domingo, junho 02, 2013

CLARICE LISPECTOR: CONFISSÃO DE AMOR



Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança da língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.



Clarice Lispector

quinta-feira, maio 30, 2013

CINEMA: O GRANDE GATSBY



O GRANDE GATSBY


“The Great Gatsby”, do norte-americano F. Scott Fitzgerald, é considerado um dos grandes romances do século XX e um dos que melhor retrata o brilho e o glamour dos anos 20 e, ao mesmo tempo, todas as contradições sociais e morais que esta época encerrou e que haveria de desencadear primeiramente a Grande Depressão da década de 30 e, posteriormente, o conturbado período das ditaduras, sobretudo na Europa.
Publicado em 1925, tem como cenário Nova Iorque e Long Island, decorria o verão de 1922. A América sai do pesadelo da I Guerra Mundial, atravessa a Lei Seca, a proibição da venda de bebidas alcoólicas, o aparecimento do gangsterismo em grande escala, deixa-se levar pelas fortunas que se fazem e desfazem num ápice, sofre o boom bolsista, a efervescência financeira, as bolhas imobiliárias, dança ao som da explosão do jazz e da loucura das grandes festas, fervilha com a euforia de uma sociedade a viver na base de uma sensualidade desbragada, de um materialismo desenfreado, e extasia-se com a criatividade das artes, da literatura ao cinema, da música ao teatro, da pintura à arquitectura. Vive-se perigosamente ao volante de carros que atingem os 40 ou 50 quilómetros / hora, de aviões, de transatlânticos, consome-se whisky e drogas, viaja-se até Paris para se estar actualizado com as últimas do mundo. Fitzgerald passa por lá, tal como Hemingway, e tantos outros.


Nick Carraway, o narrador de “The Great Gatsby”, é um bom retrato deste escritor fascinado pelas luzes e os sons, pela vertigem e os amores funestos, pelo glamour dos milionários e do ambiente, mas, ao mesmo tempo, ciente de que tudo isso representava algo de profundamente sintomático de uma decadência moral e de uma gritante desigualdade social.
Curiosamente, “The Great Gatsby” não conheceu desde logo o sucesso de que hoje goza. Apesar de adaptado ao teatro, em 1926, numa produção do Ambassador Theater, da Broadway, escrita para palco por Owen Davis, encenada por George Cukor, e até ter tido uma versão cinematográfica, “O Grande Senhor Gatsby”, igualmente de 1926, realizada por Herbert Brenon, com Warner Baxter, Lois Wilson e Neil Hamilton, nos principais papéis. Mas a recepção popular foi tímida, e nas décadas seguintes continuou a não ser devidamente valorizado. Só depois da II Guerra Mundial, quando voltou a ser reeditado, entre 1945 e 1953, ganhou o folego que presentemente lhe é dedicado. Sem qualquer tipo de hesitação se pode afirmar que este é não só um romance de uma geração, mas também uma obra que ultrapassa gerações e períodos e se instala na qualidade de clássico. Li-o várias vezes ao longo da vida, reli-o agora por causa da estreia do filme de Baz Luhrmann, e o encantamento supera-se, a cada nova leitura. A delicadeza da escrita, a inteligência da estrutura narrativa, a forma subtil, mas acutilante, como situa personagens e situações, a fina descrição das contradições sociais, afloradas sem demagogia, mas delimitadas com minucia, tudo isto faz do romance uma obra admirável, única.


Nick Carraway, o narrador, o escritor que nos conta o que vamos ler, é um jovem corrector de bolsa que vem trabalhar para Nova Iorque e se instala em Long Island, numa casa vizinha do palacete de um excêntrico milionário, Jay Gatsby. Um braço do Atlântico separa-o da mansão de Tom Buchanan, um rico jogador, casado com Daisy, prima de Nick.
Gatsby tem um passado nebuloso, parece que passou por Oxford, enriqueceu possivelmente à custa das bebidas proibidas, dá festas sumptuosas, todos os sábados, para onde convergem centenas de pessoas, a maioria das quais sem convite. Sabe-se depois que Gatsby ama há muito Daisy e que estas festas são uma forma de “chamar” Daisy para junto de si, o que não acontece. Ela não comparece. Para se fazer encontrar com ela, pede a Nick que improvise um chá em sua casa, tido como ocasional. O drama sentimental explode e será o centro nevrálgico do romance, mas, por detrás desta má gestão das emoções, há todo um retrato de uma sociedade que é particularmente bem dado, em pinceladas imprecisas, mas extremamente justas.

F. Scott Fitzgerald é um escritor admirável, a sua obra não é vasta, mas é inesquecível. Nascido em 1896 no Minnesota, haveria de morrer novo, em Hollywood, no ano de 1940. A sua vida foi acidentada, o casamento com Zelda Sayre conflituoso, e terminaria em tragédia, com o internamento dela num hospício, e os excessos, sobretudo o álcool, haveriam de precipitar a sorte do escritor. Para lá desse fabuloso “The Great Gatsby”, assinou ainda “Este Lado do Paraíso”, “Belos e Malditos”, “Terna é a Noite”, “Contos da Era do Jazz”, e “The Last Tycoon” (O Último Magnata), este publicado postumamente, em 1941.
“The Great Gatsby” conheceria ainda duas outras adaptações ao cinema, antes desta que se encontra presentemente em salas de estreia. Uma de 1949, “Cruel Mentira”, no seu título português, uma realização de Elliott Nugent, interpretada por Alan Ladd, Betty Field, Macdonald Carey, outra de 1974, dirigida pelo britânico Jack Clayton, com argumento escrito por Francis Ford Coppola e um elenco de luxo, Robert Redford, Mia Farrow, Bruce Dern. Uma obra bastante interessante.


Baz Luhrmann, que assina a presente versão, apresentada em 3D, é australiano e um cineasta muito particular. A sua filmografia é reduzida em títulos, mas exuberante em resultados. Há quem goste, quem admire profundamente, quem não tolere. “Strictly Ballroom” (Vem Dançar!), data de 1992, é a sua primeira longa-metragem como realizador. Seguem-se “Romeo + Juliet” (1996), “Moulin Rouge!” (2001) e “Austrália” (2008). Excessivo e luxuriante nas suas criações, era com muita curiosidade que se esperava a sua versão de “The Great Gatsby” (2013), com Leonardo DiCaprio e Carey Mulligan, rodada em grande parte na Austrália, precisamente em Sidney.
O resultado foi recebido de forma catastrófica por grande parte da crítica, mas julgo que existe um enorme preconceito e muita má vontade neste juízo. A obra, sobretudo vista em, 3D, é muito desequilibrada, surpreendente, inquietante, mas globalmente muito interessante e fascinante pelas propostas e pelos resultados conseguidos. O arranque não é brilhante, durante quinze a vinte minutos cheguei a temer o pior, mas depois entramos no espírito da proposta, mergulhamos na nebulosa estilística e começa-se a perceber as intenções do cineasta, que cria um produto absolutamente novo: não é um filme tradicional, nem sequer se aproxima dos vulgares filmes em 3 D, onde os efeitos se impõem por si só.


