrasador, escrito com a secura de um Hemingway, mas com o olhar do início de século XXI. Uma viagem ao mais secreto da alma humana, empreendida por um escritor verdadeiramente invulgar, numa obra de uma densidade e força inusitadas. A sua transposição para o cinema não é menosprezável, muito pelo contrário. Isabel Coixet é uma realizadora catalã com imenso talento e um definido gosto por histórias inesperadas de emoções conturbadas (são dela filmes muito interessantes como “Cosas que Nunca te Dije”, 1996, “Mi Vida sin Mí”, "A Minha Vida sem Mim", 2003, “La Vida Secreta de las Palabras”, "A Vida Secreta das Palavras", 2005).
Obviamente a adaptação não é fiel, na íntegra, ao texto literário, corta sequências, condensa outras, altera factos, reduz substancialmente o clima erótico e atenua a linguagem desbragada utilizada no romance, mas de um modo geral procura ser fiel ao espírito e à essência da obra. Isabel Coixet escolheu um elenco de grande maturidade e rigor, Ben Kingsley (David Kepesh) não é a figura que eu imaginei quando li o romance, mas é um actor magnífico, que se transmuda, que se adequa a cada nova situação, Penélope Cruz (Consuela Castillo) consegue conciliar a sensualidade e uma certa inocência de comportamento, ainda que lhe falte algum “fogo cubano”, e seja demasiado trintona para fazer de rapariga de vinte e quatro anos, Dennis Hopper (na composição da personagem George O'Hearn, poeta galardoado com um Pulitzer, amigo de Kepesh) é igualmente notável de bonomia e rigor, bem como Patricia Clarkson (a anterior amante Kepesh, Carolyn). Excelente é ainda Peter Sarsgaard (Kenny Kepesh, o filho).
Um elenco que oferece uma solidez inequívoca e uma eficácia notável na transmissão de emoções fortes e devastadoras e, por vezes, de um infinito desencanto. Um dos outros grandes méritos de Isabel Coixet é conseguir transmitir a todo o filme um ambiente de melancolia e solidão, de quase desespero, sem recorrer a truques ou efeitos fáceis. A toada do filme é lenta, nocturna, magoada, entrecortada por cenas de um ardor sensual visceral, de quem procurar morder a vida e a ela se agarrar, como forma de sobrevivência, não tanto frente à morte, mas sobretudo perante o inexorável declínio físico, à proximidade da doença e do que ela acarreta de perca de faculdades, de perca de juventude, de perca das potencialidades da vida. As sombras do entardecer dos corpos projectam-se nestas paisagens humanas em decadência. Neste caso, “fazer amor” (ou foder, como Philip Roth gosta de rectificar) não é só “fazer amor” ou foder, é afirmar uma vontade, é revoltar-se contar o destino, é erguer um desejo de imortalidade (certamente irrisório) diante do irremediável. É o próprio David Kepesh quem afirma: “Quando fazes amor com uma mulher vingas-te de todas as coisas que te destruíram durante a vida”
(When you make love to a woman you get revenge for all the things that defeated you in life”. )
Outro aspecto muito curioso neste filme, é que a adaptação cinematográfica é empreendida por uma mulher, baseada num livro que só podia ter sido escrito por um homem, onde aqui e ali se poderiam mesmo notar certas facetas de um machismo “domesticado”, “civilizado”. Mas David Kepesh é claramente uma personagem típica do universo de Philip Roth, muito parecida com Coleman Silk, o reitor reformado de “The Human Stain” (“Culpa Humana”, 2003), um filme de Robert Benton, curiosamente igualmente adaptado ao cinema por Nicholas Meyer (que acompanha Isabel Coixet nesta nova adaptação). A caminho da velhice, solitário, neurótico, obcecado pela juventude e as mulheres, ofuscado pelo sexo, através do qual procura afirmar-se, e mais do que isso, prolongar a sua vida, Kepesh é uma figura fascinante e de uma humanidade dilacerante. Esta personagem é muito bem entendida por uma mulher que a filma com uma enorme ternura e compreensão, que a olha de frente na sua frágil dignidade e na sua total solidão. Esta “Elegia”, que por definição é um poema triste, é também um belo poema triste sobre a descoberta do amor num homem de sessenta e muitos anos, empedernido por sucessivos casos descartáveis, mas que subitamente descobre dentro de si a força do amor, a incerteza da dúvida e do ciúme, a perenidade da carne, e até a força da paternidade. “O Último Tango em Paris”, de Bertolucci, entre alguns outros exemplos passíveis de citar, já abordava o caso de um homem maduro envolvido sexualmente com uma voluptuosa jovem muito mais nova, numa troca de experiências que revificava ambos. Esta “Elegia” retoma o tema com sensibilidade e uma dorida compreensão.
ELIGIA
Título original: Elegy
Realização: Isabel Coixet (EUA, 2008); Argumento: Nicholas Meyer, segundo romance de Philip Roth (“O Animal Moribundo – The Dying Animal); Produção: Andre Lamal, Gary Lucchesi, Eric Reid, Tom Rosenberg; Fotografia (cor): Jean-Claude Larrieu; Montagem: Amy E. Duddleston; Casting: Heike Brandstatter, Coreen Mayrs; Design de produção: Claude Pare; Direcção artística: Helen Jarvis; Decoração: Lin MacDonald; Guarda-roupa: Katia Stano; Maquilhagem: Gitte Axen, Martin Samuel, Susan Boyd; Direcção de Produção: Terra Abroms, Penny Gibbs; Assistentes de realização: Misha Bukowski, Sandra Mayo, Louisa Phung, Rhonda Taylor; Departamento de arte: Gordon Brunner, Jan Kobylka, Ray Lai, Sharon Thompson, Mario Tomas-Niedworok; Som: Karen Schell; Efeitos especiais: William H. Orr; Efeitos visuais: Alexandre Cancado, Vincent Cirelli, Payam Shohadai, Steven Swanson; Companhias de produção: Lakeshore Entertainment; Intérpretes: Penélope Cruz (Consuela Castillo), Ben Kingsley (David Kepesh), Dennis Hopper (George O'Hearn), Patricia Clarkson (Carolyn), Peter Sarsgaard (Kenny Kepesh), Deborah Harry (Amy O'Hearn), Charlie Rose (Charlie Rose), Antonio Cupo, Michelle Harrison, Sonja Bennett, Emily Holmes, Chelah Horsdal, Marci T. House, Alessandro Juliani, Tiffany Lyndall-Knight, Laura Mennell, Andre Lamal, Shaker Paleja, Kris Pope, Julian Richings, Tania Saulnier, Michael Teigen, Ryan McDonell, etc. Duração: 112 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 3 de Julho de 2009; Locais de filmagens: Coquitlam, Vancouver Island, Vancouver, University of British Columbia, British Columbia, Canadá.
De Philip Roth, "O Animal Moribundo", citações:

“(…) Por muito que saibamos, por muito que pensemos, por muito que maquinemos, compactuemos e planeemos, não somos superiores ao sexo. É um jogo muito arriscado. Um homem não teria dois terços dos problemas que tem se não se aventurasse a ser fodido. É o sexo que traz a desordem às nossas vidas normalmente ordenadas. Eu sei isto tão bem como qualquer outra pessoa. Toda e qualquer vaidade regressa para troçar de nós. Lê o “DonJuan”, de Byron. No entanto, que podemos nós fazer se temos sessenta e dois anos e estamos convencidos de que nunca mais voltaremos a ter ao nosso alcance uma coisa tão perfeita? Que fazemos se temos sessenta e dois anos e a ânsia de aproveitar seja o que for que seja aproveitável não poderia ser mais forte? Que fazemos se temos sessenta e dois anos e tomamos consciência de que todas aquelas partes do corpo até então invisíveis (rins, pulmões, veias, artérias, cérebro, intestinos, próstata, coração) estão a começar a tornar-se desoladoramente patentes, enquanto o órgão mais conspícuo ao longo de toda a nossa vida está condenado a mirrar até à insignificância?
Não me interpretes mal. Não se trata de, por intermédio de uma Consuela, podermos cair na ilusão de pensar que regressamos uma última vez à nossa juventude. Não é possível sentir mais a diferença relativamente à nossa juventude. Na energia dela, no seu entusiasmo, na sua ignorância juvenil, na sua sabedoria juvenil, a diferença é dramatizada em cada instante. Nunca há a mínima dúvida de que é ela, e não nós, quem tem vinte e quatro anos. Só um grande idiota sentiria que é de novo jovem. Se nos sentíssemos jovens, seria uma armadilha. Longe de nos sentirmos jovens, sentimos o tormento do futuro ilimitado dela em comparação com o nosso futuro limitado, sentimos ainda mais do que normalmente o tormento de todos os derradeiros dons que fomos perdendo. É como jogar basebol com um grupo de miúdos de vinte anos. Não que nos sintamos com vinte anos por jogarmos com eles. Notamos a diferença durante cada segundo de jogo. Mas pelo menos não estamos sentados nas linhas laterais.
O que acontece é o seguinte: sentimos lancinantemente que estamos velhos, mas de uma maneira nova.” (pag.s 36-37)
“(…) Enquanto cresci, o homem não era emancipado no reino sexual. Era um homem de segunda apanha. Era um ladrão no reino sexual. Surripiávamos uma apalpadela. Roubávamos sexo. Adulávamos, suplicávamos, lisonjeávamos, insistíamos - todo o sexo exigia luta, tinha de ser disputado aos valores, senão à vontade da rapariga. O conjunto de regras determinava que tínhamos de impor a nossa vontade à rapariga. Era assim que ela era ensinada a manter o espectáculo da sua virtude. Ficaria confuso se uma rapariga comum se oferecesse, sem uma infinita importunação, para quebrar o código e praticar o acto sexual. Porque ninguém, de qualquer dos sexos, tinha alguma noção de que recebia à nascença um direito erótico. Era desconhecido. Ela podia, se estivesse caída por nós, concordar com uma punheta - que significava essencialmente usar a nossa mão com a dela como um encaixe -, mas que alguém consentisse alguma coisa sem o ritual do cerco psicológico, de perseverante e monomaníaca tenacidade e exortação, bem, isso era impensável. Não havia, com certeza, possibilidade de conseguir um broche a não ser usando de uma perseverança sobre-humana. Eu consegui um em quatro anos de universidade. Era tudo quanto nos era permitido. Na cidade rústica das Catskill, onde a minha família tinha um pequeno hotel de férias e eu atingi a maioridade nos anos quarenta, a única maneira de ter sexo consensual era ou com uma prostituta ou com alguém que fora a nossa namorada durante a maior parte da nossa vida e com quem toda a gente calculava que íamos casar. E nesse caso pagávamos o que devía­mos, pois frequentemente casávamos com ela.” (pag.61)

“(…) A última pessoa a tomar estas questões a sério foi John Milton, há trezentos e cinquenta anos. Alguma vez leram os seus panfletos sobre o divórcio? No seu tempo, isso valeu-lhe muitos inimigos. Estão aqui, estão entre os meus livros com as margens densamente anotadas nos anos 60. “O nosso Salvador abriu para nós esta arriscada e acidental porta do casamento para no-la fechar como o portão da morte...?” Não, os homens não sabem nada - ou procedem voluntariamente como se não soubessem - a respeito do lado difícil e trágico daquilo em que vão entrar. Na melhor das hipóteses, pensam estoicamente: Sim, eu compreendo que mais cedo ou mais tarde vou renunciar ao sexo neste casamento, mas será a fim de ter outras coisas mais valiosas. Mas compreenderão aquilo de que estão a abdicar? Ser casto, viver sem sexo... bem, como encararão as derrotas, os compromissos, as frustrações? Ganhando mais dinheiro, ganhando todo o dinheiro que puderem? Fazendo todos os filhos que puderem? É uma ajuda, mas não é a mesma coisa. Porque a outra coisa se baseia no seu ser físico, na carne que nasce e na carne que morre. Porque só quando fodemos é que tudo aquilo de que não gostamos na vida e tudo aquilo que nela nos derrota é puramente, ainda que momentaneamente, vinga­do. Só então estamos mais limpamente vivos e somos mais limpamente nós mesmos. A corrupção não é o sexo, a corrupção é o resto. O sexo não é apenas fricção e divertimento superficial. O sexo é também vingança contra a morte. Não esqueçam a morte. Não a esqueçam nunca. Sim, o sexo também é limitado no seu poder. Eu sei muito bem a que ponto é limitado. Mas, digam-me, há algum poder maior? (pag. 63)

“(…) Tocava Beethoven e masturbava-me. Tocava Mozart e masturbava-me. Tocava Haydn, Schumann, Schubert e masturbava-me com a imagem dela no pensamento. Porque não podia esquecer os seios, os seios plenos, os mamilos e a maneira como ela conseguia envolver neles o meu pénis e acariciar-me assim. Outro pormenor. Um último pormenor e paro. Estou a tornar-me um pouco técnico, mas isto é importante. Este foi o contacto que fez de Consuela uma obra-prima de volupté. Ela é uma das poucas mulheres que conheci que se vinha empurrando a vulva para fora, empurrando-a involuntariamente como o corpo macio, não segmentado e espumoso de uma bivalve. A primeira vez apanhou-me de surpresa. Sentimo-la e temos uma sensação da fauna desse outro mundo, de qualquer coisa vinda do mar. Como se fosse relacionado com a ostra, o polvo ou a lula, uma criatura oriunda de quilómetros abaixo e eternidades atrás. Normalmente, vemos a vagina e podemos abri-la com as nossas mãos, mas no seu caso ela abria-se como se florescesse, a cona na sua própria forma, emergindo do seu esconderijo. Os pequem lábios eram expelidos para fora, entumesciam para fora, e era muito excitante, aquela tumefacção viscosa e sedosa, estimulante ao contacto e estimulante para os olhos. O segredo extasiadamente exposto. Schiele teria dado os seus caninos para o pintar. Picasso tê-lo-ia transformado numa guitarra.
Quase nos vimos de a ver vir-se. Consuela revirava os olhos quando era assim para ela. Os seus olhos voltavam-se para cima e só podíamos ver as escleróticas, e também isso valia a pena ver. Tudo nela valia a pena ver. Fosse qual fosse a agitação causada pelo ciúme, fosse qual fosse a humilhação e a infinda incerteza, sentia-me sempre orgulhoso quando a fazia vir-se. Às vezes nem sequer nos importamos se uma mulher se vem ou não: acontece apenas, a mulher parece encarregar-se disso por si mesma e não é da nossa responsabilidade. Não é um acontecimento com outras mulheres; a situação é suficiente, há excitação bastante e isso nunca está em questão. Mas com Consuela, sim, com ela era definitivamente uma responsabilidade que me cabia e sempre, sempre, uma questão de orgulho.” (pag. 88-89)
Philip Roth, "O Animal Moribundo", ed. Dom Quixote. Ficção Universal.

segunda-feira, agosto 03, 2009

CRITICA EM CRISE OU EM MUDANÇA?

The Critic, de Arthur Dove
Críticos em extinção?

Levantamento do jornal "The Salt Lake Tribune" indica que ao menos 55 críticos de cinema foram demitidos ou mudaram de área na imprensa americana desde 2006. O dado, citado em reportagem na edição dominical do New York Times, ilumina um aspecto da crise que afeta os jornais americanos e, em particular, ajuda a compreender uma mudança significativa que vem ocorrendo na relação de Hollywood com a imprensa.

