sábado, novembro 07, 2020

ADEUS, SR. PRESIDENTE!


ADEUS, SR. PRESIDENTE!
Não vai deixar saudades.
Uma semana ANTES de ser eleito, 
eu já não o podia ouvir.
Não tem nada a ver com republicanos e democratas.
Tem a ver com dignidade e respeito.
Boa viagem 
e não volte mais!

 

quarta-feira, novembro 04, 2020

CINEMA: REBECCA (1940)

 

REBECCA (1940)

No verão de 1939, David O. Selznick foi buscar Alfred Hitchcock a Inglaterra e ofereceu-lhe trabalho em Hollywood. Hitchcock era na altura o mais famoso realizador inglês, já com alguns grandes sucessos de público e de crítica, e compreende-se que um produtor como Selznick tenha apostado tudo neste britânico, já um pouco gordo e sempre bonacheirão, que criava uma fama de grande cineasta e de um apuradíssimo criador de atmosferas de suspense.

Para iniciar essa colaboração, o produtor ofereceu ao realizador a oportunidade de adaptar ao cinema, depois da tentativa de Titanic, o romance de uma escritora então muito popular, Daphne Du Maurier, “Rebecca”. Curiosamente a oferta caiu como ouro sobre azul, pois Hitchcock já pensava, ainda em Inglaterra, adaptar este romance que tinha todos os condimentos para se integrar harmoniosamente nos temas e nas preocupações do cineasta.


“Rebecca” é uma história fabulosa, um melodrama sentimental que assenta num clima fantástico, povoado de segredos e de mistérios, com um crime a pairar no horizonte e uma ambiguidade de situações invulgar. Esta “picturization” do romance de Daphne Du Maurier, como aparece escrito no genérico inicial, começa com uma voz off, e a câmara a percorrer o caminho que conduz a Marderley, ouvindo-se
"Last night I dreamt I went to Manderley again". Mas a acção inicia-se com uma cena fortíssima, na costa de Monte Carlo, com Maxim de Winter (Laurence Olivier) à beira de um penhasco sobre o mar em fúria, quando é surpreendido por uma mulher, que mais tarde será Mrs. de Winter (Joan Fontaine), que lhe grita para parar. Seria que Maxim se preparava para se suicidar? A verdade é que do encontro resulta uma paixão relâmpago entre os dois, casam e ele regressa com ela a Manderley, uma mansão enorme onde estivera casado com a primeira Mrs. Winter, de seu nome Rebecca.

Rebecca irá assombrar todos os minutos que dura o filme, mas é uma presença invisível que se torna mais presente do que muitas reais. Por todo o lado se insinua a forte presença desta mulher que é descrita como muito bela, elegante, poderosa, absorvente. Tudo está marcado por Rebecca, desde a roupa ao quarto fechado, da sua sedução e fascínio aos mais intrigantes segredos que lentamente se irão descobrindo à medida que o filme decorre. Se Rebecca é um nome constante, da segunda senhora Winter nunca iremos saber sequer o nome próprio, emparedada entre Rebecca e Manderley. Se Rebecca é uma presença obsidiante, Manderey impõe-se igualmente de forma obsessiva.

A juntar a estas individualidades de personalidade dominadora (sim Manderley é uma das personagens do filme), há ainda uma ama, Mrs. Danvers (a inesquecível Judith Anderson), que tudo fará para igualmente se tornar uma presença, no mínimo obsessiva, a rondar o patológico. Ela vive sob o domínio de Rebecca, a sua senhora, seguramente o seu amor, concretizado ou não, disposta a perseverar a imagem da sua referência maior, particularmente insatisfeita com a vinda de uma nova mulher a ocupar o lugar daquela que para ela é insubstituível. Discretamente, de forma insidiosa, fará a vida negra à segunda Mrs. Winter. 


“Rebecca” é assim esta história de um triangulo emocional entre Maxim e as suas duas mulheres, com uma curiosidade extra, que a censura dos EUA introduziu no argumento: no romance de Daphne Du Maurier tinha sido Maxim De Winter a assassinar a primeira mulher. No filme, por imposição do Código Heys, que não permitia que um criminoso ficasse impune no final de um filme, Hitchcock introduziu algumas alterações à história, que, longe de tornarem a intriga mais “moral”, desafiam o espectador para outras áreas de interpretação.

Vindo de Inglaterra, com uma história inglesa debaixo do braço, Alfred Hitchcock, de colaboração com Selznick que lhe deu (quase) inteira liberdade de escolha, optou por um elenco principal onde só Joan Fontaine era naturalizada norte-americana (apesar de ter nascido em Tóquio, de pai inglês). Laurence Olivier, George Sanders, Judith Anderson, entre outros, eram ingleses.

Rodado na Califórnia, entre 8 de Setembro e 20 de Novembro de 1939, “Rebecca”, teve interiores captados nos Selznick International Studios, em Culver City, e exteriores em Big Sur, Point Lobos State Natural Reserve e Palos Verdes. Não sendo dos filmes de que o autor mais gosta, “Rebecca” terá sido um dos seus maiores sucessos, não só na altura da sua estreia (ganhou o Oscar de Melhor Filme, mas não o de Melhor Realizador, o que Hitch nunca alcançou, a não ser um Oscar honorário pela contribuição do seu trabalho total), como até hoje, sendo dos filmes que maior receita acumularam, entre todos os dirigidos a preto e branco pelo mestre do suspense.

REBECCA

Título original: Rebecca

Realização: Alfred Hitchcock (EUA, 1940); Argumento: Robert E. Sherwood, Joan Harrison, Philip MacDonald, Michael Hogan, segundo romance de Daphne Du Maurier; Produção: David O. Selznick; Música: Franz Waxman; Fotografia (p/b): George Barnes; Montagem: W. Donn Hayes; Direcção artística: Lyle R. Wheeler, William Cameron Menzies; Maquilhagem: Monte Westmore; Assistentes de realização: Edmond F. Bernoudy, D. Ross Lederman, Eric Stacey; Departamento de arte: Howard Bristol, Joseph B. Platt, Dorothea Holt; Som: Jack Noyes, Arthur Johns; Efeitos especiais: Jack Cosgrove; Efeitos visuais: Albert Simpson; Companhia de produção: Selznick International Pictures; Intérpretes: Laurence Olivier ('Maxim' de Winter), Joan Fontaine (Mrs. de Winter), George Sanders (Jack Favell), Judith Anderson (Mrs. Danvers), Nigel Bruce (Major Giles Lacy), Reginald Denny (Frank Crawley), C. Aubrey Smith (Coronel Julyan), Gladys Cooper (Beatrice Lacy) Florence Bates (Mrs. Van Hopper), Melville Cooper (Coroner), Leo G. Carroll (Dr. Baker), Leonard Carey, Lumsden Hare, Edward Fielding, hilip Winter, Forrester Harvey, Alfred Hitchcock (homem do lado de fora de uma cabine telefónica), etc. Duração: 130 minutos; Distribuição em Portugal: inexistente; Distribuição internacional: ABC (Espanha); Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 7 de Janeiro de 1941; Cópia original em inglês, com legendas em espanhol.

terça-feira, novembro 03, 2020

CINEMA: REBECCA (2020)

 


REBECCA (2020)

Uma nova versão de “Rebecca”, adaptando o célebre romance de Daphne Du Maurier que marcou a entrada fulgurante de Alfred Hitchcock na produção cinematográfica dos EUA em 1940. Mais uma vez um remake não se mostra à altura do original. Lembro-me de “Lolita” de Vladimir Nabokov, que Stanley Kubrick dirigiu em 1962, com James Mason, Shelley Winters e Sue Lyon. Uma obra-prima que, em 1997, Adrian Lyne retomou, a cores, com um bom elenco, Jeremy Irons, Dominique Swain e Melanie Griffith, ficando muito abaixo do filme de Kubrick. Qual a razão? O talento do realizador e a intensidade dramática do preto e branco que trazia uma austeridade fortíssima a esse drama, o que, no caso da obra mais recente, era completamente anulado pelo bonitinho cheio de rodriguinhos do colorido do filme de Adrian Lyne. A tendência para tornar “esteticamente” mais “moderno”, mais actual o conflito, acaba por ser uma opção redutora.