Em “O Grande Gatsby”, as 3D associam-se a outros processos para oferecerem uma profundidade de campo, um desmultiplicar de planos que torna a obra muito sugestiva. Neste, como em outros aspectos, lembra-nos “O Mundo a Seus Pés”, de Orson Welles. Ao que assistimos são imagens que se estendem no espaço, uma banda sonora que se multiplica, com narração e vozes das personagens, uma história que vem do passado e se estende para o futuro, ancorada num frágil presente, são visões de uma estrutura social que só pode tender à tragédia, com a sofisticada existência dos milionários, ricos e belos, mas igualmente malditos, e um coro de operários e desprotegidos que os cerca e os caracteriza obviamente como inúteis e fúteis. E perigosos.
As 3D funcionam como complemento mais visível desse espraiar por diferentes planos: temos personagens em primeiro plano, palacetes ao fundo, o mar a intervalá-los, temos pedaços de folhas de papel rasgados, letras e frases que flutuam entre o espectador e o ecrã. Um ou outro efeito pode ser de gosto duvidoso, mas de um modo geral, o filme consegue impor um estilo e arrancar sequências notáveis, cenas de rua com multidões, Time Square em dia de romaria, festas de arromba, mas também estradas negras povoadas de operários trabalhando nas obras, enquanto os carros brilhantes dos milionários as cruzam em alta velocidade, ignorando tudo o que não seja a sua febre de viver, a todo o custo.
Há muita cinefilia dispersa ao longo da obra. Um cadáver a boiar numa piscina relembra obviamente “O Crepúsculo dos Deuses” e a própria figura do escritor se aproxima da protagonizada por William Holden. Orson Welles não deixa de ser sugerido, até pela composição de Leonard Di Caprio.
Baz Luhrmann não terá criado a obra-prima que este filme poderia ter sido, mas o seu arrojo e as suas propostas, juntamente com o trabalho dos actores e a competência dos técnicos, merecem seguramente a nossa atenção. É um relativo falhanço, mas um glorioso relativo falhanço.



O GRANDE GATSBY
Título original: The Great Gatsby

Realização: Baz Luhrmann (Austrália, EUA, 2013); Argumento: Baz Luhrmann, Craig Pearce, segundo romance de F. Scott Fitzgerald; Produção: Lucy Fisher, Catherine Knapman, Baz Luhrmann, Catherine Martin, Anton Monsted, Douglas Wick; Música: Craig Armstrong; Fotiografia (cor): Simon Duggan; Montagem: Jason Ballantine, Jonathan Redmond, Matt Villa; Casting: Nikki Barrett, Ronna Kress; Design de produção: Catherine Martin; Direcção artística: Damien Drew, Ian Gracie, Michael Turner; Decoração: Beverley Dunn; Guarda-roupa: Catherine Martin; Maquilhagem: Catherine Biggs, Lara Jade Birch, Maurizio Silvi, Brydie Stone, Lesley Vanderwalt, Kerry Warn; Direcção de produção: Bill Draper, Afnahn Khan, Alex Taussig; Assistentes de realização: Maree Cochrane, Luke Doolan, Emma Jamvold, Jennifer Leacey, Glenn Ruehland, Samantha Smith, Eddie Thorne; Departamento de arte: Sean Ahern, Colette Birrell, Matt Connors, Anna Faigen, Michael Horvath; Som: Wayne Pashley, Fabian Sanjurjo; Efeitos especiais: Dan Oliver; Efeitos visuais: Tony Cole, Daniel James Cox, Joyce Cox, Chris Godfrey, Jeremy Kelly-Bakker, Barry St. John, Rebecca Vujanovic; Companhias de produção: Warner Bros. Pictures, Village Roadshow Pictures, A&E Television Networks, Bazmark Films, Spectrum Films, Red Wagon Entertainment; Intérpretes: Leonardo DiCaprio (Jay Gatsby), Tobey Maguire (Nick Carraway), Carey Mulligan (Daisy Buchanan), Joel Edgerton (Tom Buchanan), Isla Fisher (Myrtle Wilson), Jason Clarke (George B. Wilson), Amitabh Bachchan (Meyer Wolfsheim), Elizabeth Debicki (Jordan Baker), Jack Thompson (Henry C. Gatz), Adelaide Clemens (Catherine), Brendan Maclean (Ewing Klipspringer), Kasia Stelmach (Geraldine Peacock), Callan McAuliffe (jovem Jay Gatsby), Gus Murray (Teddy Barton), Kim Knuckey (Senador), Stephen James King (Nelson), Alison Benstead (Anita Loos), Max Cullen, Joel Amos Byrnes, Chris Proctor, Kate Mulvany, Gemma Ward, Jens Holck, Sam Davis, Brenton Prince, Elliott Collinson, Conor Fogarty, Amitabh Bachchan, Steve Bisley, Richard Carter, Jason Clarke, Adelaide Clemens, Vince Colosimo, Max Cullen, Mal Day, Elizabeth Debicki, Lisa Adam, etc. Duração: 142 minutos: Distribuição em Portugal: Columbia TriStar Warner Filmes de Portugal; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 16 de Maio de 2013. 

domingo, maio 19, 2013

COMO UM MAU FILME AMERICANO

 
 
LUÍS FILIPE SARMENTO:
“COMO UM MAU FILME AMERICANO”

No passado dia 17, fui um dos convidados de Luís Filipe Sarmento para apresentar o seu novo romance "Como um Mau Filme Americano". Infelizmente, nessa noite, ataques de tosse contínuos, quase me impediram de fazer chegar ao público presente as palavras que tinha escrito. Coisas das febres do feno e do tabaco, claro.
Aqui fica o texto, para quem tiver interesse de o conhecer.
 
 
Por que razão apareço eu a apresentar um livro de Luís Filipe Sarmento? Eis uma boa pergunta que merece uma resposta. Não sei se cabal. Se calhar o melhor seria explicar muito prosaicamente, “os gajos são amigos” e calhou. Também é verdade. Mas já agora vou começar por tentar explicar como nasceu a amizade.

Em 1974, para lá de ter acontecido o que todos sabemos e alguns se calhar nos querem fazer esquecer, eu fiz o meu primeiro filme, uma curta-metragem de 18 minutos, chamada “Vamos ao Nimas”. Eu tivera a ideia, planificara, realizara, montara, um filme que procurava mostrar como e porquê desapareciam os cinemas populares na capital. O texto, depois dito pela Lia Gama e o José Nuno Martins, fora escrito pela Maria Eduarda Reis Colares, a fotografia, a preto e branco era do Moedas Miguel, e o meu assistente estagiário era o Lipinho, como então tratávamos carinhosamente o puto Luís Filipe Sarmento. De alguma forma também me sinto responsável pela presente obra. Se calhar fui eu que o levei a ver os maus filmes americanos. Mas se assim foi, ainda bem.