O New York Times dedica-se a tentar entender a perda de importância dos jornais ― e o crescimento da influência dos blogs ― no processo de divulgação dos filmes pelos grandes estúdios. O sinal mais aparente deste fenômeno ― importante pelo volume de recursos que Hollywood movimenta em marketing ― é que os jornais contribuem cada vez menos com aquelas publicidades repletas de frases retiradas de críticas. Uma das mais antigas ferramentas de marketing de um filme, a citação tirada de uma crítica de cinema (coisas como "eletrizante" "imperdível", "muito engraçado", "ri do início ao fim") já foi motivo de muita polêmica. Há alguns anos, descobriu-se que um estúdio, a Sony, havia publicado um anúncio com uma frase inventada, dita por um crítico que não existia. Também é comum tirar palavras ou frases de contexto, mudando o sentido do que o crítico quis dizer para realçar qualidades inexistentes de um filme. O que inquieta o New York Times agora é o fato de que os grandes estúdios de Hollywood preferem recorrer a críticas publicadas em blogs do que em jornais. Escreve o diário: "Os seis grandes estúdios gostam de ir à internet em busca de frases para usar em publicidade porque há uma variedade muito grande de sites de onde tirar a palavra ou a frase certa. Alguns sites, é claro, são sérios. Outros, incluindo sites como Ain't It Cool News, não fazem segredo do seu olhar de 'animador de torcida' em relação a alguns gêneros de filmes". Em outras palavras, raciocina o New York Times, os estúdios preferem recorrer a sites e blogs porque eles tratam os filmes de forma mais generosa e complacente que os jornais. O grande diário americano está, evidentemente, fazendo uma generalização injusta, já que há também muitos críticos em jornais que funcionam mais como "animadores de torcida" do que, propriamente, como analistas sérios e isentos. Em todo caso, dois entrevistados do jornal reforçam a tendência de recorrer a sites e blogs no lugar dos jornais na leitura das críticas de cinema. Um vice-presidente da Universal, Michael Moss, diz ao jornal: "Alguns dos melhores críticos de cinema e a maioria das boas críticas são encontradas on-line". Já Mike Vollman, presidente de marketing da MGM e United Artists, afirma que vai preferir se basear mais em blogs do que na revista Time para promover o remake do filme Fama. "A realidade, e lamento dizer isso para você, é que os jovens que vão ao cinema são mais influenciáveis por um blog do que por um crítico de jornal". A reportagem, em resumo, confirma as previsões mais pessimistas dos que enxergam na revolução promovida pela nova mídia um sinal de empobrecimento e decadência cultural. Ainda assim, o próprio New York Times reconhece que há sites "sérios", publicando textos sobre cinema com o mesmo grau de rigor que os jornais ditos de prestígio.

E o Brasil? ― algum leitor perguntará. O problema, ainda que em grau menor, até porque a indústria de cinema nacional é minúscula comparada a Hollywood, já aparece por aqui. Ainda estamos, pelo que observo, numa etapa anterior. Há um crescimento impressionante de sites e blogs dedicados ao cinema, mas o mercado ainda observa com desconfiança, procurando entender ― e separar o joio do trigo de toda essa movimentação. Em todo caso, é possível observar que alguns produtores já utilizam frases retiradas de sites e blogs para divulgação de seus filmes.


Nota do Editor: Texto gentilmente cedido pelo autor.
Originalmente publicado no blog de Mauricio Stycer, que integra o portal iG, em 08 de junho de 2009.
Mauricio Stycer São Paulo, 22/6/2009.
Transcrito do site Digestivo.com.br. Mantida a grafia de português do Brasil.

quarta-feira, julho 29, 2009

VAVADIANDO COM IVAN LINS

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VÁ.VÁ.DIANDO
33 º J A N T A R D A T E R T Ú L I A
PRÓXIMA SEXTA-FEIRA
31.JULHO.2009

20,00 horas
VAMOS FALAR COM
IVAN LINS
AMÚSICA E A POESIA BRASILEIRA

Depois de RAÚL SOLNADO, FERNANDO DACOSTA, NUNO JÚDICE, TEOLINDA GERSÃO, IVA DELGADO, LÍDIA JORGE, MARIA DO CÉU GUERRA, EURICO GONÇALVES, PAULO PORTAS, LAURO ANTÓNIO, ROGÉRIO SAMORA, CARLOS DO CARMO, CELINA PEREIRA, OTELO SARAIVA DE CARVALHO, MARCELO REBELO DE SOUSA, IRENE PIMENTEL, PADRE FEYTOR PINTO, FERNANDO ROSAS, BÁRBARA GUIMARÃES, NICOLAU BREYNER, GONÇALO RIBEIRO TELLES, FRANCISCO MOITA FLORES, BAPTISTA BASTOS, ALICE VIEIRA, SÃO JOSÉ LAPA, INÊS LAPA LOPES, ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA, JOSÉ MANUEL ANES, ANTHÌMIO DE AZEVEDO e LAURO MOREIRA, LURDES NORBERTO, CONTINUAM OS NOSSOS ENCONTROS, MANTENDO UMA TRADIÇÃO DE TERTÚLIA DO CAFÉ-RESTAURANTE VÁVÁ.

ENTRADA: 17,5 EUROS POR PESSOA. COM DIREITO A ENTRADAS, SOPA, UM PRATO DO DIA, PEIXE OU CARNE, SOBREMESA, BEBIDA (VINHO É O DA CASA!) E CAFÉ. EXTRAS POR CONTA DO FREGUÊS.

[ LOTAÇÃO LIMITADA A 50 CADEIRAS. ACEITAM-SE INSCRIÇÕES NO BALCÃO DO VÁVÁ. ]

Para informações e marcações de lugares:
LAURO ANTÓNIO - Blogue Va.Va.diando (http://vava-diando.blogspot.com/][mail: laproducine@gmail.com]
RESTAURANTE - CAFÉ VÁVÁ AV. EUA, Nº 100 - 1700-179 – LISBOA (TELF 21.7966761).

Ivan Guimarães Lins (Rio de Janeiro, 16 de Junho de 1945) é um dos maiores músicos brasileiros da actualidade. Filho do militar Geraldo Lins, foi muito influenciado por diversos géneros musicais como jazz, bossa nova e soul e tem como principal instrumento o piano, que toca desde os dezoito anos. Formou-se em engenharia química no final dos anos 60, quando iniciou a carreira musical em festivais. O primeiro sucesso como compositor foi com “Madalena”, gravada por Elis Regina. No entanto, Simone é, de forma unânime, considerada a maior intérprete.
Teve inúmeros sucessos como cantor como “Abre Alas”, “Somos todos iguais nesta noite” e “Começar de novo” - todas em parceria com Vítor Martins. Começar de novo foi gravada por Simone no mesmo ano em que foi composta. Na voz de Simone, Começar de novo foi tocada como tema oficial de abertura do seriado Malu Mulher, tornando-se um grande sucesso da época e um marco na história da MPB.
Lançou inúmeros discos, muitos deles de inúmero sucesso, tendo trocado de gravadoras por diversas vezes. No decorrer dos anos 70, a obra ganha grande temática política. A partir da segunda metade dos anos 80, começa a enfatizar a carreira internacional, principalmente nos EUA, onde foi regravado por inúmeros astros da música internacional, como Quincy Jones, George Benson, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Carmen MacRae e Barbra Streisand.
Foi destacado compositor, tendo músicas gravadas por nomes consagrados como Elis Regina (Cartomante, Madalena, Aos Nossos Filhos), Simone (Começar de Novo), Quarteto Em Cy (Abre Alas), Gal Costa (Roda Baiana) e Emílio Santiago (Velas Içadas). Comandou um programa televisivo na Rede Globo ao lado de Gonzaguinha e Aldir Blanc, o Som Livre Exportação. Foi casado com a cantora e actriz Lucinha Lins, com quem teve um filho que também é actor. Torce pelo Fluminense Football Club.
No fim no ano de 2007, Ivan Lins lançou o CD e DVD Saudades de Casa, com diversas colaborações, gravado em estúdio no Rio de Janeiro.