O mesmo acontece com “Rebecca”, com resultados muito semelhantes. A actual versão é muito adocicada, igualmente muito “bonitinha”, com escolha de cenários sumptuosos, mas com efeitos totalmente opostos ao filme de Hitch. Mas há muito mais. Os protagonistas desta versão de 2020, Lily James, Armie Hammer e Kristin Scott Thomas, estão todos a milhas de Laurence Olivier, Joan Fontaine ou Judith Anderson. Apenas Kristin Scott Thomas, no papel de governanta, se aproxima do trabalho de Judith Anderson, mesmo assim não o igualando. Uma desilusão que tem o condão de que confirmar como era notável o filme de Alfred Hitchcock. Pode ver esta versão, mas não deixe de ver ou rever o verdadeiro “Rebecca”, uma lição de cinema.  

REBECCA

Título original: Rebecca

Realização: Ben Wheatley (2020); Argumento: Jane Goldman, Joe Shrapnel, Anna Waterhouse, segundo romance de Daphne Du Maurier; Produção: Raphaël Benoliel, Tim Bevan, Eric Fellner, Amelia Granger, Caroline Levy, Nira Park, Sarah-Jane Robinson; Música: Clint Mansell; Fotografia (cor): Laurie Rose; Montagem: Jonathan Amos; Casting: Nina Gold, Mathilde Snodgrass; Design de produção: Sarah Greenwood; Direcção artística: Will Coubrough, Nick Gottschalk, Louise Lannen, Will Newton; Decoração: Katie Spencer; Guarda-roupa: Julian Day; Maquilhagem: Ivana Primorac, Laura Allen, Elodie Aubert, Olivia Barningham, Sam Bear, Véronique Boslé, Jean-Philippe Colombie, Crystelle Di Rosa, Beatriz Duarte, Stefania Favata, Grace Firmin, Louise Fisher, Florina Foret, Karine Foret, Robert Frampton, Jean-Pierre Gallina, Karl Gianfreda, Fabienne Giombini, Mélodie Grand, Chantal Guadalpi, Senghore Haddy, Charlotte Hayward, Jennyfer Hillyards, Catherine Ichou, Irène Jordi, Laureen Kaczmarek, Sophie Kilian, Barbara Krief, Justine Lancelle, Sandra Lovi, James MacInerney, Patricia Ounroth-Rochwerg, Marilyn Rieul, Charlotte Rogers, Corinne Texier, Gillian Thomas, Naomi Tolan, Catherine Topin, Christine Whitney, Hollie Williams, Lisa Wood; Direcção de Produção: Joanne Dixon, Arnaud Duterque, Rachael Havercroft, Polly Hope, Hannah Ireland, Pat Karam, Elizabeth Small; Assistentes de realização: Tussy Facchin, Andrea Hachuel, Ben Howard, Elodie Krauss, Georgia Lewis, Danni Lizaitis, Stefan Maile, Vincenz Meresse, Charlie Vaughan, Phoebe Young; Departamento de arte: Naomi Bailey, Ursa Banton-Miller, Tamara Catlin-Birch, Simon Hutchings, Emma MacDevitt, Alicia Grace Martin, Michel Rollant; Som: Danny Freemantle, Glenn Freemantle, Nick Freemantle, Niv Adiri, Gillian Dodders, Russell Edwards, Rob Entwistle, Dayo James, Robert Malone, Anthony S. Ciccarelli, etc. Efeitos especiais: Karl Openshaw, Jody Taylor, Richard Van Den Bergh, Massimo Vico, Flora Warrington, Murray Barber, Mauricio Cuencas, Atem Kuol, etc. Companhias de produção: Netflix, Working Title Films; Intérpretes: Lily James (Mrs. de Winter), Armie Hammer (Maxim de Winter), Ann Dowd (Mrs. Van Hopper), Kristin Scott Thomas (Mrs. Danvers), Jacques Bouanich, Marie Collins, Jean Dell, Sophie Payan, Pippa Winslow, Lucy Russell, Bruno Paviot, Stefo Linard, Tom Hudson, Jeff Rawle, Ashleigh Reynolds, Bryony Miller, Tom Goodman-Hill, Ben Crompton, John Hollingworth, Keeley Hawes, Jane Lapotaire, Sam Riley, Poppy Allen-Quarmby, David Cann, Julia Deakin, Jason Williamson, Colin Bennett, Jessie Irvin Rose, Chris Bearne, John Macneill, etc. Duração: 121 minutos; Distribuição em Portugal: Netflix; Classificação etária: M/ 13 anos; Data de estreia em Portugal: 21 de Outubro de 2020. 

segunda-feira, novembro 02, 2020

CINEMA: OS 7 DE CHICAGO

 

OS 7 DE CHICAGO

A América tem destas coisas: podemos estar muito zangados com uma metade, mas há sempre a outra metade a compensar e surpreender-nos. “Os 7 de Chicago”, de Aaron Sorkin, aí está para nos reconciliar com o lado menos podre da maçã, para nos fazer ver que a América é um país de contradições, onde é sempre possível recuperar a dignidade e que é quase sempre pela arte que lá vamos. Quer seja na literatura, na música, no teatro, nas artes plásticas, … no cinema.

Aaron Sorkin é um dos meninos bonitos de Hollywood, quer como argumentista, como dramaturgo, como realizador igualmente. Nascido num subúrbio de Nova Iorque (1961), formado na universidade de Syracuse, em teatro, começa a carreira como actor, mas rapidamente percebe que a sua vocação é a escrita. Assina algumas peças de sucesso, como "Hidden in This Picture", mas é sobretudo com “Uma Questão de Honra” (1992), que atinge uma certa consagração nos palcos. Passa depois ao cinema, notabilizando-se como o argumentista de série de televisão de antologia, como “Os Homens do Presidente” (1999), “Sports Night” (1998) ou “Newsroom” (2012-2014). No cinema colabora na versão final de “A Lista de Schindler” (1993) e assina os argumentos de “Uma Noite com o Presidente” (1995), “Má Fé” (1993), “Inimigo de Estado” (1998), “O Rochedo” (1996), “Bagagem Explosiva” (1997), “Jogos de Poder” (2007), “A Rede Social” (2010), Moneyball, Jogada de Risco” (2011), “Steve Jobs” (2015), “Jogos da Alta Roda” (2017) e, finalmente, “Os 7 de Chicago”. Os dois últimos são realizados por si.


“Os 7 de Chicago” arrisca-se a ser, desde já, um dos grandes candidatos aos Oscars de 2021. Aliás, a pandemia, e o reforço esperado da importância do
streaming, parecem colocar a Netfix em alto grau de probabilidade de ser uma das grandes vencedoras da próxima noite de atribuição de Oscars. Não só com este filme, mas com outros que se anunciam com igual possibilidade de figurarem na lista final dos nomeados e dos vencedores. Mas fiquemo-nos por agora neste “Os 7 de Chicago” que se baseia num caso verídico, ocorrido em Chicago, por ocasião da Convenção Nacional Democrata de 1968.