Mas eu conhecera e convivera bastante com o Lipinho, que devia ser puto na altura para os seus dezoito, dezanove anos, no café Vavá, poiso habitual, meu e dele, e de muitos outros amigos com quem diariamente confraternizávamos. Alguns do cinema, como o Manuel Guimarães, outros da música, da pintura, do jornalismo, das associações estudantis, quase todos do chamado reviralho, do antes do 25 de Abril.

Quando tive oportunidade de cumprir a minha iniciação no cinema, numa obra de “autoria” individual, precisava de um assistente que me acompanhasse, e o Lipinho foi quem escolhi e quem se ofereceu. Nessa altura já gostava muito de cinema e de escrever. Era irrequieto e queria saber tudo sobre tudo. Percebi logo que não iria ficar por ali. Havia inquietação bastante para se prolongar pelo futuro. Acompanhou-me interessado durante o tempo de preparação das filmagens, de procura dos locais para a rodagem dos planos, as chamadas repérages, e durante a própria filmagem e montagem. Continuámos a ver-nos com assiduidade durante uns tempos, depois os contactos tornaram-se mais esporádicos, fui sabendo da sua vida literária, de algumas experiências videográficas, do trabalho como professor, descobri que tinha emigrado para Badajoz, Já não tinha coragem para o tratar por Lipinho, era o Luís Filipe Sarmento. Foi este que há una tempos me telefonou a perguntar se apresentava um novo livro dele, que tinha como título “Como um Mau Filme Americano”.

Luís Filipe Sarmento não me achava certamente um expert em crítica literária, mas deve supor que sou um razoável conhecedor de “maus filmes americanos”. Aceitei logo, sem ler a obra antecipadamente, por dois motivos. O título parecia-me interessante, calculava o romance divertido e não acreditava muito que Luís Filipe Sarmento escrevesse e publicasse um mau livro. Depois havia a recordação de uma amizade, que é sempre bom reavivar.

Pronto, aqui estou eu depois de ler o original no computador, amavelmente enviado em pdf pelo seu autor. Que dizer?

Antes de mais, e apesar da amizade, não sou pessoa para fazer fretes. Já tenho idade para dizer o que penso, sem rodeios. Alias, não é cousa de idade. Sempre assim fui. So que agora tenho menos vergonha. Quando não gosto de um livro, seja de veterano encartado ou de iniciado prometedor, ponho de lado, passado 50 páginas. Já lá vai o tempo do sacrifício para entender as razões últimas dos criadores. Li o livro do Luís Filipe Sarmento com interesse e sem sacrifício. É interessante, divertido, algo iconoclasta, provocador. É criativo e suficientemente original na sua construção, um dos aspectos a salientar devidamente na obra.

Arthur Brown Silva é pintor, americano de origem portuguesa, vive sozinho perto de Boston, e um dia descobre, ao regressar a casa, nua, no seu apartamento, uma jovem de nome Ivette Marie, “vizinha do lado, com cerca de 22 anos, filha de emigrantes franceses, estabelecidos na cidade há cerca de vinte anos com uma empresa enigmática de Import/Export”. A coisa começa bem e promete, promessas que se cumprem. A novela é tórrida com a jovem Ivette e vai ocupar grande parte da obra que se centra em meia dúzia de cenários e funciona como concerto literário de câmara.

Mas uma das originalidades de Luís Filipe Sarmento é o aparecimento de um narrador, omnipresente, que vai comentando o que escreve. Lá mais para o meio, aparece ainda o autor, o que lança a confusão na narrativa. Dir-se-ia que existe o autor que pensa, o narrador que escreve, as personagens que se afirmam independentes e agem sem darem grande cavaco a um ou outro, tudo isto não é novo, claro, por aqui passou pelo menos Pirandello, mas resulta estimulante e divertido, sobretudo por que ninguém se leva muito a sério. Aliás o narrador é apresentado nestes termos: “O narrador, que não queria ter muito trabalho na escrita desta novela, porque é um preguiçoso inveterado, vai ter de se socorrer das obras de estética, do Benedetto Croce ao Townsend, do Focillon ao Huisman, ler e reler o Munari, o Deleuze, o Lipovetsky, viajar a Nietzsche, a Freud, a Sartre, redescobrir Roland Barthes, ir e voltar a muitos outros filósofos, historiadores de arte, escritores, provavelmente aos clássicos, reler Platão e Aristóteles e tentar, agora, compreendê-los, ir em busca de Heidegger, redescobrir os mitos e rever os filmes de Woody Allen, exactamente, Woody Allen, como o artista que melhor falou do corpo da cidade, da mulher enquanto metrópole misteriosa, do conflito de prazeres, estudar atentamente a luz de Vermeer, perceber Kurosawa ou penetrar no enredo temporal de Mrs. Dalloway de Virgínia Woolf. Olha-me a camisa de onze varas em que este gajo se meteu. Mas o narrador, cuja demência lhe é reconhecida por toda a gente que com ele convive, vai deixar-se levar pela torrente automática das ideias, das palavras e das imagens, sem sequer se importar com leituras e releituras episódicas. Ele sabe que, com isto, não vai provar nada a ninguém, não vai querer provar nada a ninguém nem a si próprio, mas sim desfrutar deste prazer de contar uma história sem qualquer fio condutor ou, se olharmos por outro prisma, desfrutar do prazer de estar dentro de uma não-história. Assim seja, como diria o outro e também os maçons quando não têm mais nada para dizer”.

Mas esta questão do narrador e do autor torna-se ainda mais complexa, pois por detrás destes existe ainda um outro autor, e, antes deste, o próprio Luís Filipe Sarmento. Esta estrutura de espelhos que se reproduzem uns aos outros, ou de matrioskas que continuamente vão saindo umas do ventre das outras, é desconcertante, e permite reflexões que, aqui e ali, invadem os terrenos da filosofia, da estética, e sobretudo da poética do corpo e do prazer. Esta é essencialmente uma novela que fala do amor físico e do prazer, este a estender-se entre os terrenos da libido e da arte. As meditações, que por vezes julgo demasiado referenciadas a autores de credenciais firmadas, como se a obra necessitasse dessa creditação autoral, dessa legitimação cultural, são bastante interessantes de seguir, bem assim como o contínuo vaivém entre o narrador e as personagens que possibilita inclusive que se estabeleçam laços emocionais e relações físicas. De todas as formas, esta construção é muito cinematográfica, utilizando uma montagem intercortada que coloca e paralelo narrador, autor e situações descritas. Personagens à procura de autor, ou autores em busca de personagens que lhes parecem fugir?