terça-feira, julho 28, 2009

CINEMA: AS PRAIAS DE AGNÈS

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AS PRAIAS DE AGNÈS

Agnès Varda parece gostar de praias, e foi precisamente numa praia portuguesa que a conheci, não recordo o ano, mas estava ela na Figueira da Foz a apresentar um filme seu. Eu a acompanhar o Festival de Cinema que ali se realizava. Vi-a caminhar solitária pelo passeio da marginal que ladeia a praia, falei demoradamente com ela (julgo mesmo que lhe fiz uma entrevista para o jornal onde então trabalhava, “Diário de Lisboa” ou “Diário de Notícias”, não tenho a certeza, depende do ano). Lembro-me de estarmos sentados numa das esplanadas dos cafés frente ao Casino, era uma mulher pequenina e roliça, de olhos faiscantes de vida, inquieta, doce e rebelde. Mais tarde, apresentei no Cinema Caleidoscópio (cuja programação eu dirigia, juntamente com a do Estúdio Apolo 70), um luminoso e belíssimo filme seu, “A Felicidade”, que na altura talvez não tenha compreendido muito bem (escrevi um texto sobre o filme de que hoje me penitencio, mas estávamos em plena euforia revolucionária e ela também me terá obliterado a visão, helás).
Mas desde muito novo que me apaixonara pelo cinema desta autora que nunca fez um filme parecido com algum outro já existente. Quando eu era estudante, e frequentava os cine-clubes da época, o Universitário, o ABC (e outros mais, o Imagem, por exemplo), descobrira as suas curtas-metragens que estiveram na génese da Nouvelle Vague. Eram magníficas (julgo que ainda são): “La Pointe-courte” (1954), “L'Opéra Mouffe” (1958), “La Cocotte d'Azur” (1958), “Du Côté de la Côte“ (1958), ou “O Saisons, ô Châteaux” (1958). Depois surgiu esse admirável “Cléo de 5 à 7” (1962) ou esse fabuloso e polémico “Le Bonheur” (1965), mas isto sou eu a recordar, porque vivi já com olhar critico os anos 60.
O problema hoje é outro. Por exemplo: saber quem é que vai ver “As Praias de Agnès", obviamente um filme “diferente”. Quem tem agora curiosidade para ver algo “diferente”, surpreendente? Se o olharmos como um todo, pode chamar-se uma autobiografia centrada sobretudo sobre o passado cinematográfico da autora. Mas, analisado, quadro a quadro, mescla memórias com documentarismo, ficção com realidade. Para a maioria dos espectadores de hoje, a primeira questão que se põe é mesmo saber de que Agnès estamos a falar. Quem é Agnès Varda?, que nunca foi uma cineasta de grande público (apesar de ter tido os seus sucessos, e de nem sequer ser uma autora “difícil”), mas é seguramente um dos grandes nomes do cinema de autor francês.
Varda é uma das figuras de proa da “Nouvelle Vague”, um movimento surgido em França em finais da década de 50 e que iria explodir durante os anos 60, revelando uma geração de cineastas que mudou toda a história do cinema (não só em França, como no mundo): Truffaut, Godard, Chabrol, Rivette, Demy (casado com Varda), Resnais, Vadim, Rohmer, e dezenas de outros. Não há grandes traços comuns entre eles, há sobretudo um enorme amor ao cinema, à liberdade de criação, à busca de caminhos individuais, pessoais e intransmissíveis.
Varda é um bom exemplo dessa busca, iniciada com um conjunto de curtas-metragens que fizeram as delícias dos cinéfilos desses anos, filmografia depois prolongada por obras essenciais, como “Duas Horas na Vida de uma Mulher” (62), “A Felicidade” (65), “Páginas Intimas” (Les Creatures, 66), “Lions Love” (69), “Daguerréotypes” (75), “Uma Canta a Outra Não” (L'Une Chante, l'Autre pas) (77), “Documenteur” (81), “Sem Eira nem Beira” (Sans Toit ni Loi, 85), “Jane B. par Agnès V.” (87), “Jacquot de Nantes” (90), “Les Cent et une Nuits de Simon Cinéma” (94), “L'Univers de Jacques Demy” (95), “Os Respigadores e a Respigadora” (Les Glaneurs et la Glaneuse, 2000) e, finalmente, “Les Plages d'Agnès” (2008). Tudo filmes muito pessoais, daqueles que seria impossível outra pessoa realizar, dado que em cada um deles se projecta por inteiro o sentir e o pulsar de uma autora. O que obviamente volta a acontecer em “As Praias de Agnès", uma aventura individual, que coloca em destaque algumas das obsessões e dos fantasmas da autora, desde o seu devotado amor ao cinema, até o seu gosto pelas praias, o seu amor por Jacques Demy, as suas preocupações políticas e sociais (feminismo, a revolução cubana, Maio de 68, movimentos de emancipação nos EUA, esquerda europeia, etc.), as suas pesquisas estéticas, a sua delicadeza de olhar e de sentir. O filme é um mosaico de recordações e de vivências que nos restituem uma personalidade e um olhar que fascinam. Uma obra inesperada, surpreendente, que nos mostra que o cinema pode ser algo de deslumbrante e de perturbador. Avisamos: não é um filme igual aos outros. É diferente. Por isso tão cativante.
“As Praias de Agnès" recorda a Varda da infância e de uma alegria de viver que se prolonga até hoje. Recorda a Varda da família, o seu amor por Demy (revelando em primeira mão a causa da morte do cineasta, o SIDA, que ele impusera que se mantivesse ignorada do grande público à data da morte), os filhos e os netos, a forma como os seus filmes eram não só artesanais, como familiares, filmados por vezes ao pé de casa, com o cabo da electricidade a ser puxado do seu quintal. Recorda a forma de filmar de Varda, nos antípodas da grande indústria, com os adereços cuidadosamente dispostos pela cineasta, as cores escolhidas pela emoção pessoal, os actores de coração e de amizade, os temas que lhe fervilham na cabeça e no coração. Uma vida entregue ao cinema, um cinema alimentado pela vida.
Um grande filme, de uma cineasta única. Não percam. A experiência é igualmente única.
AS PRAIAS DE AGNÈS
Título original: Les Plages d' Agnès
Realização: Agnès Varda (Franca, 2008); Argumento: Agnès Varda; Produção: Agnès Varda, Lisa Blok-Linson, Thomas E. Taplin; Música: Joanna Bruzdowicz, Stéphane Vilar; Fotografia (cor): Julia Fabry, Hélène Louvart, Arlene Nelson, Alain Sakot, Agnès Varda; Montagem: Baptiste Filloux, Jean-Baptiste Morin; Design de produção: Franckie Diago; Direcção de Produção: Nathalie Dages, Jean-Noël Félix, Cécilia Rose; Assistentes de realização: Benjamin Blanc, Julia Fabry; Som: Olivier Schwob, Emmanuel Soland; Companhias de produção: Ciné Tamaris, arte France Cinéma, Canal+, Région Ile-de-France, Région Languedoc-Roussillon, Centre National de la Cinématographie (CNC), France 2 (FR2); Intérpretes: Agnès Varda, André Lubrano, Blaise Fournier, Vincent Fournier, Andrée Vilar, Stéphane Vilar, Christophe Vilar, Rosalie Varda, Mathieu Demy, Christophe Vallaux, Mireille Henrio, Didier Rouget, Anne-Laure Manceau, Gérard Ayres, Jim McBride, Tracy McBride, Patricia Louisianna Knop, Zalman King, Richard Scarry, Eugene Kotlyarenko, Laura Betti, Jane Birkin, Sandrine Bonnaire, Antoine Bourseiller, Nino Castelnuovo, Constantin Demy, Jacques Demy, Joséphine Demy, Catherine Deneuve, Robert De Niro, Gérard Depardieu, France Dougnac, Harrison Ford, Charlotte Gainsbourg, Serge Gainsbourg, Julie Gayet, Valérie Mairesse, Sabine Mamou, Corinne Marchand, Silvia Monfort, Yolande Moreau, Jim Morrison, Philippe Noiret, Michel Piccoli, James Rado, Gerome Ragni, Alain René, Viva, etc. Duração: 110 minutos; Distribuição em Portugal: Midas Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 23 de Julho de 2009; Locais de filmagens: Ancienne Ecole Nationale de Photographie et de Cinématographie, 85 Rue de Vaugirard, Paris 6, Paris, França.