O filme explica e julgo que com grande precisão de factos, ainda que obviamente com um lado ficcionista que sempre se impõe, como as coisas aconteceram. Estamos em pleno período eleitoral na Convenção Democrata. O país vive angustiado com a Guerra do Vietname e com as medidas anunciadas pelo presidente Lyndon B. Johnson, recrutando mais e mais militares para o conflito. A juventude está revoltada e organiza várias marchas de protesto que irão confluir nas ruas e parques de Chicago. A convenção decorre no International Amphitheatre e a multidão dirige-se para lá. A polícia corta-lhe o acesso, em frente ao Conrad Hilton Hotel, onde os candidatos democratas à presidência e suas campanhas estavam sediados, e surgem os confrontos ali e em vários locais da cidade. Há cargas violentas, feridos, presos. Conta-se que no comício do Grant Park, na quarta-feira, 28 de Agosto de 1968, se reuniram mais de 15 mil manifestantes. Foram 5 dias e 5 noites de tumultos. Acusações de parte a parte. Polícia e manifestantes tanto são ora vítimas, como carrascos. As autoridades, na impossibilidade de prenderem todos, “elegeram” os “Chicago Seven” (originalmente Chicago Eight, ou Conspiracy Eight) que se iriam sentar nas cadeiras de réus: Abbie Hoffman, Jerry Rubin, David Dellinger, Tom Hayden, Rennie Davis, John Froines e Lee Weiner, todos acusados de conspiração, incitação à revolta e outras incriminações relacionadas a protestos contraculturais e contra a Guerra do Vietname. O oitavo era Bobby Seale, dirigente dos Black Panters, que, acusado de desacatos durante o julgamento, seria obrigado a abandonar a sala de julgamento e viria a ser condenado a quatro anos de prisão.  



Acontece que este caso ocorreu durante eleições nos EUA. Estava no poder Lyndon B. Johnson que viria a ser substituído pelo republicano Nixon, com as respectivas trocas noutros cargos. O de procurador-geral do presidente, inicialmente um democrata, Ramsey Clark, depois um republicano, John Mitchell, com tudo o que a rivalidade política e os pontos de vista divergentes impõem. O democrata teria uma opinião mais cordata, mais favorável aos manifestantes, os republicanos foram muito mais violentos nas acusações, desculparam as cargas policiais, o julgamento prolongou-se por meses, concluiu por condenações, a que se seguiram apelações e reversões, alguns dos sete acusados foram finalmente condenados, embora todas as condenações tenham sido, anos depois, revertidas.

Com base nestes dados, Aaron Sorkin escreveu um argumento que é sobretudo um filme de tribunal, que se acompanha com interesse redobrado, dada a tensão mantida e o desempenho de um vasto grupo de actores, todos eles excelentes. As peripécias do julgamento, a irreverência dos réus, a inteligência e a ironia do diálogo, a boa arquitetura narrativa, tudo isso se conjuga para a criação de uma obra notável, de coragem política (sobretudo em tempos de Trump na presidência) mas igualmente de dramatismo social. Erguer uma tal obra não terá sido muito fácil nos tempos actuais, por isso se compreende que surjam no genérico entre produtores e produtores associados e executivos, 44 nomes e 11 casas produtoras. Um esforço financeiro avultado certamente, mas sobretudo uma forma de multiplicar por muitos a responsabilidade de apresentar ao público uma tal obra. Note-se que alguns actores se encontram entre os produtores, caso por exemplo de Sacha Baron Cohen, o que transforma esta película numa espécie de manifesto que tem objectivamente muito de actual. Não por acaso surge nas vésperas da mais importante eleição que se realiza nos EUA desde há muito.


O elenco é grandioso e brilhante: Eddie Redmayne, Alex Sharp, Sacha Baron Cohen, Jeremy Strong, John Carroll Lynch, Yahya Abdul-Mateen II, Mark Rylance, Joseph Gordon-Levitt, Ben Shenkman Frank Langella, Michael Keaton, entre muitos outros, impõem uma galeria de tipos que dificilmente se esquecem assim como o galvanizante final que relembra obviamente as derradeiras imagens de “O Clube dos Poetas Mortos”.

A reconstituição de época é notável e todo o enquadramento técnico, da fotografia à banda sonora, passando pela montagem merecem os mais rasgados elogios. Um filme do ano, seguramente.


 

OS 7 DE CHICAGO

Título original: Título original: The Trial of the Chicago 7

Realização: Aaron Sorkin (EUA, 2020); Argumento:Aaron Sorkin; Produção: Max Adler, Cary Anderson, Sacha Baron Cohen, Gail Benefiel, Stuart M. Besser, Marc Butan, Dru Davis, Misook Doolittle, Maurice Fadida, Stephanie Garvin, Mickey Gooch Jr., J. Todd Harris, Matt Jackson, Anthony Katagas, Nancy Kirhoffer, Monica Levinson, Lauren Lohman, Laurie MacDonald, Kristie Macosko Krieger, Steve Matzkin, Jan McAdoo, Evan Metropoulos, Charles Miller, Jonathan Moore, Walter F. Parkes, Buddy Patrick, Marc Platt, Shivani Rawat, Joseph P. Reidy, Kristina Rivera, Andrew C. Robinson, James Rodenhouse, Cody Saintgnue, Emily Hunter Salveson, Sarah Schroeder-Matzkin, Thorsten Schumacher, Nicole Alexandra Shipley, Ryan Donnell Smith, Debra Taweel, Tyler Thompson, Jared Underwood, Nia Vazirani, Slava Vladimirov; etc. Música: Daniel Pemberton; Fotografia (cor): Phedon Papamichael; Montagem: Alan Baumgarten; Casting: Francine Maisler, Mickie Paskal, Jennifer Rudnicke; Design de produção: Shane Valentino; Direcção artística: Nick Francone, Julia Heymans, Ernesto Solo; Decoração: Andrew Baseman; Guarda-roupa: Susan Lyall; Maquilhagem: Tiffany Anderson, Budd Bird, Karen Brody, Eadra Brown, Nathan J. Busch II, Stephanie Cannone, Christen Edwards, David Grant, Vivian Guzman, Stacey Herbert, Troy Holbrook, Jon Jordan, Stephen Kelley, Rochelle Kneisley-Fisher, Karen Koenig, Jamie Leodones, Justine Losoya, Tarsha Marshall, Joanna McCarthy, Louise McCarthy, Amy Sue Nahhas, Zsofia Otvos, Sunni-Ali Powell, Lillian Sakamaki, Ray Santoleri, KeLeen J. Snowgren, Sarah Squire, 0Kacy Tatus, Pamela Turnmire, Gina Ussel, Catherine Woods, Jackie Zarn, Anna Zenner, Nakoya Yancey; Direcção de Produção: David Duque-Estrada, Charles Leslie, Charles Miller, Jonathan Shoemaker; Assistentes de realização: Kyle Casper, Pablo Gambetta, T.J. Hallett, Rachel Jaros, Joseph P. Reidy; Departamento de arte: Zach Doherty, Jennie Eps, Maxwell Fasen, Michael Fleming, Jacqueline Frole, Steve Garcia, Ben Gojer, Chesney Gregorie, Dylan E. Griffin, Samuel L. Kopels, Irene Krygowski, Leanne Macomber, Melissa Manke, Lauren Nigri, Ari David Schwartz, David Soukup, Scott Taft, Charles E Tiedje, Timothy W. Tiedje, Molly Welsh, etc. Som: Dan Kenyon, James B. Appleton, Davi Aquino, Tim Edson, Casey Genton, Michael Hertlein, Jonathan Klein, Jon Michaels, Adam Mohundro, Kevin Schultz, Ken Strain, Renee Tondelli, Thomas Varga, etc. Efeitos especiais: Allison Cayo, Drew Jiritano, James Klotsas, Carlton Nienhouse, Calvin Small; Efeitos visuais: Glenn Allen, Jasmine Carruthers, Unggyu Choi, Nick Constandy, Eran Dinur, Richard Friedlander, Daniel Gardiner, Mia Mallory Green, Austin Meyers, Yunsik Noh, Michelle Polacinski, Mani Trump, Michael Wharton, Ben Zylberman; Companhias de produção: Dreamworks Pictures, Amblin Partners, CAA Media Finance, Cross Creek Pictures, Double Infinity Productions, MadRiver Pictures, Marc Platt Productions, Paramount Pictures, Reliance Entertainment, Rocket Science, ShivHans Pictures; Intérpretes: Eddie Redmayne (Tom Hayden), Alex Sharp (Rennie Davis), Sacha Baron Cohen (Abbie Hoffman), Jeremy Strong (Jerry Rubin), John Carroll Lynch (David Dellinger), Yahya Abdul-Mateen II (Bobby Seale), Mark Rylance (William Kunstler), Joseph Gordon-Levitt (Richard Schultz), Ben Shenkman (Leonard Weinglass), J.C. MacKenzie (Thomas Foran), Frank Langella (Juiz Julius Hoffman), Danny Flaherty (John Froines), Noah Robbins (Lee Weiner), John Doman (John Mitchell), Michael Keaton (Ramsey Clark), Kelvin Harrison Jr. (Fred Hampton), Caitlin FitzGerald, Brady Jenness, Meghan Rafferty, Juliette Angelo, Brendan Burke, Tah von Allmen, Alan Metoskie, John Gawlik, Kevin O'Donnell, Gavin Haag, Alice Kremelberg, Tiffany Denise Hobbs, Steve Routman, Madison Nichols, John F. Carpenter, Larry Mitchell, Wayne Duvall, Mike Geraghty, Michael Brunlieb, etc. Duração: 129 minutos; Distribuição em Portugal: Netflix; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal (Netflix): 16 de Outubro de 2020.