As descrições eróticas são abundantes e quase sempre se expressam numa linguagem luxuriante mas ligeiramente irónica. Algo distanciada até. Um exemplo, que se pretende não muito chocante para a amável assistência: “Ivette Marie, durante a mamada, tem comportamentos estranhos, recriando-se como uma pornostar, manipulando o sexo irado de Arthur com movimentos circulares da mão direita enquanto a sua língua espetada e dobrada na ponta vibra na base da glande. Arthur só vira uma coisa assim nos sites pornográficos da Net onde as profissionais fazem sexo em posições circenses e os grandes planos dão todos os pormenores técnicos, como um manual de instruções, de como se deve fazer um requintado blowjob”.

O sexo é pois uma constante, mas não é algo que apareça de forma arbitrária ou gratuita. O que se procura é, sem grandes eloquências balofas, retractar uma sociedade em transformação:

“Se no ciberespaço o sexo se exprime cada vez mais de forma excessiva já a vida quotidiana, doméstica, é pouco ousada no comportamento entre os seus protagonistas. Então, o que mudou? A grande alteração dá-se com a ecranização da sociedade moderna que levou sobretudo uma população jovem a uma produção individual de prazer erótico muito para além da masturbação. A possibilidade em cenários virtuais de ter mais do que um parceiro no jogo erótico, sem que com isso se ponha em risco a saúde, veio estimular populações jovens em busca de novas fronteiras. Os afectos poderão ficar para depois onde pouco se altera em relação a um passado recente. O ser em si está além do seu organismo que se relaciona socialmente com outros. E esta nova sociedade, a sociedade do hiperconsumo, a sociedade hipermoderna, nos seus distintos universos codifica desejos que se ampliam numa constante desterritorialização. E esta sociedade hipermoderna estabelece novos protocolos de experiência e que se diferencia de outras através dos seus códigos hipereróticos. A área de acção da cultura hiper é estabelecida nos limites, na descoberta de novas sensações que provocam novos desejos que, por sua vez, produzem um novo real e um novo social. E tudo é para ser consumido através da imagem-excesso. Trata-se de um novo território do capitalismo. Onde tudo se tritura. Onde tudo passa vorazmente ao território do que passou. E quando se pronuncia a palavra futuro, como escreveu a poetisa polaca Zimborska, já a primeira sílaba pertence ao passado, assim o hiperconsumo da sociedade hipermoderna. Temos uma orgia de representações versus uma ordem mais ou menos disciplinada dos costumes. O prazer ilimitado da second life ocultado no socialmente aceitável da first life. O mergulho incondicional no ecrã, ou seja, num outro território, desterritorializando-se do comensurável quotidiano. A sociedade hipermoderna manifesta uma atracção, um gosto pelo novo. As sensações do imaginário, desejadas, ultrapassam limites, o dia a dia dos seus protagonistas está normalmente muito afastado desse mundo. Há dois tempos, há dois relógios, há dois espaços aparentemente paralelos. Paradoxalmente, os protagonistas destas novas experiências não querem relegar, como observa Lipovetsky, para um plano secundário o ideal de se ser sujeito ao olhar do outro, querendo manter o estatuto de ser insubstituível. Isto quer dizer que a sociedade hiperindividualista da second life esgota facilmente as ideias imagéticas do hipererotismo para que o ser se torne amado, desejado, sobrevalorizado aos olhos do parceiro? Apesar dos apelos e chamamentos contínuos ao prazer, o regresso de Narciso aniquila o mito dionisíaco. E o desejo? O desejo, do ponto de vista de Deleuze e Guattari, não suportará ficar enclausurado nas celas e células familiares. O desejo é revolucionário e criador e como tal só poderá criar na desterritorialização dos limites aceites. E, neste caso, Dionísio poderá vencer Narciso, ou antes, associar-se a ele, como se tem verificado na exacerbação do beautiful people como uma união erótica hipermoderna. O corpo será, assim, uma poética a descobrir, fruindo-se num mundo que aparentemente não tem lugar para velhos. Não o ser de uma idade avançada, mas aquele que não aceita ou não quer ver que a sociedade hipermoderna assenta no novo”.

Como se pode ver, “Como um Mau Filme Americano” não é apenas uma novela ou um romance divertido e criativo na sua escrita. É, igualmente, uma elaborada racionalização do nosso tempo, da sociedade onde vivemos e de aspectos tão importantes como o papel da arte, do prazer, do desejo, do amor, do comércio da arte e do corpo, da liberdade individual perante uma sociedade opressiva, mesmo quando, ou sobretudo quando, se apresenta como libertadora e libertária. Sem que o seja. Ou sendo-o, com segundas intenções. Afinal, “como num mau filme americano”.

Lauro António
Lisboa, 17 de Maio de 2013

quarta-feira, maio 01, 2013

CINEMA: NÃO



NÃO
 
 
Os factos: em 1973, Allende foi deposto da Presidência da República do Chile, por um golpe militar chefiado por Augusto Pinochet que, a partir daí, e durante quinze anos, chefia uma brutal ditadura militar.
Em 1988, em virtude da crescente pressão internacional, inclusive por parte dos Estados Unidos, que anteriormente tinham ajudado Pinochet a triunfar, o regime militar aceitou realizar um referendo para decidir se Augusto Pinochet continuaria no poder por mais oito anos, até 1997, ou não. O que se perguntava aos eleitores era, pois, se sim ou não a essa intenção do ditador. A ida às urnas ocorreu a 5 de Outubro de 1988. Do lado do “Si” estavam os partidos, se assim se lhes poderia chamar, que apoiavam a ditadura, os únicos legais. Do lado do “No”, que se chamava “Concertação Nacional”, estavam 17 partidos sem existência legal, a que foi permitida voz pública durante uma campanha de um mês, para apresentarem na televisão estatal um espaço de propaganda de quinze minutos diários, igual ao oferecido aos apoiantes do “Si”.
Depois de discussões várias, a oposição resolveu aceitar o repto e concorrer sob o símbolo do arco iris, a união de várias cores em redor da ideia de um futuro melhor em liberdade, com uma canção tema que haveria de resultar em pleno, a “Marcha da Alegria”. Tornou-se o que hoje se chamaria um fenómeno viral, o que parece ter tido influência decisiva no resultado final.
 