CINEMA:

AS PRAIAS DE AGNÈS
Let's look at the trailer:

enquanto se prepara ao texto.

sexta-feira, julho 24, 2009

TEATRO: PIAF

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ÉDITH PIAF
Édith Piaf é indiscutivelmente um caso. Não se trata tanto de alguém com existência certa e segura, mas de um mito. Acontece àqueles que “por obras valorosas se vão da lei da morte libertando.” Uns mais do que outros. Na música, na canção, Sinatra, Presley, Amália, Callas, Caruso, Piaf são alguns exemplos a que se juntou agora Michael Jackson. A sua vida é uma, a auréola de que gozam é outra. São nomes que ficam, vozes que não se esquecem, presenças que permanecem para lá da grande ausência. Nada apaga a sua glória, os mais velhos continuam a ouvi-los, os mais novos começam a escutá-los e a amá-los. Edith Piaf continua a vender. No mundo inteiro. Quando se fala da canção francesa podem vir à memória dez ou vinte nomes, mas sobressai uma rainha, Piaf. A sua vida ajudou a construir o mito, mas não há mito que sobreviva sem algo mais, essa migalha de génio que divide os homens entre uns e outros, uma divisão que ninguém contesta, porque “uns” milhões precisam tanto de “outros” tão poucos de eleitos para sobreviver, que todos acatam a diferença e a desejam.
Édith Piaf (Édith Giovanna Gassion) nasceu a 19 de Dezembro de 1915, em Paris. Existe uma placa no nº 72 da rua de Belleville, no 20º bairro, que assinala o facto. Mas na certidão de nascimento está marcado que nasceu no nº 4 da rua da Chine, onde ficava o hospital Tenon. Parece que teve uma vida conturbada, tumultuosa, infância infeliz, adolescência nas ruas de Paris, sobrevivendo pela venda do corpo, enquanto cantava e bebia desbragadamente.
Os pais eram pobres, mas ambos ligados ao espectáculo de rua. O pai, Louis Alphonse Gassion, artista de circo, contorcionista (10. V.1881 – 3.III. 1944), a mãe, Annetta Maillard (4 .VIII.1895-6.II.1945), com o nome de artista Line Marsa, cantora, nascida em Itália. Julga-se que o nome de Edith foi escolhido como homenagem a uma enfermeira inglesa, Edith Cavell, que morreu como heroína, durante a I Guerra Mundial, fuzilada pelos alemães. Rapidamente entregue aos (raros) cuidados da avó materna, Emma Saïd Ben Mohammed, de ascendência marroquina, Édith bebia vinho tinto pelo biberão (segundo a lenda), até que o pai a resgata e a entrega aos cuidados da avó paterna, dona de uma casa de prostituição, em Bernay, na Normandia. Consta que pelos 7 ou 8 anos, cegou momentaneamente em virtude de uma doença. Segundo as biografias, curou-se porque as prostitutas da casa em que vivia a levaram a rezar junto do túmulo de Santa Teresa de Lisieux (conhecida como “Santa Teresinha”), donde resultou uma devoção profunda de Piaf para com Santa Teresinha. Junta-se então ao pai, a partir de 1922, numa miserável tournée de saltimbancos, onde começa a dar nas vistas com a sua voz e uma forma muito especial de interpretar temas populares. Aos 15 anos (1930), deixa a companhia do pai e junta-se a Simone Berteaut (a "Mômone"), com quem faz um duo, que vai sobreviver nas ruas de Paris (Quartier Pigalle, Ménilmontant e subúrbios de Paris). Vivam ambas num quarto no Grand Hôtel de Clermont (na Rua Veron, 18 de Paris). A 11 de Fevereiro de 1933, com 17 anos, tem uma filha, Marcelle, resultado de uma ligação com Louis Dupont, que tratou da criança até esta morrer, dois anos depois, vítima de meningite. Um proxeneta de nome Albert foi o seu próximo “companheiro”, que também “tomava conta” de Nadia, outra prostituta que entretanto se suicidou.