segunda-feira, outubro 12, 2020

LISTEN, de ANA ROCHA



LISTEN ou OUVE-ME

“Ouve-me” ou “Listen”, conforme o filme se veja em Portugal ou em Inglaterra, é a obra de estreia de Ana Rocha que se estreou no Festival de Veneza, onde se portou verdadeiramente bem, arrebatando vários prémios, os oficiais Leão do Futuro e o Prémio Especial do Júri, na secção "Horizontes", e ainda os galardões paralelos Bisato d’Oro, Sorriso Diverso Veneza, Casa Wabi e HFPA.

Ana Rita Rocha de Sousa, de seu nome completo, nasceu em Lisboa, a 28 de Outubro de 1978. Estreia-se como actriz, muito nova, numa pequena participação no filme de João Botelho, “No Dia dos Meus Anos” (1991). Em televisão (RTP, TVI e SIC) apareceu em diversos trabalhos, como “Riscos”, “Jornalistas”, “Médico de Família”, “Alves dos Reis”, “A Raia dos Medos”, “A Senhora das Águas”, “Um Estranho em Casa”, “Sonhos Traídos”, “Morangos com Açúcar”, “Maiores de 20”, “Inspector Max”, “Mistura Fina” ou “Jura”. No teatro, entre outros espectáculos, integrou o elenco de “Sonho de uma Noite de Verão”, no Teatro Nacional D. Maria II, numa encenação de João Ricardo.


Entretanto, em simultâneo, Ana Rocha licenciou-se em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. A faceta de actriz nunca deixou de lhe interessar, mas aspirava a algo diferente. Emigrou para Inglaterra, para estudar cinema, na reputada London Film School, onde completou um mestrado em realização com orientação de Mike Leigh. Foi experimentando o olhar da câmara nalgumas curtas-metragens e documentários, entre os quais “Aqui e agora”, sobre Adriano Correia de Oliveira, “Quem nos Larga…”, “Laundriness”, “Minha Alma and You” ou “No Mar”. Foi ainda dedicando o seu tempo a concertos e vídeoclips de alguns cantores, como Sérgio Godinho, Maria João, Raquel Tavares, Xaile ou Aldina Duarte. Para quem nasceu em 1978, não se pode dizer que tenha andado a ver passar o tempo. A sua passagem por Londres foi decisiva na consolidação de uma carreira. Curiosamente, Portugal não tem sido muito dado a escolher a London Film School como escola de formação. Mas, quando o faz, veja-se o caso de Fernando Lopes, dá-se bem. Existe uma tradição de cinema social inglês, que vem desde os anos 30, com a escola documentarista¸ onde avultaram nomes como John Grierson, Basil Wright, Humphrey Jennings, Alberto Cavalcanti, Arthur Elton, Edgar Anstey, Stuart Legg, Paul Rotha e Harry Watt, entre outros. Outro momento alto do cinema realista social em Inglaterra acontece nos anos 60 do século passado, com o Free Cinema (muito ligado aos “Angry Young Men”), que revela autores como Lindsay Anderson, Karel Reisz, Tony Richardson ou Lorenza Mazzetti. Muito mais tarde, surge uma nova geração de cineastas que se interessa pelo retrato social de Inglaterra, com realizadores como Mike Leigh, Ken Loach, Shane Meadows, entre vários outros. Sintomaticamente para alguma crítica portuguesa, este tipo de cinema nunca mereceu os mesmos elogios que a Nouvelle Vague, por exemplo, sempre granjeou (justificadamente estes elogios, como seriam igualmente os dedicados ao cinema inglês).

Todo este preâmbulo para situar “Listen”, que se coloca abertamente na linha desta tradição de um certo realismo social britânico, o que fica ainda mais visível ao se saber que Mike Leigh foi um (bom) professor de Ana Rocha, que aproveitou bem as aulas, mantendo algo de profundamente essencial em matéria de professores e alunos: a independência e autonomia dos alunos perante os professores. A voz de Ana Rocha manteve-se intocável.

“Ouve-me” fala de uma família portuguesa a viver actualmente em Londres. Um casal e três filhos, a mãe a trabalhar a dias, o pai, agora desempregado, mas anteriormente empregado numa marcenaria, que lhe ficou a dever dinheiro. Os filhos vão desde um bebé de cerca de um ano, uma miúda de seis/sete anos, surda, e um jovem de doze anos. Como a miúda aparece com umas nódoas nas costas que sugerem ter sido agredida, a segurança social toma conta do assunto, retira as crianças aos pais, que não aceitam a separação e fazem tudo para reaver os filhos e regressarem com eles a Portugal. Esta base dramática permite uma descrição de ambientes sociais muito bem dada, mas permitiria igualmente um choradinho sem fim, o que Ana Rocha consegue evitar com mestria e muita segurança estilística. As imagens ganham sempre um distanciamento óbvio, um empenhamento humano discreto, uma compreensão das razões das diversas partes (nunca se infernizam as instituições inglesas que fazem o que têm a fazer o melhor possível). A realizadora afasta a emoção fácil, quer através de uma óptima direcção de actores, quer ainda pela introdução de imagens aparentemente desligadas da acção, pormenores de um cenário, de uma paisagem, etc. A própria fotografia, algo granulada, por vezes difusa, ajuda a este efeito. Depois o rigor na descrição dos cenários, o interior da casa do casal português, as salas das instituições, os exteriores, tudo é meticulosamente recuperado. 

Existe ainda um interessante problema de comunicação (ou de incomunicabilidade), dado que se trata de uma família portuguesa a residir em Londres. Os portugueses falam quase sempre entre si em português, mas têm de se relacionar com os ingleses. Para que este diálogo se estabeleça, não existem grandes dificuldades. Mas a filha do casal é surda, o aparelho auditivo está estragado, não há dinheiro para o reparar, ou substituir, o que levanta dificuldades de comunicação com os pais, com a escola, com os serviços sociais. É este o maior óbice para que os problemas se ultrapassem. Não por indiferença ou desinteresse dos agentes no terreno, mas possivelmente pela legislação desadequada.

Falemos, finalmente, da interpretação que é de qualidade invulgar: Lúcia Moniz é simplesmente brilhante, na forma como impõe a sua personagem. Ruben Garcia, no marido, vai muito bem, e as crianças são profundamente convincentes. Quantos aos ingleses, todos eles são impecáveis nas suas intervenções, mais ou menos curtas. 

Uma belíssima estreia na longa-metragem de ficção que se saúda com entusiasmo. O cinema português precisa de sangue novo e de olhares diferentes. Com talento. 