 
Esta campanha política acabaria por se transformar, em grande parte, numa luta entre duas concepções de publicidade. Uma mais moderna e manipuladora de emoções (a do “No”), outra mais conservadora e igualmente manipuladora de sentimentos e de factos (a do “Si”). À frente da primeira campanha, encontrava-se, segundo o filme de Pablo Larraín, René Saavedra (Gael García Bernal), e a dirigir o “Sim” Lucho Guzmán (Alfredo Castro), curiosamente patrão de Saavedra na agência de publicidade onde ambos trabalhavam. Saavedra, porém, operava a favor do “No” como free lancer. Depois de um mês de grandes dúvidas, e de algumas peripécias dramáticas, com o regime militar a tentar intimidar as hostes do “Não”, chegou a noite determinante e o “Não” haveria de ganhar largamente: 54,71% contra 43,01%. Assim se punha termo a um dos regimes mais sangrentos das últimas décadas na América Latina, entrando-se num período de transição para a democracia. Segundo a Constituição Chilena, a vitória do “Não” implicava eleições livres no prazo de um ano, durante o qual Pinochet se manteve na presidência, findo o qual cedeu o seu lugar ao vencedor da eleição que elegia conjuntamente Presidente e Parlamento. Em Dezembro de 1989, realizaram-se essas novas eleições, do resultado das quais Patricio Aylwin foi eleito Presidente da República. O Chile iria entrar num período democrático que se estenderia até hoje.
O filme: Pablo Larraín, chileno, nascido a 19 de Agosto de 1976, era já autor de dois filmes particularmente interessantes sobre a vida no Chile durante a ditadura militar: “Tony Manero” e “Post Mortem”. “No” é o terceiro momento desta trilogia que nos fornece uma visão, em momentos distintos, início, durante e fim, do domínio de Pinochet. “No” é especialmente interessante por vários motivos. Como retrato da agonia de uma ditadura, como relato de uma transição pacífica da ditadura para a democracia, mas sobretudo como sintoma de um tempo novo onde a importância do marketing e da publicidade e dos métodos de manipulação de massas a eles associados são absolutamente decisivos, não só na venda de produtos, como também na política. 
 


 
O filme recorre com frequência a material de arquivo das televisões, desde os programas de propaganda política do “Si” e do “No”, como igualmente de actualidades, entrevistas, etc. Para conseguir uma certa unidade estilística no seu filme, Pablo Larraín resolveu rodar a sua obra com a mesma câmara de vídeo que havia gravado essas actualidades, uma Sony U-Matic que, entretanto, já caíra em desuso. O resultado é realmente de uma grande unidade, com a câmara ao ombro quase sempre, uma imagem demasiado esbatida e granulada por vezes, mas que consegue esse tom de grande plausibilidade e credibilidade. Quase todo o filme passa como se de uma actualidade de fim da década de 80 se tratasse. Depois, há que referir a excelente qualidade dos intérpretes, sobretudo de Gael García Bernal e de Alfredo Castro, dois nomes consagrados que aqui confirmam pergaminhos antigos.
Resumindo: um excelente filme político, recuperando com eficácia um momento da História do Chile, que, no entanto, não deixa de ser inquietante. Não fora o esmerado trabalho de marketing e publicidade da campanha do “No” e o Chile continuaria sob a ditadura de Pinochet? Será que nós, eleitores, estamos à mercê de lavagens de cérebro pelas eficientes máquinas das agências de publicidade? Já nos tinham dito, mesmo aqui em Portugal, que se poderia vender presidentes como sabonetes. Temos agora uma aula teórica e prática de como funciona o sistema. Obviamente que nos podem sempre dizer – e garantir - que sem uma boa qualidade do produto a vender, este dificilmente será vendável. Mas já temos provas do contrário.
Será que o eleitor está cada vez menos interessado em discutir opções políticas e ideias, e cada vez mais se deixa guiar pelos apelos irracionais? Eu julgo que neste caso do Chile ganhou a razão, mas nada nos garante que uma boa campanha publicitária e uma excelente estratégia de marketing não nos impinjam quem quiserem. Não sei mesmo se, consciente ou inconscientemente, Pablo Larraín não nos ofereceu um filme que mostra como morrem certas velhas ditaduras e como nascem outras.  

NÃO
Título original: No
Realização: Pablo Larraín (Chile, França, EUA, 2012); Argumento: Pedro Peirano, segundo peça teatral de Antonio Skármeta; Produção: Daniel Marc Dreifuss, Jonathan King, Juan de Dios Larraín, Pablo Larraín; Música: Carlos Cabezas; Fotografia (cor): Sergio Armstrong; Montagem: Andrea Chignoli; Direcção artística: Estefania Larrain; Decoração: María Eugenia Hederra; Direcção de Produção: Eduardo Castro; Assistentes de realização: Gabriel Díaz; Departamento de arte: María Eugenia Hederra; Som: Sebastian Marin, Ivo Moraga, Isaac Moreno, Roberto Zuñiga; Efeitos visuais: Ismael Cabrera, Rodrigo Rojas Echaiz; Companhias de produção: Fabula, Participant Media, Funny Balloons, Canana Films; Intérpretes: Gael García Bernal (René Saavedra), Alfredo Castro (Lucho Guzmán), Luis Gnecco (José Tomás Urrutia), Néstor Cantillana (Fernando), Antonia Zegers (Verónica Carvajal), Marcial Tagle (Alberto Arancibia), Pascal Montero (Simón Saavedra), Jaime Vadell (Ministro Fernández), Elsa Poblete (Carmen), Diego Muñoz (Carlos), Roberto Farías (Marcelo), Sergio Hernández, Manuela Oyarzún, Paloma Moreno, César Caillet, Pablo Krögh, Patricio Achurra, Amparo Noguera, Alejandro Goic, Carlos Cabezas, Claudia Cabezas, Paulo Brunetti, Iñigo Urrutia, Pedro Peirano, Patricio Aylwin, Eugenio Tironi, Juan Forch, Eugenio García, Juan Gabriel Valdés, Jaime de Aguirre, Florcita Motuda, Patricio Bañados, Osvaldo Silva, Carmen María Pascal, María Teresa Bacigalupe, Cecilia Echeñique, Tati Pena, Javiera Parra, Isabel Parra, Cristina Parra, Milena Rojas, Carlos Caszely, Gabriela Medina, Malucha Pinto, Maitén Montenegro, Jorge Yáñez, Claudio Narea, Marco Antonio de la Parra, Ana María Gazmuri, Marcela Medel, Reinaldo Vallejo, Claudio Guzmán, Consuelo Holzapfel, Maricarmen Arrigorriaga, Shlomit Baytelman, Delfina Guzmán, María Elena Duvauchelle, Julio Jung, Richard Dreyfuss, Jane Fonda, Luz Jiménez, Augusto Pinochet, Christopher Reeve, César Arredondo (alguns em imagens de arquivo), etc. Duração: 118 minutos; Distribuição em Portugal: Alambique Destilaria de Ideias Unipessoal; Classificação etária: M7 12 anos; Data da Estreia em Portugal: 25 de Abril de 2013.