“Descoberta”, em 1935, por Louis Leplée, proprietário do cabaré “Le Gerny's”, situado na avenida Champs Élysées, em Paris. Foi Leplée quem a iniciou na vida artística, lhe começou a domar a voz, e a orientá-la no palco, foi ele quem a vestiu de preto e a baptizou como "la Môme Piaf", uma expressão francesa que significa "pequeno pardal" ou "pardalzinho", pois ela era de pequena estatura. Na sua estreia no “Le Gerny's”, contou com a presença de algumas celebridades, como por exemplo o actor-cantor Maurice Chevalier. Foi no “Le Gerby's” que Piaf conheceu o compositor Raymond Asso e a compositora Marguerite Monnot, que se tornou sua parceira e grande amiga ao longo de toda a vida. São de Marguerite composições como "Mon légionnaire", "Hymne à l'amour", "Milord" e "Les Amants d'un Jour".
Em 1936, Piaf assina contrato com a Polydor e lança o primeiro disco, "Les Mômes de la Cloche", que se torna sucesso imediato. A desdita de Piaf não pára. A 6 de Abril desse ano, Leplée é assassinado em casa e Piaf é acusada de cúmplice. Ilibada, nunca deixaria de ver pesar sobre a sua cabeça alguma responsabilidade sobre esse assassinato, dado que os carrascos de Leplée eram conhecidos de Piaf. Relança a carreira com Raymond Asso, com quem também se envolve emocionalmente. É este quem lhe muda o nome artístico de "La Môme Piaf" para "Édith Piaf" e quem encomenda a Marguerite Monnot canções que focassem sobretudo o passado de Piaf nas ruas. Raymond obriga Piaf trabalhar arduamente para se tornar uma cantora profissional de Music Hall.
Entre 1936 e 1937, Piaf apresentou-se no “Bobino”, em Montparnasse. Em Março de 1937, estreia-se no “ABC”, onde se torna rapidamente uma “diva” canção francesa, amada pelo público e difundida pela rádio. Em 1940 estreia-se no teatro, numa peça de Jean Cocteau, “Le Bel Indifférent”, escrita propositadamente para ela, onde contracenava com Paul Meurisse, seu companheiro na altura. É ainda ao lado do excelente actor Paul Meurisse, que ela aparece pela primeira vez no cinema, em 1941, no filme “Montmartre-sur-Seine”, de Georges Lacombe.
Durante a ocupação alemã em França, Piaf continua a dar que falar. Sobrevive com shows, mas é acusada de colaboracionista com as forças ocupantes. Finda a guerra, declara que trabalhou para a resistência francesa. É em 1944 que Piaf conhece o jovem Yves Montand, inexperiente cantor que torna seu amante e que ajuda a lançar no “Olympya”. No ano seguinte, Piaf escreve uma de suas primeiras canções, "La Vie en rose", que se tornará num dos seus hinos e um clássico da canção francesa. Em 1946, Montand estreia-se no cinema ao lado de Piaf, em “Étoile sans Lumière”, mas o romance entre ambos acaba. Foi Piaf que um dia disse: “Até agora os homens compraram-me, a partir de agora sou eu quem os compra.” Consta que a sua vida afectiva nunca foi muito empolgante, apesar da sua vida sexual ser imparável. Sucederam-se os amantes, muitos dos quais subiram na vida à custa do seu relacionamento com Piaf.
Em 1947, lança-se nos Estados Unidos. Em 1948, nos EUA, conhece o que se julga ter sido o grande amor da sua vida, Marcel Cerdan, francês nascido na Argélia, casado, campeão mundial de boxe. Mas, em 28 de Outubro de 1949, Marcel voa de Paris para Nova Iorque e morre num terrível acidente. Piaf sofre, e sofre igualmente de uma poliartrite aguda, que a leva à morfina. "Hymne à l'amour" e "Mon Dieu" são canções que Édith canta em memória de Cerdan. O seu grande amor pouco durou.
Em 1951 será a vez do jovem cantor Charles Aznavour, que se converte em seu secretário, assistente, motorista, confidente... Piaf volta a ajudá-lo como ajudou outros antes. Em Setembro de 1952 casa-se com um outro cantor francês, Jacques Pills, do qual se divorcia em 1956. O êxito nos EUA é finalmente total, rotundo. A popularidade leva-a a apresentar-se oito vezes no “Ed Sullivan Show” e esgota duas vezes o “Carnegie Hall”, em 1956 e 1957.
Inicia então um envolvimento com Georges Moustaki, a quem ajuda no seu lançamento como cantor. Ao seu lado sofreu um grave acidente automobilístico, em 1958, e piora o estado de saúde e sua dependência da morfina. Moustaki é o autor de um novo sucesso de Piaf, "Millord". Em 1962, com a saúde numa lástima, Piaf casa-se com Théo Sarapo (Theophanis Lamboukas), um cabeleireiro grego que vira cantor e actor, e é 20 anos mais novo do que ela.
Morreu a 10 de Outubro de 1963, com 47 anos, em Plascassier, em Grasse, nos Alpes-Marítimos (no mesmo dia em que faleceu seu amigo Jean Cocteau). O corpo foi transportado para Paris, clandestina e ilegalmente. A morte só foi anunciada oficialmente no dia seguinte e Édith ficou enterrada com honras nacionais no cemitério do Père-Lachaise (talhão 97). O seu enterro foi acompanhado por uma multidão consternada. Mas o mito Piaf apenas começava a criar-se. O seu túmulo é presentemente um dos mais procurados por turistas de todo o mundo. É a partir da vida de Édith Piaf que a dramaturga inglesa Pam Gems escreve o musical “Piaf”, o novo espectáculo estreado em Lisboa por Filipe La Féria, depois de ter passado em Angra do Heroísmo (8 de Maio) e Porto (de 28 de Maio a 9 de Julho), com Wanda Stuart e Sónia Lisboa a alternarem na composição da figura de Édith Piaf.
Pam Gems é uma autora já conhecida do público português neste tipo de empreendimento. A sua peça sobre Marlene, já tinha sido estreada em Portugal, no Mundial, com Simone de Oliveira na protagonista. Não é autora que me fascine na forma como trabalha as biografias romanceadas das vedetas que procura homenagear. Trata-se de esqueletos pouco preenchidos de emoção e vida, muito concentrados numa cronologia que se alimenta de “fait divers” e por vezes não toca no essencial. Isso se sente em “Piaf”, onde todos os pormenores escabrosos da vida de Édith Piaf são apontados, mas pouco se percebe da essência da sua arte, se retirarmos as canções. O desenrolar dos episódios trágicos e sórdidos são de tal ordem que ficamos seriamente a pensar se a autora homenageia ou não a cantora. Claro que a verdade não é para escamotear, mas não acredito, não acho muito plausível o retrato que nos é dado da cantora. Por exemplo, Édith Piaf foi uma artista que muito fez por outros artistas, que os ajudou, que desbloqueou carreiras, que os colocou no meio artístico, que lutou por muitos deles. Na peça, os que aparecem, são os que ela devorou sexualmente, dando a ideia de que os ajudou só porque tinha interesse em mantê-los sob a sua alçada. Acontece que, segundo se lê nas suas biografias, Édith Piaf mantinha em sua casa uma verdadeira tertúlia que teve uma importância decisiva na revelação de uma grande geração de músicos e cantores do pós-guerra. Por ali passaram Gilbert Bécaud, Jacques Pills, Jacques Plante, Louis Amade, Charles Aznavour, Jean Broussolle, Yves Montand, Jacques Prévert, Francis Lemarque, entre tantos outros. Leia-se Marc Robine, na sua obra “Il était une fois la chanson française : Des Trouvères à nos Jours”.
Compreende-se por outro lado a dificuldade de traçar uma biografia, enquadrar dezenas de canções, e reunir tudo num espectáculo de menos de duas horas. Filipe La Féria com a sua mestria para o género, consegue impor um ritmo excelente ao espectáculo e criar cenas de grande brilhantismo cénico e visual. Logo desde início, quando a Piaf de fim de carreira cede o lugar à Piaf das ruas de Paris, com a troca de vestuário em palco, passando por várias outras cenas muito bem defendidas, com uma inventiva cénica de sublinhar. Depois o cenário, despojado, colunas vermelhas de sangue, rasgando um fundo negro, coaduna-se perfeitamente e cria um envolvimento certeiro. Há ainda, e finalmente, a arte de Piaf que resiste a (quase) tudo. As suas canções, o seu tom, o lirismo dramático que empresta a qualquer toada de amor, que assume logo os contornos trágicos de um amor louco, ou maldito, os temas que cheiram a Paris mal se começam a ouvir as primeiras notas, a sua voz rouca com passado vivido, tudo isso faz deste reportório algo de único, a que qualquer alma sensível não pode deixar de estar sujeito. Vi por duas vezes “Piaf”, uma no Porto, com Sónia Lisboa, outra em Lisboa, com Wanda Stuart. O palco mais intimista do Porto parecia favorecer o espectáculo, mas visto no Politeama, não perde nada e, paradoxalmente, ganha amplitude. Já o elenco masculino no Porto me parecia não estar à altura do elenco feminino, todo ele muito bom. Na verdade, por virtude do que atrás já dissemos, o original de Pam Gems apenas aponta figuras, em traços rápidos, por vezes caricaturais. É quase impossível um actor dar vida a um tal estereótipo. Mas o elenco de Lisboa (quase integralmente o do Porto, com um ou outro retoque, por exemplo Rui Andrade, que faz bastante bem, em Lisboa, a figura de Theo Sarapo) sai-se bem, não destoando do conjunto. E chegamos às actrizes: Paula Sá é uma surpreendente Marlene, conseguindo criar uma personagem em duas ou três aparições, Noémia Costa deve ter a melhor representação da sua carreira, compondo uma inesquecível Toine, e Sónia Lisboa e Wanda Stuart, em registos diversos, oferecem-nos duas Piafs que vale a pena ver (em dias consecutivos). Sónia Lisboa, que não conhecia, tem uma voz notável e dá-nos uma Piaf mais realista; Wanda Stuart, que conheço bem e admiro há anos, brinda-nos com uma perfomance quase expressionista, com a voz que todos conhecemos, e um gosto excessivo pelo gesto, pelo ritus facial, pela expressividade do corpo, como uma emanação da alma. Devo confessar que de início não aderi logo, mas depois aplaudi entusiasmado.
Muito público de meia-idade em ambos os espectáculos, mas muito público jovem igualmente. O que não deixa de ser saudável.