OUVE-ME

Título original: Listen

Realização: Ana Rocha De Sousa (Portugal, Inglaterra, 2020); Argumento: Paula Alvarez Vaccaro, Ana Rocha; Produção: Paula Alvarez Vaccaro, Rodrigo Areias, Aaron Brookner, Agustina Figueras, Lennard Ortmann; Música: Frederic Schindler; Fotografia (cor): Hatti Beanland; Montagem: Tomás Baltazar; Casting: Heather Basten; Design de produção: Belle Mundi; Decoração: Rose Konstam; Guarda-roupa: Belle Mundi, Filipa Fabrica; Maquilhagem: Amanda Goodfellow, Sara Menitra; Direcção de Produção: Palma Derzsi; Assistentes de realização: Gabriel Lippe, Laura Prast, Lina Remeikaite; Departamento de arte: Rebecca Clayden, Noah Demeuldre, George Graham, Stella Hadjidemetriou, Mihaela Marino, James Reading; Som: Nuno Bento, João Galvão, Pedro Góis, Pedro Marinho, Sérgio Silva, Roland Vajs; Efeitos visuais: Carlos Amaral; Companhias de produção: Bando à Parte, Pinball London; Intérpretes: Lúcia Moniz (Bela), Sophia Myles (Ann Payne), Ruben Garcia (Jota), Maisie Sly (Lu), James Felner, Kiran Sonia Sawar (Anjali), Sian Abrahams, Brian Bovell, António Capelo, Susanna Cappellaro, Kem Hassan, Geoffrey Kirkness, Jay Lycurgo, Ângela Pinto, Tara Quinn, Kiki Weeks, Lola Weeks, etc. Duração: 73 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 22 de Outubro de 2020.

sábado, outubro 10, 2020

RATCHED

 



 

RATCHED

Ratched é a enfermeira de “Voando Sobre um Ninho de Cucos”, filme de Milos Forman, estreado em 1975. Nessa altura a enfermeira Ratched era interpretada por Louise Fletcher que haveria de ganhar o Oscar de Melhor Actriz Secundária pelo seu extraordinário trabalho. O filme alcançaria ainda mais quatro estatuetas, Melhor Filme (Saul Zaentz e Michael Douglas), Melhor Realizador (Milos Forman), Melhor Actor (Jack Nicholson) e Melhor Argumento Adaptado (Lawrence Hauben e Bo Goldman). Além de outras nomeações para Melhor Actor Secundário (Brad Dourif), Melhor Fotografia (Haskell Wexler e Bill Butler), Melhor Montagem (Richard Chew, Lynzee Klingman e Sheldon Kahn) e Melhor Partitura Musical (Jack Nitzsche). Obra grande que deixou marcas e não esquece. 

Ryan Murphy (o criador de “American Horror Story”, entre outros trabalhos) e Evan Romansky resolveram pegar nesta personagem e inventarem-lhe um período anterior à sua chegada ao hospício que a tornaria célebre. “Ratched”, a série de que se conhecem já os primeiros oito episódios da primeira temporada, vai descobrir esta ambiciosa e traumatizada criatura anos antes de se cruzar com R.P. McMurphy e seus companheiros de asilo psiquiátrico, em “One Flew Over the Cuckoo's Nest”. A série é magnificamente realizada, fotografada, interpretada, com uma direcção artística absolutamente notável. Digamos que “Ratched” inventa o paraíso na terra (em cenários exteriores e em interiores de um bom gosto impressionante e um guarda roupa belíssimo) e depois povoa-o com um conjunto invulgar de monstros para todos os gostos e feitios. Violência e tortura (física e psicológica) chegam a ser insuportáveis. Uma grande série para quem conseguir aguentar (o que não é fácil). Uma série que nos retira qualquer tipo de esperança na natureza humana. Será este um bom ponto de partida? Mas a qualidade do trabalho é absolutamente inquestionável.

RATCHED – Série de TV - Netflix

Criadores: Ryan Murphy, Evan Romansky (EUA, 2020, 8 episódios; 2021, 10 episódios, a estrear); Realização: Ryan Murphy, Michael Uppendahl, Nelson Cragg, Jennifer Lynch, Daniel Minahan, Jessica Yu;  Argumento: Ken Kesey, Ryan Murphy, Evan Romansky, Ian Brennan, Jennifer Salt; Produção: Ian Brennan, Michael Douglas, Jacob Epstein, Aleen  Keshishian, Alexis Martin Woodall, Tim Minear, Ryan Murphy, Margaret Riley, Evan Romansky, Jennifer Salt, Paul Zaentz, Eryn Krueger Mekash, Robert Mitas, Sarah Paulson, Tanase Popa, Lou Eyrich, Eric Kovtun, Todd Nenninger, Sara Stelwagen; Intérpretes: Sarah Paulson (enfermeira Mildred Ratched), Finn Wittrock (Edmund Tolleson), Cynthia Nixon (Gwendolyn), Judy Davis (enfermeira Betsy Bucket), Jon Jon Briones (Dr. Richard Hanover), Charlie Carver (Huck Finnigan), Sharon Stone (Lenore Osgood), Amanda Plummer (Louise), Alice Englert (enfermeira Dolly), Vincent D'Onofrio (Governador George Wilburn), Jermaine Williams (Harold), Brandon Flynn (Henry Osgood), Alfred Rubin Thompson  (Albert Alton), Sophie Okonedo (Charlotte Wells), Corey Stoll (Charles Wainwright), Annie Starke (Lily Cartwright),  Rosanna Arquette (Anna), etc. Duração de cada episódio: entre 45 e 50 minutos; Em exibição na Netflix.


quarta-feira, fevereiro 12, 2020

TEATRO: A PEÇA QUE DÁ PARA O TORTO




A PEÇA QUE DÁ PARA O TORTO

Hoje é dia de estreia de “A Peça Que Dá Para o Torto”, no original “The Play That Goes Wrong”. É um texto dos ingleses Henry Lewis, Jonathan Sayer e Henry Shields, que se encontra em exibição em Londres, há mais de cinco anos, numa produção da Mischief Theatre Company, com encenação de Hannah Sharkey. Grande sucesso de público e de crítica, com emigração para os palcos de mais de trinta países, e muitos prémios arrecadados, quer em Inglaterra como por outras latitudes.
A versão que vamos ver em Lisboa é o que se chama uma "replica show". O que significa que a UAU, empresa produtora portuguesa, adquiriu "os direitos todos da peça, não só do texto, mas também do cenário, da luz, da música, de tudo". Uma encenadora britânica, Hannah Sharkey, tem estado em Lisboa, para assegurar que tudo corra como acontece em palcos ingleses, mas a tradução para português, com algumas indispensáveis adaptações, é de Nuno Markl, e, neste contexto,  surge igualmente a figura do encenador residente, Frederico Corado, que divide responsabilidades locais com os demais responsáveis (só para que conste, é meu filho, para assim ficar assegurado desde já algum possível conflito de interesses).
A obra é muito divertida, bem construída, sólida peça de carpintaria (não é um eufemismo, como veremos mais adiante), não pactua com a estupidez tatas vezes reinante neste tipo de produção, afirmando-se pelo contrário como obra inteligente e de humor crítico e sensível. É realmente um vendaval de gargalhadas, mas não vazio de sentido e inócuo.
Antes de mais, trata-se de uma peça no interior de uma peça. Uma peça inglesa, tipicamente british, encenada pelo núcleo de Teatro da Sociedade Recreativa e Cultural do Sobralinho. Logo de início o encenador coloca os pontos nos ii. A Sociedade tem tido muitas dificuldades para levar a cena algumas produções, sobretudo por falta de meios. A versão de Os Miseráveis passou a O Miserável, a Branca de Neve passou a ser acompanhada unicamente pelo Matulão, à falta de sete anões, de Tennesse Williams apresentaram O Triciclo Chamado Desejo (e depois tiveram ainda que actualizar: O Skate Chamado Desejo).
A peça que hoje levam a cena é uma produção de estilo policial, “Crime na Mansão Haversham”, que começa logo com o aparecimento de um cadáver estendido no meio de um cenário de um certo mau gosto britânico, uma velha mansão, como tantas outras que surgem no teatro e no cinema provindos daquela ilha que recentemente se afastou da EU. Não se trata tanto de uma paródia ao estilo de Agatha Christie, mas sim às medíocres réplicas desta escritora, que por aí proliferam.
Depois as investigações em relação àquela morte iniciam-se. Surgem sete pessoas naquela sala de estar com cheiro a velório: o irmão do morto, a noiva do morto, o irmão da noiva (por sinal brasileiro), o mordomo (não podia faltar), um inspector (está lá fora o inspector!) e ainda há mais alguns intervenientes como a contrarregra ou aderecista e ponto, e o técnico de som, irritadíssimo porque lhe roubaram um CD dos Duran Duran. Além disso, perdeu-se um cão, de que só sobrou a trela…
Primeiro aspecto a ressalvar neste contexto: a peça agarra nalguns estereótipos do policial e mesmo do romance negro e parodia-os com imensa graça. O morto, o mordomo, o inspector, a femme fatale que não resiste a nenhum macho, os suspeitos, tudo é posto em causa, assim como cada adereço, cada puxador de porta, cada vidro de janela, cada quadro, cada lareira (há só uma!), cada praticável. Nada está no sítio certo nem na hora exacta. O que potencia a hecatombe, de desgraça em desgraça até ao terramoto final.