CINEMA: UM CASO REAL



UM CASO REAL
 


 
“A Royal Affair” esteve no Festival de Berlim de 2012, onde ganhou dois prémios, o de melhor argumento e o de melhor actor, e foi o candidato dinamarquês ao Oscar de Melhor Filme em língua não inglesa. Não teve sorte no ano que lhe coube a nomeação, pois tinha como concorrente o belíssimo e consensual “Amor”, de Michael Haneke, que viria a arrebatar o Oscar sem nenhuma discussão. Não fora este concorrente de peso, e “Um Caso Real” teria certamente melhor sorte, pois trata-se de uma obra cheia de qualidades e de muito interesse, tanto cinematográfico, como político e sociológico.
Obviamente que a crítica não tem sido, neste caso, consensual, ora discutindo o aparecimento de Lars Von Trier como produtor executivo, ele que fora um dos iniciadores do movimento “Dogma” que preconizava um tipo de cinema muito diferente deste que Nikolaj Arcel, o realizador de “A Royal Affair”, nos oferece, ora acusando o filme de não ser mais do que uma réplica do típico e dito bem comportado cinema inglês, mais ou menos clássico. A histeria contra o clássico no seu ponto mais bacoco, como se só o cinema de vanguarda, ou de pseudo vanguarda, tivesse asas para voar.


 
Pois bem, por mim, o filme é muito curioso cinematograficamente, sem ser uma obra-prima, mas suficientemente estimulante como ponto de partida para uma conversa sobre absolutismo e iluminismo, e sobre a importância do século XVIII na construção da sociedade moderna.
De resto, a história é duplamente real, porque se baseia em factos reais e porque se trata de uma narrativa que tem por base a realeza dinamarquesa, em meados do século XVIII. Depois o filme cruza com invejável habilidade um caso individual, o da rainha Carolina que veio de Inglaterra para casar com o rei Cristiano VII da Dinamarca, e se apaixonou pelo médico de sua majestade, o alemão Johann Struensee, e um caso colectivo, as lutas entre a nobreza absolutista, despótica e ultra conservadora, e o movimento dos iluministas que eclodia em França, com os escritos de Rousseau e Voltaire na linha da frente da contestação.
O rei Cristiano VII não tinha obviamente cabeça para governar, acusavam-no com razão de ser louco, os médicos que o rodeiam acham que ele é vítima de masturbação compulsiva, e na verdade não passa de um mero joguete nas mãos do Conselho de Estado, que o faz assinar todos os decretos que acha por bem promulgar. O rei assina de cruz, como se costuma dizer, apesar de saber ler e escrever e até recitar de cor várias passagens de peças de Shakespeare. Autor que idolatra, excepto naquela citação muito conhecida, de que “algo está podre no reino da Dinamarca”, que ele não gosta de ouvir. Mas é o amor ao teatro e ao dramaturgo inglês que o leva a contratar o médico Johann Struensee, igualmente entusiasta de Shakespeare, o qual vai lentamente manipulando a régia criatura, até assumir ele as rédeas do poder, juntamente com a rainha Carolina, de que se tornara amante, ambos irmanados pelas ideias da revolução social, da restrição de privilégios da nobreza e do clero, em favor do povo e da burguesia emergente. Enfim, os ideias da Revolução Francesa a marcarem caminho na sociedade dinamarquesa, uma das mais arcaicas até essa altura.
 


 
Como se compreende, clero e nobreza não gostaram de ser atingidos e prepararam uma reacção, um golpe palaciano, com o apoio da rainha-mãe, servindo-se para tanto da divulgação do adultério da rainha que, entretanto, tinha tido um filho do médico protector. O final não é um final feliz no imediato, muito embora uma legenda final nos assegure que, na geração seguinte, as palavras dos iluministas iriam triunfar na Dinamarca, trazendo este país para um dos lugares cimeiros da civilização europeia.
Outro aspecto muito inteligente desta obra é o facto de desdobrar a política em representação e o teatro em acto político. A determinada altura, por exemplo, o rei confessa que não consegue opor-se aos seus adversários no Conselho de Estado e Johann Struensee explica-lhe que ele deve decorar as réplicas e depois reproduzi-las como se estivesse a representar. O rei passa a ser a voz de Struensee, a voz dos iluministas, por muito que nem sequer perceba o que diz. Continua, portanto, a assinar de cruz, mas agora oralmente. 
A reconstituição de época é convincente e criteriosa, apesar do filme ter sido em grande parte rodado na Republica Checa, a fotografia é deslumbrante, o ritmo bem doseado, e os intérpretes bastante bons, globalmente, com especial destaque para Mikkel Boe Følsgaard, na composição do conturbado rei Cristiano VII, Mads Mikkelsen, o médico alemão, e Alicia Vikander, na figura da rainha Caroline Mathilde.
 
UM CASO REAL
Título origina : En kongelig affære ou A Royal Affair (inglês)
Realização: Nikolaj Arcel (Dinamarca, Suécia, República Checa, 2012); Argumento: Rasmus Heisterberg, Nikolaj Arcel, segundo romance de Bodil Steensen-Leth ("Prinsesse af blodet"); Produção: Meta Louise Foldager, Sisse Graum Jørgensen, Louise Vesth, Jessica Ask, Karen Bentzon, Gillian Berrie, Anna Duffield, Madeleine Ekman, Peter Garde, Peter Aalbæk Jensen, Kristina Kornum, Maria Köpf, Elin Lennartsson, Pavel Muller, Charlotte Pedersen, Martin Persson, Lars von Trier; Música: Cyrille Aufort, Gabriel Yared; Fotografia (cor): Rasmus Videbæk; Montagem: Kasper Leick, Mikkel E.G. Nielsen; Casting: Leo Davis; Design de produção: Niels Sejer; Guarda-roupa: Manon Rasmussen; Maquilhagem: Linda Eisenhamerova, Ivo Strangmüller; Direcção de produção:  Dorissa Berninger, Søren Frimodt-Møller; Assistentes de realização: Kathleen Hänisch, Matej Les, Martin Pavlacky, Tomas Pavlacky; Departamento artístico: Anders Huulgaard, Veronika Skorepova; Som: Hans Christian Arnt Torp, Katharina Bormann, Hans Christian Kock, Claus Lynge, Roman Rigo; Efeitos visuais: Jeppe N. Christensen, Tinko Dimov, Esben Syberg, Jonas Ussing, Mikael Widegren, Claus Toksvig Kjaer; Companhias de produção: Zentropa Entertainments, DR TV, Trollhättan Film AB, Film i Väst, Sveriges Television (SVT), Sirena Film; Intérpretes: Alicia Vikander (Caroline Mathilde), Mads Mikkelsen (Johann Friedrich Struensee), Mikkel Boe Følsgaard (Christian VII), Trine Dyrholm (Juliane Marie), David Dencik (Ove Høegh-Guldberg), Thomas W. Gabrielsson (Schack Carl Rantzau), Cyron Melville (Enevold Brandt), Bent Mejding (J. H. E. Bernstoff), Harriet Walter (Augusta – Princesa de gales), Laura Bro (Louise von Plessen), Søren Malling, Jakob Ulrik Lohmann, Søren Spanning, Frederik Christian Johansen, John Martinus, Rosalinde Mynster, Nikol Kouklová, Egob Nielsen, Michaela Horká, Alzbeta Jenická, Anna Stiborová, William Jøhnk Nielsen, Julia Wentzel Olsen, Frank Rubæk, Klaus Tange, Petr Janis, Karin Rørbeck, Josefine Højbjerg Bitsch, Zinnini Elkington, Morten Holst, Karel Polisenský, etc. Duração: 137 minutos; Classificação etária: M / 12 anos; Distribuição em Portugal: Data de estreia em Portugal: 21 de Março de 2013.