quarta-feira, julho 22, 2009

CINEMA: A ONDA

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A ONDA
Alemanha, actualidade: um professor resolve escolher para projecto final das suas aulas de fim de curso, uma semana de prática sobre o totalitarismo. A ideia é mostrar que uma ditadura pode nascer em qualquer país, em qualquer momento. Nada nos defende da manipulação e do histerismo colectivo, se não estivermos atentos à realidade. E mesmo assim… a demagogia pode muito. Primeira lição a extrair: destruir os valores da democracia, apontar os políticos democráticos como corruptos, agitar o espectro do pessimismo nacional, propalar a desconfiança, anular toda a forma de analisar os problemas friamente e com conhecimento de causa, jogar no slogan, na repetição de estereótipos. Manifestações consecutivas a propagarem mais do mesmo. Depois, aparece o “leader” iluminado que anuncia duas ou três medidas salvadoras, disciplina, um chefe, uma designação, a carneirada toda vestida com uniforme (camisa branca e jeans, neste caso), uma identificação comum (por exemplo, a saudação da onda), e logo surgem às dezenas, às centenas, aos milhares, os que gostam de ser conduzidos com pulso forte, e logo aparecem os que pretendem defender o chefe (os guardas-costas), e logo surgem os seguranças, os denunciantes, os que se investem de uma autoridade que nunca tiveram e que lhes quadra bem. Os que não pensam da mesma maneira são acusados, perseguidos, escorraçados, presos, se necessário aniquilados. A lição está aprendida, não sem antes ser atravessada pela tragédia – há sempre aqueles que se sentem atraiçoados quando a sua loucura é descoberta e se sentem órfãos de projectos tão “grandiosos”.
Esta a linha de narração de “Die Welle”, de Dennis Gansel, com argumento deste último e de Peter Thorwarth, segundo romance de Todd Strasser, que por sua vez partia de uma experiência real, vivida em 1967, por um professor norte americano, Ron Jones, que a descreveu num artigo (“The Third Wave”), depois adaptado a telefilme, pelo canal ABC, em 1981, por Johnny Dawkins e Ron Birnbach, com realização de Alexander Grasshoff (“The Wave”). O mesmo tema ainda se pode encontrar igualmente tratado em “The Wave”, um romance de Rhue Morton. Recuemos até à década de 60. “A Terceira Onda” foi uma curiosa experiência levada a cabo por Ron Jones, professor de História Contemporânea, no “Cubberley High School”, na Califórnia, na qual procurava dar resposta aos seus alunos que achavam impossível que um país como a Alemanha tivesse aderido a uma aventura louca e assassina como foi o III Reich e o nazismo. Os alunos não acreditavam que fosse possível manipular as pessoas desta forma, até elas perderem a noção do que faziam. Ou então, como muitos responsáveis pelos mais bárbaros actos se desculpavam, explicando que “apenas cumpriam ordens superiores”. Como era possível uma delirante ideologia como a nazi passar por algo saudável? Como era possível conceber a ideia de exterminar raças, como os judeus (e levá-la avante, com o apoio de milhões de pessoas)?
Tudo poderia parecer fácil de explicar aos alunos, mas a verdade foi completamente diferente. Estes aderiram ao projecto, “The Third Wave”, de forma entusiástica, ampliaram a sua massa de adeptos (com alunos de outros projectos), transformaram esta “A Terceira Onda” num acontecimento, aceitando como boa a dimanação do poder do chefe que se autoproclamava, a disciplina imposta na sala de aula (“o poder através da disciplina”), as ordens recebidas e a fazer cumprir, a uniformização de vestuário (e de ideias), as insígnias, o cumprimento pessoal e colectivo, os discursos demagógicos e inflamados, o tratamento por Senhor Jones, e tudo o que decorreu da experiência. Quando se pensava que facilmente se iria explicar os erros e os vícios do totalitarismo, este estava implantado e aceite. Ron Jones terá igualmente sido influenciado pelo êxito da iniciativa, por aquela disciplina que via nascer à sua frente, pela forma habilidosa como conduzia os alunos, pelo respeito que impunha, pelo poder que detinha e dia a dia ia aumentando. Foi assim que uma semana alterou por completo a vida de uma comunidade escolar, e ameaçava estender-se às famílias e à cidade. Até que alguns alunos começaram a questionar a experiência, a sentir o efeito da perca da liberdade, a sublinhar o perigo da demagogia, a descobrir por detrás desta mansa onda que alastrava a inquieta vaga de fundo que poderia pôr em causa a democracia e instituir uma ditadura, fosse ela de que sentido, e em nome de que valores. Nessa altura Ron Jones pensou que tinha de terminar este projecto, marcou uma reunião com todo o grupo, e explicou como o nazismo foi possível, como outros nazismos, ou outras ditaduras (de sinal idêntico ou de sinal contrário) eram imagináveis, se o cidadão não estivesse alerta para alguns sintomas da sociedade, sobretudo quando milhares de pessoas, cegas pelas palavras e o espectáculo envolvente, aceitavam um ditador, sem se questionarem, sem reflectirem. Hitler e o nazismo apareceram assim na Alemanha. Outras ditaduras tiveram idêntica gestação, muitas outras podem germinar de igual forma. Ainda por cima numa época cada vez mais fascinante em certos aspectos, mas igualmente mais massificada, pela globalização, pelas modas, pela influência generalizada dos media, pelo controle do poder cada vez mais poderoso e invisível.
No filme de Dennis Gansel, o professor muda de nome, chama-se aí Rainer Wenger, “Herr Wenger”, a experiência troca de país, o projecto ganha alguma dramaticidade, sobretudo para o final, que termina previsivelmente em tragédia, mas no fundo cinge-se fundamentalmente à experiência real que lhe está na base. Apesar dos bons desempenhos dos principais intérpretes (professor e alunos), e de uma narrativa sóbria e eficaz, apesar da competência técnica de toda a equipa, “Die Welle” mostra a renovação do actual cinema alemão, sem todavia ofuscar pelo brilho. É um filme particularmente interessante, que mobiliza atenções, que desperta polémicas, que coloca em questão não só o problema da emergência das ditaduras, da fragilidade da democracia, da manipulação das massas, como também o papel da escola e do professor, na formação do cidadão.

A ONDA
Título original: Die Welle
Realização: Dennis Gansel (Alemanha, 2008); Argumento: Dennis Gansel, Peter Thorwarth, segundo romance de Todd Strasser; Produção: Christian Becker, Nina Maag, Martin Moszkowicz, Peter Schiller; Música: Heiko Maile; Fotografia (cor): Torsten Breuer; Montagem: Ueli Christen; Casting: Franziska Aigner-Kuhn, Uwe Bünker; Design de produção: Knut Loewe; Direcção artística: Petra Ringleb; Decoração: Tilman Lasch; Guarda-roupa: Ivana Milos; Maquilhagem: Irina Tübbecke-Bechem; Direcção de Produção: Natalie Clausen, Ulrike Fauth; Assistentes de realização: Hendrik Holler, Matthias Nerlich; Departamento de arte: Philipp Hübner; Som: Stephan Fandrych, Dana Hopfe, Alexander Saal; Efeitos especiais: Michael Apling, Ronny Klost; Efeitos visuais: Abraham Schneider; Companhias de produção: Rat Pack Filmproduktion GmbH, Constantin Film Produktion.; Intérpretes: Jürgen Vogel (Rainer Wenger), Frederick Lau (Tim Stoltefuss), Max Riemelt (Marco), Jennifer Ulrich (Karo), Christiane Paul (Anke Wenger), Jacob Matschenz (Dennis), Cristina do Rego (Lisa), Elyas M'Barek (Sinan), Maximilian Vollmar, Max Mauff, Ferdinand Schmidt-Modrow, Tim Oliver Schultz, Amelie Kiefer, Fabian Preger, Odine Johne, Tino Mewes, Karoline Teska, Marco Bretscher-Coschignano, Lennard Bertzbach, Thommy Schwimmer, Joseph M'Barek, Jaime Ferkic, Darvin Schmidt, Leander Hagen, Lucas Hardt, Maxwell Richter, Sophie Kurzke, Liv Lisa Fries, Lena Lutz, Hendrik Holler, Ilo Gansel, Natascha Paulick, Maren Kroymann, Teresa Harder, Thomas Sarbacher, Hubert Mulzer, Gerald Alexander Held, Johanna Gastdorf, Friederike Wagner, Dennis Gansel, Ron Jones, etc.
Duração: 107 minutos; Distribuição em Portugal: Ecofilmes/Vitória Filme; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 8 de Janeiro de 2009.