A peça é bastante bem representada, por um elenco muito jovem, mas globalmente talentoso, mas esta não é uma representação vulgar. Todos têm de apresentar alguns resquícios de acrobatas, tal o empenhamento físico que a peça exige aos seus intervenientes. Se a construção do cenário e a colocação dos adereços pressupõe um trabalho minucioso, de relojoeiro, em que todos os elementos têm de estar no seu local determinado ao segundo exigido, o facto deste cenário já vir importado de Londres (via Espanha) ajudou em muito. Mas o elenco português teve de se adaptar a este cenário maquiavélico que impõe um ritmo endemoniado e uma certa destreza corporal. A Inês Castelo-Branco a ser retirada “desmaiada” por uma janela não é para qualquer uma, nem o Miguel Thiré a equilibrar-se com três móveis é para todos (e não digo mais, quem for ver avaliará). Mas todos os actores passam as passas do Algarve nesta comédia de slapstick, muito na linha de alguns grandes cómicos como Keaton, Chaplin ou Lloyd.
Segundo aspecto a sublinhar. Não sei se conscientemente se não, esta peça assume um papel pedagógico muito interessante. Pretende ser objectivamente uma representação realista ou naturalista e acaba por evoluir para um simbolismo, um non sense minimalista. Tal como Picasso que era um pintor realista notável ainda muito jovem, e depois foi evoluindo para o cubismo e até para a abstração, o mesmo acontece nesta peça. Um exemplo. Quando procuram retirar o cadáver da sala de estar, vão buscar uma padiola e colocam nela o corpo. Mas o pano cede, o corpo cai, os transportadores não se dão por vencidos e continuam a transportar a padiola, agora só as pegas de madeira. Mais tarde já mimam o transporte do corpo só com as mãos. A cena vai evoluindo do realismo para o simbolismo mais minimalista, um pouco uma das vias do teatro moderno.
Mais. Existe uma femme fatale (obviamente a Inês Castelo-Branco) que veste vermelho, como se esperaria. As tantas ela desaparece e a contrarregra surge a substituí-la apenas com o vestido vermelho sobre a jardineira. Buñuel realizou um filme com duas actrizes a interpretar o mesmo papel. O público na peça teatral compreende a substituição, assim como a entende mais tarde quando será um homem a aparecer neste papel.
“A Peça Que Dá Para o Torto” não só desconstrói os estereótipos do policial, como vai mais longe e deixa perceber o mecanismo da identificação num espectáculo teatral que não necessita do realismo para tornar evidente certas propostas. Por tudo isso um belo espectáculo que ainda bem que, neste caso, deu para o torto.
Prémio Olivier para Melhor Comédia Nova em Inglaterra, “The Play That Goes Wrong” tem um elenco globalmente muito eficaz, composto por Alexandre Carvalho, Cristóvão Campos, Igor Regalla, Telmo Mendes, Inês Castel-Branco, Joana Pais de Brito, Miguel Thiré e Telmo Ramalho. Sem querer menosprezar ninguém, devo sublinhar o trabalho destes quatro últimos.
Em cena a partir de hoje, no Auditório dos Oceanos, do Casino de Lisboa, tem estadia prevista até Junho.



domingo, fevereiro 09, 2020

OSCARS 2020 - PREVISÕES


OSCARS 2020 - PREVISÕES

Digam o que disserem, este ano de 2019, que agora se premeia, foi um excelente ano de cinema. Muitos e bons filmes, excelentes realizadores, magníficos intérpretes, como há muito se não via. São tantos os candidatos que há nomeados para todos os gostos e, apesar de haver como sempre favoritos, se houver surpresas, estas não serão "surpreendentes".  
Depois, o cinema nunca mais será como foi até aqui, com a confirmação em grande do streaming. A Netflix, e congéneres, vieram alterar por completo o sistema de exploração cinematográfica. O cinema, que está cada vez mais a ser consumido por crianças e adultos acriançados, ou altera os seus objectivos (e parece que já começou) ou vai descobrir-se a correr numa pista isolada, com o grande público adulto a ficar em casa a ver o que canais de TV e de streaming lhe oferecem. 
Quanto às previsões sobre os Oscars de 2020, elas aqui fica, com uma ressalva: por vezes não indicam os títulos que eu pessoalmente premiaria, mas assim aqueles que julgo virem a ser as escolhas dos membros da Academia de Hollywood. 
Entre os nomeados, os assinalados com uma cruz são os potenciais vencedores. Boa sorte!    