sábado, março 23, 2013

TEATRO: ALMA

 

ALMA, de GIL VICENTE

Estreou no Teatro São João do Porto, passou pelo Teatro D. Maria II em Lisboa há pouco tempo. Na altura não me apeteceu escrever. Trata-se de um trabalho de encenação de Nuno Carinhas, com soluções cénicas plasticamente muito bonitas, e curiosas nalguns significados, mas creio que o auto de Gil Vicente tinha, na época, uma interpretação e hoje assume-se de forma diversa e algo ambígua, senão mesmo perigosa.

O texto é muito curto e de grande qualidade literária. Não discuto. A ideia é mostrar como a “alma” de cada um de nós é continuamente assediada pelos anjos e pelos demónios, o que não deixa de ser verdade. Mas os anjos apregoam o despojamento, a libertação total dos bens terrenos, e o diabo oferece opulência, poder e riqueza. Bem-estar em suma. Na altura em que foi escrito, era uma crítica directa aos poderosos, hoje em dia pode ser visto como o elogio do conformismo e da pobreza resignada. Por alguma razão este auto da Alma era encenado em todas as escolas do País nos tempos de Salazar. Era rigorosamente o seu pensamento. Com a agravante de os pobres poderem ser manipulados pelas ideias nela contidas e os poderosos se estarem nas tintas para os castigos divinos.

Mas o espectáculo é realmente muito bonito na sua simplicidade, a Alma esfalfa-se a correr num estrado que o mundo e a sua vida, enquanto, de um lado e do outro, anjos e demónios a cobrem de riquezas ou a despem da ostentação. A interpretação é globalmente boa e bem dirigida (uma só mulher, Leonor Salgueiro, muito bem, para um elenco essencialmente masculino, escorreito e por vezes inspirado: Alberto Magassela, Fernando Moreira, Fernando Soares, João Castro, Jorge Mota, Miguel Loureiro, Paulo Freixinho, Paulo Moura Lopes), numa sóbria e eficaz cenografia de Pedro Tudela, com belos figurinos de Nuno Carinhas. Desenhos de luz e de som de Nuno Meira e Francisco Leal igualmente eficientes e de bom gosto. Fica a sensação de um texto fora do contexto. O que na situação actual…

sexta-feira, março 22, 2013

SÓCRATES NA RTP



A HISTERIA ANTI SÓCRATES
Não compreendo, e repugna-me, esta histeria instalada contra José Sócrates. Por uma razão simples. É que não encontro razão nenhuma em particular para assim se proceder.

Vejamos. Que eu saiba, José Sócrates tem sido acusado de dois tipos de pecados:

1º Andar metido em negócios pessoais pouco claros, de que foi acusado e de que nunca nada se provou de concreto, em nenhum dos casos. Ora eu acho que vivemos ainda em democracia, num estado de direito, onde qualquer individuo é considerado inocente até ser julgado e condenado como culpado. Julgamentos sumários em praça pública ou assassinatos políticos, para mim não contam e acho-os ignóbeis. Não o fiz com Sá Carneiro, na histeria Snu, não o fiz com Santana Lopes, quando imperava a boatice, não o farei com José Sócrates. Ponto final, paragrafo, até me provarem o contrário.

2º Ter permitido, enquanto primeiro-ministro, vários erros de governação que nos conduziram onde hoje os encontramos: num profundo buraco negro. Ora não tenho dúvidas de que José Sócrates pode, e deve, ser acusado de alguns erros de governação. O maior de todos, talvez, ter-se demitido. Acontece que nunca vi em Portugal nenhum político não se enganar, até chegarmos ao vergonhoso estado em que hoje nos encontramos, em que os ditos governantes não acertam uma. Mais: quem acabou com a agricultura e as pescas e iniciou as faraónicas obras de cimento e betão? Cavaco Silva! Quem iniciou a delapidação generalizada dos avultados dinheiros vindos da CE? Bom, não preciso de ir mais longe. José Sócrates é tanto réu como tantos outros, com a agravante de muito do que ele disse se ter confirmado posteriormente. Na verdade, a crise não era só portuguesa, mas internacional; na verdade, a dívida não era para se pagar como está a acontecer, mas para se negociar, etc, etc. E nos primeiros quatro anos do seu mandato, sem crise, as contas portuguesas equilibraram-se como raras vezes tinha acontecido. Depois sim, foi o descalabro. Mas não foi o descalabro só português, foi europeu, foi internacional.

Posto isto, em democracia qualquer um pode falar e expor as suas razões. Tenho visto e ouvido cada alimária a dizer disparates tamanhos que não será certamente o programa de José Sócrates na RTP a incomodar-me. Terá mesmo uma virtude, que só quem tem medo do que pode aí vir não quererá aceitar: ouvir o que o homem tem para nos dizer. Será que estávamos onde hoje estamos se o PEC IV tem sido implementado? Teríamos a tróica entre nós?

Assim sendo, deixem falar o homem, que os tempos da ditadura do silêncio já passaram. Eu sei que nos pretendem impor uma outra ditadura, mas ainda há quem não a aceite.

CINEMA: COMBOIO NOTURNO PARA LISBOA


COMBOIO NOTURNO PARA LISBOA
 

Antes de mais, devo esclarecer desde logo que o romance “Comboio Noturno para Lisboa”, de Pascal Mercier, não me agradou nada. Achei-o empastelado, pretensioso, rico em filosofices baratas, literatice de trazer por casa. Nunca percebi o sucesso internacional que alcançou de um dia para o outro, um pouco por todo o lado.  Posso estar enganado, mas é o que sinto. Pascal Mercier é, aliás, o pseudónimo usado pelo suíço, professor de filosofia, Peter Bieri, nascido em Berna em 1944, mas mais recentemente professor de Filosofia na Universidade de Berlim. Não faz o meu género, e só o li até final por respeito para com Lisboa, cenário onde decorre grande parte do seu enredo.
De resto, a justificação que o mesmo dá para ter escolhido um pseudónimo literário não deixa de ser curiosa: "Enquanto professor receei colocar a minha reputação académica em causa quando comecei a escrever ficção. Precisava de me esconder atrás de um pseudónimo para ter coragem de me libertar na escrita. Só sabia que queria um nome com sonoridade francesa mas que não fosse extravagante. É uma experiência fantástica escolher um outro nome porque o kitsch que há em nós surge no seu máximo. Os primeiros nomes que nos surgem são extraordinários."
 