domingo, julho 19, 2009

CINEMA: ALMOÇO DE 15 DE AGOSTO

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ALMOÇO DE 15 DE AGOSTO
Nos últimos tempos, o cinema italiano tem-nos reservado algumas boas surpresas. Uma delas foi “Gomorra”, de Matteo Garrone, outra é esta comédia discreta, “Pranzo di Ferragosto”, que o mesmo Matteo produz, e que Gianni Di Gregorio dirige e interpreta. Com o apoio do Ministero per i Beni e le Attività Culturali de Itália, o que não deve ser esquecido. Não será uma encomenda, mas anda perto. Um filme certamente interessado em dar à terceira idade (aos seniores!) um fôlego novo.
“Ferragosto” é uma ameaça italiana que o cinema já trabalhou por diversas formas. Trata-se de um feriado que parece datar dos tempos do Império Romano, e que se comemora em Itália no dia 15 de Agosto. Festeja-se o encerramento dos trabalhos agrícolas e por isso mesmo é um feriado sinistro (não por ser “de esquerda”, mas por ser opressivo). Em Roma não há comércio aberto, as ruas estão quase desertas, não há vivalma, e quem não partiu para os arredores, em piqueniques familiares, o melhor é mesmo ficar em casa, a estudar direito, como o pretendia fazer Trintignant, em A Ultrapassagem, antes de ser desviado para a má vida por um Gassman desregrado. Na época áurea do neo-realismo, já Luciano Emmer nos dera uma imagem destes feriados, em "Domingo de Agosto". Mas também, mais recentemente, tivemos a Roma em Agosto de Nani Moretti, em "Querido Diário". Todos eles “passam” por este filme de Gianni di Gregorio mas de uma forma digerida, não como citações ou pastiches. Di Gregorio possui um outro olhar, actual, uma emoção diferente, uma contemporaneidade que sentimos nossa. Gianni, com os seus cinquenta anos bem contados, vive só com a mãe num pequeno apartamento de um bairro de pequena burguesia romana, A mãe é senhora de muita idade, dependente, que gosta sobretudo de ouvir o filho ler histórias, como “Os Três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas (com d´Artagnan, e não Dartacão, como a ignorante tradução portuguesa sugere!). Mas nesse feriado de 15 de Agosto, o senhorio de Gianni, a quem este deve rendas, pede-lhe para ele ficar com a sua mãe, para poder dar uma escapadela sentimental. Mas esta senhora traz a tia, e o médico de família, nesse dia de urgência, convoca igualmente a mãe dele. Um feriado e quatro velhinhas, num apartamento sem grandes condições, e as maleitas e as dietas (atraiçoadas) e as brejeirices e as rabugices da terceira idade, implicativas e vingativas até dizer basta. E ternas e deliciosamente humanas, também. E Gianni a tratar de todas, até daquela que resolve arejar à noite e ir tomar um copo e fumar um cigarro para uma esplanada, sem dizer nada a ninguém. E os almoços de peixe, com um bom vinho branco. E os remédios. E a televisão, os jogos de cartas, enfim, tudo a que têm direito. Lá fora, apenas vislumbrada pelas janelas abertas, Roma, a cidade eterna. Dentro de casa, as eternas questões da sobrevivência humana. Resolvidas, uma a uma, com paciência de santo pelo generoso Gianni.
Parece que o filme tem algo de autobiográfico em relação à personagem de Gianni (assumida, ao que se julga: Gianni, a personagem, Gianni di Gregório, o realizador e actor). Julgo até que o apartamento onde é filmado “Pranzo di Ferragosto” é o apartamento do actor-realizador. Tudo ressoa, aliás, a algo muito vivido, sentido, algo de que se conhecem bem os pequenos nadas que são tudo, que oferecem uma verdade e uma densidade humana muito especial a este pequeno filme despretensioso, mas muito estimável. Com uma excelente realização que resolve muito bem os bicudos problemas do claustrofóbico apartamento, que dirige magnificamente as quatro velhinhas aqui reunidas, e que nos dá um retrato emocionado do dia a dia de uma cidade que, muitas vezes, retira o seu fascínio, não do excepcional, mas do banal.
ALMOÇO DE 15 DE AGOSTO
Título original: Pranzo di Ferragosto
Realização: Gianni Di Gregorio (Itália, 2008); Argumento: Gianni Di Gregorio, Simone Riccardini; Produção: Matteo Garrone; Fotografia (cor): Gian Enrico Bianchi; Montagem: Marco Spoletini; Design de produção: Daniele Cascella; Guarda-roupa: Silvia Polidori; Departamento de arte:Cristiana Possenti; Som: Filippo Porcari; Efeitos visuais: Francesco Spadoni; Companhias de produção: Archimede, Ministero per i Beni e le Attività Culturali (MiBAC); Intérpretes: Gianni Di Gregorio (Giovanni), Valeria De Franciscis (mãe de Giovanni), Marina Cacciotti (mãe de Luigi), Maria Calì (Tia Maria), Grazia Cesarini Sforza (Grazia), Alfonso Santagata (Luigi), Luigi Marchetti (Viking), Marcello Ottolenghi (Médico), Petre Rosu (vagabundo), Biagio Ursitti, etc. Duração: 75 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 16 de Abril de 2009.

FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA, CORREU O PANO

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COMÉDIA MOSQUETA
Texto de Angelo Beolco, o Ruzante
Encenação de Mário Barradas
Último dia do Festival, discursos da praxe, mas sentidos, emocionados, e a apresentação de “Comédia Mosqueta”, um texto de Angelo Beolco, dito o Ruzante, pelo Teatro de Almada, que assim encerrava as festividades em bom tom. A “Comédia Mosqueta” é uma das obras teatrais mais significativas e conhecidas do dramaturgo italiano do século XVI e a primeira representação em Portugal de que tenho memória data de 1972, numa criação da companhia “Os Bonecreiros”, com encenação de Mário Barradas, e interpretada por um elenco de boa memória, constituído por Fernanda Alves, José Gomes, Vicente Galfo, Mário Jacques e Maria Emília Correia. Pode dizer-se que esse foi um dos bons momentos teatrais do início dos anos 70, ainda antes do 25 de Abril, concretizando uma tentativa de aproximação de uma obra popular e crítica.
Posteriormente, “Comédia Mosqueta” voltaria a aparecer numa versão que tive oportunidade de ver, em Viana do Castelo (no Centro Dramático), numa tradução de Alexandre Passos, com dramaturgia e encenação de José Martins, com cenários e figurinos de Catarina Amaro, e um grupo de actores composto por Elisabete Pinto, Luís Barroso, Maria José Miranda e Sylvie Rocha. Julgo que várias outras encenações se lhe seguiram.
Mário Barradas, que encenou a versão de 1972 do clássico de Ruzante, voltou ao texto que tão bem conhecia agora em Almada. Actor e encenador, Mário Barradas é um nome de referência no teatro português da segunda metade do século XX, tendo sido director artístico de Os Bonecreiros, fundador do Centro Cultural de Évora (em 1975), director durante alguns anos da Escola Superior de Teatro de Lisboa, e co-fundador do Teatro da Malaposta. Angelo Beolco, dito o Ruzante, (que nasceu e viveu em Pádua, entre 1496 e 1542) foi um actor e dramaturgo italiano, que estudou Medicina e cuja obra literária, sob o pseudónimo de Ruzante (que foi buscar ao nome de uma personagem que aparece em várias das suas comédias, e que o próprio interpretava), vai da poesia ao teatro. Ruzante é considerado um dos mais importantes inovadores do teatro italiano, tendo-se servido da sua experiência como actor e encenador. Estudioso infatigável, nunca deixou de polemizar com alguns dos seus mais ilustres contemporâneos. Dario Fo, no discurso que proferiu aquando da atribuição do Prémio Nobel da Literatura, referiu-se a Ruzante como “o maior dramaturgo do Renascimento europeu, antes do aparecimento de Shakespeare”.
“La Moscheta” é uma obra que participa de um conceito de espectáculo muito definido, conhecido por “Commedia dell'arte”, e que era uma forma de teatro popular, representado nas ruas e praças públicas, improvisado, que se iniciou no séc. XV em Itália, e que se desenvolveu posteriormente também em França, mantendo-se vivo até o séc. XVIII. A “Commedia dell’arte”, também chamada “Commedia All’improviso” e “Commedia a Soggetto”, opõe-se à “Comédia Erudita”, As companhias de “Commedia dell’arte” eram itinerantes e possuíam uma estrutura de esquema familiar, seguindo apenas um roteiro, que se denominava “canovacci”, mas possuindo total liberdade de criação; os personagens eram fixos, sendo que muitos actores viviam exclusivamente esses papéis até a sua morte.
No caso de “La Moscheta” esta é uma comédia que joga com o dialecto rural da região de Pádua, e o dialecto urbano que um dos personagens utiliza para se fazer passar por alguém da cidade (precisamente o marido de Betia, quando quer por à prova a sua fidelidade). A "Moscheta" toma justamente o nome desse falar "moscheto", nome do dialecto de uma linguagem mais refinada, proveniente da cidade. O que permite algumas alfinetadas criticas sobre o campo e a cidade, mas faculta sobretudo uma curiosa sátira de costumes sobre a traição e a lealdade, a astúcia dos humildes, a vitalidade que lhes permite a sobrevivência, o engenho no artifício, a facilidade com que ultrapassam humilhações e necessidades, com uma robustez inabalável e uma sensualidade que lhes dá vida.
A encenação de Mário Barradas é inventiva e inteligente, explorando com graça certos aspectos do texto, os actores são particularmente eficazes e divertidos, sublimando-se o trabalho e a presença de Teresa Gafeira, e o recorte caricatural de José Martins.

COMÉDIA MOSQUETA - Texto de Angelo Beolco, dito o Ruzante; Encenação de Mário Barradas; Intérpretes: Ivo Alexandre, José Martins, Paulo Matos, Teresa Gafeira; Tradução: José Oliveira Barata; Cenário: Christian Retz; Recriação dos figurinos: Sónia Benite; Desenho de luz: José C. Nascimento; Duração 1h20; Classificação M12 anos.