sábado, fevereiro 01, 2020

OS FILMES DOS OSCARS DE 2019 (5) JOKER



JOKER

Até hoje Gotham City apareceu no cinema sob o domínio de Batman, o justiceiro que lutava contra o Mal, encarnado pela figura do Joker. Batman tentava impor a ordem numa cidade dominada pela violência, a corrupção e todos os demais males do mundo. Batman era uma derivação de Superman, que tranquilizava os cidadãos que ficavam a saber, no final de cada filme, que há sempre um herói, com superpoderes ou não, que vela pela tranquilidade pública. Sabia-se a história de Batman, donde vinha e porque se dava ao trabalho de lutar pelo Bem, numa sociedade tão corrompida, enquanto do Joker tínhamos retratos por vezes inesquecíveis, trabalhados por actores de invulgar talento, conhecíamos as suas maldades, as vilanias, o riso convulsivo, as excentricidades, a indumentária de palhaço, o rosto maquilhado de clown, mas desconhecia-se tudo o mais. Qual o seu passado, o que o levaria a tamanhas façanhas de uma tão diabólica maldade? Todd Phillips vem alterar este injusto estado de coisas, dedicando uma obra inteiramente a o Joker.
Mas quem é este Todd Phillips? Pois só comecei a dar por ele em 2009, quando vi, por acaso, “A Ressaca”. Antes já tinha feito umas comédias que recuperei depois, mas nada de muito especial: 2000: “Road Trip - Sem Regras”; 2003: “Dias de Loucura”; 2004: “Starsky & Hutch” ou 2006: “Escola para Totós”. A comédia norte-americana destes tempos só raramente me divertia e muitas vezes lamentava o tempo perdido. “A Ressaca” foi uma revelação muito agradável. Bem realizada e escrita (pelo mesmo Todd Phillips), muito bem interpretada por um grupo de actores até aí não muito conhecidos, diria que o filme revelava o realizador a ter em conta e a seguir com atenção. O sucesso internacional de “A Ressaca” obrigou a outros desenvolvimentos na mesma área; A Ressaca II (2011), “A Ressaca III” (2013) e duas outras incursões pelo mesmo género, “A Tempo e Horas (2010) e “Os Traficantes” (2016).
De repente, uma mudança abismal. Em 2019, Todd Phillips muda radicalmente de registo e deixa de tentar a comédia e opta por uma biografia (dramática) do Joker. Esperemos que se tenha ganho um grande realizador. “Joker” é uma obra-prima. Como parece que o cineasta é dado a chorrilhos, anuncia para próximo projecto uma biografia de Hulk/Hogan.
Já me perguntaram se “Joker” é um filme particularmente violento. Creio que, apesar de algumas cenas violentas, um pouco na linha de “A Laranja Mecânica”, a obra não se define pela sua violência física, mas sim pela sua violência psicológica. Há muito que um filme não me angustiava tanto, após a sua visão. “Joker” é uma terrível visão da nossa sociedade, destas cidades onde vivemos um dia a dia cada vez mais egoísta, cada vez mais violento, cada vez mais corrupto, cada vez mais degenerado. Uma sociedade que afasta os pobres e os necessitados, que só olha para o lucro imediato, que depois de ter atingido (nos países mais avançados) um certo nível de bem-estar, o vai delapidando alegremente, para que os ricos sejam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.  
Em Gotham City, cidade que nunca esteve tão próxima de Nova Iorque, se bem que em todos os filmes anteriores de Batman todos tenham percebido que se falava de uma Nova Iorque mais ou menos fantasiada, um rapazinho esquelético, que trabalha como palhaço, e sofre de uma estranha doença que o leva a ter ataques de riso incontroláveis (anda mesmo com um cartão para mostrar aos estranhos que se trata de uma doença e não de falta de respeito), vive com a mãe, entrevada, de quem cuida desveladamente. Visita uma assistente social que o acompanha até ao dia em que o serviço é dado como inútil, a assistente social despedida, e ele fica mesmo sem os medicamentos que o estabilizavam. Depois é um encadeado de situações traumáticas, todas elas muito previsíveis, que transformam o cidadão Arthur Fleck no Joker. Um inocente palhaço que anda pelas ruas da metrópole a anunciar saldos que, aparentemente num passe de magia (mas sem magia nenhuma), se transmuda num temível vingador que subleva a cidade e faz justiça pelas próprias mãos, no que é apoiado por toda a “escumalha” que nele se revê e o transforma em símbolo de uma rebelião.
Assim se percebe, sem demagogias simplistas, como o Mal nasce do próprio Mal, como as circunstâncias sociais, políticas, educacionais, o próprio entretenimento televisivo, criam os monstros; como as sociedades desapiedadas acabam por ver revertidas sobre si próprias as consequências do seu egoísmo. O clima de “Joker” é angustiante de princípio ao fim, indo-se adensando à medida que pequenos e grandes acontecimentos, ou segredos, se vão revelando. A criação dos ambientes é notável: uma cidade intransitável, ruas e becos atravancados de lixo, uma chuva impiedosa, as cores berrantes dos néons, os cartazes da publicidade, os interiores esquálidos, os quartos miseráveis, a sala da agência dos palhaços, os corredores solitários, as carruagens do metropolitano, o estúdio de televisão, com uma realidade forjada, as mansões dos ricos e poderosos, as salas de espectáculos…
O argumento é extremamente inteligente, bem escrito, desenvolvidos, criando personagens que vão marcar a história do cinema. O Joker de Joaquin Phoenix é absolutamente magistral. O seu trabalho é invulgarmente bem conseguido, de antologia. Há um lado mais visível que é brilhante, o jogo do corpo, o lado histriónico, quando dos ataques de riso, tudo isso é de sublinhar. Mas o que me prende é o mais secreto, a forma como o rosto, os olhos reagem em certas situações, os gestos suspensos, as contradições interiores que o actor deixa antever com uma subtileza invulgar, uma maestria total. Pena tenho eu de Banderas, DeNiro ou Adam Driver que este ano têm interpretações notáveis e não vão ter hipótese de competir com Phoenix. O Oscar está entregue!
De resto, o filme está nomeado para 11 Oscars, e certamente vai regressar a casa com várias estatuetas. Não será o Melhor Filme do Ano, nem o Melhor Realizador, que há concorrentes fortíssimos (ainda que se ganhar algum destes prémios não vinha daí mal nenhum ao mundo), Joaquin Phoenix é definitivamente o Melhor Actor, o Melhor Argumento Adaptado, a Melhor Fotografia, a Melhor Montagem, a Melhor Partitura Musical Original, a Melhor Maquilhagem, o Melhor Guarda-roupa, o Melhor Som e a Melhor Mistura Sonora são hipóteses com muitas probabilidades.
Aqui está um ano como há muito se não via em Hollywood. Vários filmes excelentes acotovelando-se para chegar às estatuetas.


JOKER
Título original: Joker
Realização: Todd Phillips (EUA, 2019); Argumento: Todd Phillips, Scott Silver, baseados em personagens de bd criados por Bob Kane, Bill Finger, Jerry Robinson;  Produção: Richard Baratta, Bruce Berman, Jason Cloth, Bradley Cooper, Joseph Garner, Aaron L. Gilbert, Walter Hamada, Anjay Nagpal, Todd Phillips, Emma Tillinger Koskoff, Michael E. Uslan, David Webb; Música: Hildur Guðnadóttir; Fotografia (cor): Lawrence Sher; Montagem: Jeff Groth; Casting: Shayna Markowitz; Design de produção: Mark Friedberg; Direcção artística: Laura Ballinger; Decoração: Kris Moran; Guarda-roupa: Mark Bridges; Maquilhagem: Vanessa Anderson, Mitchell Beck, Sunday Englis, Kay Georgiou, Nicki Ledermann, Jerry Popolis, Tania Ribalow, Kim Taylor, Carla White, etc. Direcção de Produção: Lisa Dennis, Carla Raij, Fady Hadid, Mark Scoon; Assistentes de realização: Ryan Robert Howard, Felix Jordan, Jeremy Marks, David Webb, etc. Departamento de arte: Joseph S. Alfieri, Nara DeMuro, Mariella Navarro, Michael Scarola, Miccah Underwood, etc.; Som: Tony Crowe, Michael Dressel, Alan Robert Murray, Tom Ozanich, Kira Roessler, etc. Efeitos especiais: Jeff Brink, Doug Facciponti, Corinne Fortunato, Cleo Camp, Joseph Sacco; Efeitos visuais: Ankita Agrawal, Karina Benesh, Patrice Cormier, Mathew Giampa, Allie Glisch, Bryan Godwin, Edwin Rivera, Carolyn Shea, Kin Yiu, Nigel Cyril, Kristen Drewski, etc.  Companhias de produção: Warner Bros., Village Roadshow Pictures, BRON Studios, Joint Effort, DC Comics, Creative Wealth Media Finance;  Intérpretes: Joaquin Phoenix (Arthur Fleck/ Joker), Robert De Niro (Murray Franklin), Zazie Beetz (Sophie Dumond), Frances Conroy (Penny Fleck), Brett Cullen (Thomas Wayne), Shea Whigham (Detective Burke), Bill Camp (Detective Garrity), Glenn Fleshler (Randall), Leigh Gill (Gary), Josh Pais (Hoyt Vaughn), Rocco Luna, Marc Maron, Sondra James, Murphy Guyer, Douglas Hodge, Dante Pereira-Olson, Carrie Louise Putrello, Sharon Washington, Hannah Gross, Frank Wood, Brian Tyree Henry, April Grace, Mick Szal, Carl Lundstedt, Michael Benz, etc. Duração: 122 minutos; Distribuição em Portugal: Warner Bros.; Classificação etária: M/ 14 anos; Data de estreia em Portugal: 3 de Outubro de 2019.