Entretanto, soube que o livro iria ser adaptado por Bille August, cineasta dinamarquês que assinou duas películas relativamente interessantes, “Pele, o Conquistador” e “As Melhores Intenções”, tendo-se perdido posteriormente em obras internacionais que nunca me seduziram. Nem a muito conhecida “A Casa dos Espíritos”, rodada parcialmente em Lisboa, me entusiasmou. Parece um homem de boas intenções e de causas, gosta muito de Lisboa, o que só lhe fica bem, mas os seus filmes, quando rodados fora da Dinamarca natal, assemelham-se a encomendas confeccionadas sem vigor nem alma.
Posto isto, que dizer de “Comboio Noturno para Lisboa”, que agora estreou?
O romance, para mim, continua a ser intragável, o filme melhora um pouco o tom geral, mas mantem-se algo incaracterístico, empastelado, sem brilho.
 
 
A história é rápida de se evocar: o suíço Raimund Gregorius, sombrio professor de filosofia numa escola de Berna, um dia ao ir para as aulas surpreende uma jovem que parece ir suicidar-se, lançando-se do alto de uma ponte sobre o rio Aar, que atravessa a cidade. Salva-a, leva-a para a sua aula, a rapariga pouco depois desaparece, mas deixa um casaco vermelho e dentro de um bolso um livrinho de um autor português, Amadeu de Prado. Começa a ler o livrinho, depois de tentar restituir o casaco à jovem portuguesa desaparecida, e encontra no interior das suas páginas um bilhete de comboio para Lisboa. Não pensa duas vezes, até porque o comboio vai partir daí a 15 minutos, e, só com a roupa no pelo, resolve viajar para a capital portuguesa, em busca de Amadeu. Obviamente que as intenções do autor do romance são mais complexas. Raimund Gregorius vem em busca de Amadeu de Prado só na aparência, quem ele procura realmente é a si próprio, a aventura que nunca viveu. Os escritos de Amadeu são dramaticamente medíocres e enfatuados, mas generosamente são reduzidos ao mínimo na adaptação cinematográfica. Um ponto a favor do filme.
Depois, de encontro em encontro, de entrevista em entrevista, descobre que Amadeu foi médico, resistente à ditadura salazarista, e que faleceu, vítima de um aneurisma cerebral. Mas vai encontrando muita gente que lhe fala de Amadeu. Quem interpreta Raimund Gregorius? Jeremy Irons. Ok. Consegue transformar uma personagem sem densidade, em alguém que se acompanha com prazer. Outro ponto a favor do filme. Quem são os actores com quem se cruza em busca de Amadeu? Tom Courtenay, Bruno Ganz, Charlotte Rampling, Lena Olin, Christopher Lee, os portugueses Nicolau Breyner, Helena Afonso, Beatriz Batarda, João Lagarto, Joaquim Leitão, Adriano Luz, José Wallenstein, todos eles muito bem e a merecerem melhor sorte do que aquela que lhes coube, em pequenas rábulas. Há ainda a referir Mélanie Laurent, bonita e talentosa. Outro ponto a favor do filme.
 

Depois há Lisboa como cenário privilegiado desta história. Lisboa muito bonita, fotogénica, um pouco melosa demais para o meu gosto, mas excelente cartaz internacional, demonstrando que esta é uma aposta que Portugal deve seguir. Só por si, cinco pontos a favor do filme.
Finalmente, um aceno de franca simpatia para os produtores portugueses, nomeadamente Ana Costa e Paulo Trancoso, pela galhardia com que se bateram, e se batem, pelo bom sucesso deste filme. Dois pontos a seu favor. Feitas as contas, são dez os pontos, numa escala de 0 a 20. Claro que estamos a ser nacionalistas, a puxar a brasa à nossa sardinha, mas se não fosse essa sardinha o cozinhado não merecia muito mais. Dez pontos é como quem diz: Vá ver que ajuda o país, a cidade de Lisboa merece, e o esforço dos produtores, técnicos e actores portugueses também. Mas não vá com muitas expectativas que ultrapassem cenário e actores.   


COMBOIO NOTURNO PARA LISBOA
Título original: Night Train to Lisbon ou Comboio Noturno Para Lisboa
Realização: Bille August (Alemanha, Suíça, Portugal, 2013); Argumento: Greg Latter, Ulrich Herrmann, segundo romance de Pascal Mercier; Produção: Kerstin Ramcke, Peter Reichenbach, Günther Russ, Ana Costa, Michael Lehmann, Benjamin Seikel, Michael Steiger, Paulo Trancoso; Música: Annette Focks; Fotografia (cor): Filip Zumbrunn; Montagem: Hansjörg Weißbrich; Casting: Patrícia Vasconcelos, Jeremy Zimmermann; Design de produção: Augusto Mayer; Decoração: Dominique Steiner-Studinka; Guarda-roupa: Monika Jacobs; Maquilhagem: Sano De Perpessac, Linda DeVetta, Jekaterina Oertel; Direcção de produção: Catherine Leroux, Tina Mersmann, Joana Synek; Assistetes de realização: Guy Travers, Raul Correia, Sonja Levy, Filipa Ruiz; Departamento de arte: Simon Bang, José Carlos Vitorino; Som: Rainer Heesch, Stefan Soltau, Björn Wiese; Efeitos visuais: Andrei Dimitriu, Dirk Frischmuth, Markus 'Maggi' Selchow; Companhias de produção: Studio Hamburg Filmproduktion, C-Films AG, PalmStar Entertainment, Efish Entertainment, Cinemate, K5 Film, K5 International, Tele München Fernseh Produktionsgesellschaft (TMG); Intérpretes: Jeremy Irons (Raimund Gregorius), Mélanie Laurent (jovem Estefania), Jack Huston (Amadeu), Martina Gedeck (Mariana), Tom Courtenay (João Eça), August Diehl (jovem Jorge O'Kelly), Bruno Ganz (Jorge O'Kelly), Lena Olin (Estefania), Burghart Klaußner (juiz Prado), Nicolau Breyner (Da Silva), Charlotte Rampling (Adriana de Prado), Helena Afonso (Maria Prado), Beatriz Batarda (jovem Adriana), Sarah Bühlmann (Catarina Mendes), Raquel Cipriano, Jean-Pierre Cornu, Maria d'Aires, Marco D'Almeida, Dominique Devenport, Marçal Godinho, Max Hubacher, João Lagarto, Christopher Lee, Joaquim Leitão, Adriano Luz, Eloy Monteiro, Hanspeter Müller, Ana Lúcia Palminha, Bruno Salgueiro, Jane Thorne, Filipe Vargas, Jorge Veríssimo, José Wallenstein, etc. Duração: 110 minutos; classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Estreia em Portugal: 21 de Março de 2013.