quinta-feira, janeiro 23, 2020

TEATRO: MÁRIO




 MÁRIO: “EU QUERO SER BAILARINA”


"Mário", peça de teatro que fez furor em 2019 e regressou ao palco do Cinema São Jorge neste Janeiro de 2020, fala de um rapaz que desde novo queria ser “bailarina”. Escrita e encenada por Fernando Heitor, baseia-se em factos reais, retirados de um texto de São José Almeida (O Público, 17 de Julho de 2007), onde se dava conta das aventuras, e sobretudo desventras, de Valentim de Barros, nascido em 1916, e que muito novo começou a aprender dança, tendo fugido de casa da família na Cova do Vapor, na outra banda, para pernoitar em Lisboa, ao lado de prostitutas e marinheiros. Desta história “real”, Fernando Heitor voou para a de Mário, que passa de mão em mão, de padres para coronéis, de marinheiros para senhores bem instalados na sociedade, viaja por Paris, Argentina, Brasil, até regressar a Portugal, em pleno Estado Novo. Vestido de mulher, com gostava de andar, é preso, internado num hospício, tratado da sua “doença” com choques elétricos. O resto adivinha-se na peça…
Obra para um actor só, Flávio Gil tem uma interpretação brutal neste monólogo intenso e poético, erguendo uma personagem difícil de esquecer. O espectáculo tem pouco mais do que uma hora de duração, mas o esforço exigido a Flávio Gil é impressionante, pelo desdobrar de registos, pela dureza física, pela elegância e ductilidade dos movimentos. A peça é muito bem escrita, com uma linguagem vigorosa por vezes, mas sempre de um intimismo dilacerante, a  encenação é discreta, sem grandes artifícios, para lá da presença do actor e de meia dúzia de adereços que este vai vestindo, sugerindo situações diversas. O palco apresenta-se despido de cenários, e é neste ambiente minimalista que explode o drama e o talento de um intérprete que desde já se coloca entre os maiores portugueses da actualidade.
Aproximando-se a época dos prémios relativos a 2019, “Mário” estará certamente entre os Melhores Espectáculos e Flávio Gil entre os Melhores Actores.  

sábado, janeiro 18, 2020

AUTO DE FLORIPES (1959)




AUTO DE FLORIPES (1959)


Hoje, numa das salas da Cinemateca Portuguesa, foi projectado, em cópia nova, restaurada, “Auto de Floripes”, um filme rodado em 1959, estreado só alguns anos depois, e por fases. Esta sessão serviu ainda para dar início às celebrações dos 75 anos do Cine Clube do Porto, entidade que então produzira e realizara este documentário que, ainda hoje, se mostra um bom exemplo de cinema etnográfico. É sabido que os cine clubes portugueses tiveram um importante papel durante toda a época do Estado Novo, promovendo a cultura cinematográfica, difundindo obras essenciais, estimulando o associativismo, mantendo vivo um espírito critico contra a ditadura. Nesse particular, o Cine Clube do Porto, cremos que o mais antigo ainda em funcionamento no nosso país (fundado em 1945), manteve uma actividade intensa e invulgar a vários níveis. É de toda a justiça salientar o trabalho e a inteligência de um dos seus sócios fundadores, Henrique Alves Costa, por sinal o grande impulsionador deste projecto cinematográfico que agora regressa ao convívio com o público (anuncia-se o lançamento em DVD), e que, na altura da sua estreia, surgiu sem ficha técnica, afirmando-se como obra colectiva e quase anónima.
“Auto de Floripes” oferece um retrato do Lugar das Neves, “uma convergência de três freguesias pertencentes ao concelho de Viana do Castelo: Barroselas, Mujães e Vila de Punhe”, onde, a 5 de Agosto de cada ano, se realiza uma representação popular, integrada no programa das Festas da Senhora das Neves, que é “um drama de cariz guerreiro que se insere no “Ciclo Carolíngio”, por se inspirar na segunda parte do livro “História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França”. De um lado os turcos, do outro os cristãos, comandados por Carlos Magno, embrenhando-se em lutas que passam pelo teatro, a dança, o canto, a pantomima, até se chegar à conversão dos infiéis e à grande cegarrega final, com Ferrabrás catolicizado e a bela Floripes, sua irmã, bem encaminhada. 
De um ponto de vista etnográfico é um documento inestimável, de uma qualidade cinematográfica muito significativa. Atenção, portanto, ao lançamento da obra em DVD. Será ainda muito interessante analisar, lado a lado, este Auto de Floripes e o “Acto da Primavera”, de Manoel de Oliveira, dada as relações obvias que se estabelecem entre ambos, e ainda os laços de amizade que uniam Henrique Alves Costa, Manoel de Oliveira e José Régio.  
Curiosamente, já vi também uma belíssima representação popular de “O Auto de Floripes na ilha do Príncipe” (há muitos anos, nos jardins da Fundação Gulbenkian, com uma embaixada teatral de São Tomé e Príncipe), obedecendo mais ou menos às mesmas características, com lutas entre cristão e mouros, certamente uma derivação africana das representações minhotas. Em superprodução! 
Com periodicidade anual, a 15 de Agosto, este Auto tem por palco a cidade de Santo António, na ilha do Príncipe, sendo o prato forte das festas populares de S. Lourenço, as mais importantes da ilha. Desta representação existe um documentário, “Floripes, o Auto de Floripes na Ilha do Príncipe” da autoria de Afonso Alves (1998).
Em 2007, o realizador Miguel Gonçalves Mendes estreia "Floripes", baseado na lenda de uma moura encantada que deambula à noite pela vila de Olhão, seduzindo os homens. Nada a ver?

sábado, dezembro 28, 2019

OS FILMES DOS OSCARS DE 2019 (4) ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD




ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD


Quentin Tarantino não é um cineasta consensual e talvez essa seja uma das suas virtudes. Não é dos autores que conseguem unanimidades e deixam todos mais ou menos satisfeitos. Tarantino é provocador e por vezes irritantemente controverso. Um filme seu, salvo raras excepções, nunca convence toda a gente, uns adoram, outros detestam, e há os que passam por ele hesitantes, mas nunca indiferentes. Raras vezes me aconteceu, até hoje, ver um filme duas vezes em dias seguidos (alguns já vi mais de 40 ou 50 vezes, mas com grandes intervalos). Aconteceu agora com “Era uma vez em Hollywood”. Por que razão?
Obviamente que achei logo na primeira visão que se tratava de um filme extremamente bem realizado, sensível à luz e à simbologia de Hollywood, magnificamente interpretado, recuperando com eficácia e, mais do que isso, com emoção, a Hollywood de final dos anos 60, precisamente do ano de 1969, ano em que aconteceu o massacre em casa de Roman Polanski e Sharon Tate, mas também, um ano e uma década de anuncia a morte de uma certa imagem de Hollywood e do cinema norte-americano.
Não foi, portanto, a qualidade da obra que me fez revisitá-la, mas sim por um lado o fascínio por esse mundo mítico do cinema e, por outro lado, uma certa mitologia cinematográfica que tem muito a ver com o universo pessoal do realizador: o mundo da “pulp fiction” (que deu o nome a uma das suas obras mais conhecidas e mais perfeitas), que tem os seus aspectos interessantes, e alguns outros altamente contestáveis. Tarantino gosta de enfatizar as qualidades de algumas dessas obras e certos actores e realizadores. O que não deixa de ser discutível no mínimo.
Compreende-se que, sendo Tarantino nos anos 60, um adolescente apaixonado pelo cinema e pela televisão, hoje tenha uma certa nostalgia por alguns desses produtos que consumia com entusiasmo. Mas já seria altura para destrinçar entre as séries de culto da televisão desses anos e as obras de Welles, Renoir, Hitchcock, Misoguchi, Buñuel ou Visconti. Nem Sergio Sollima, por muito interessante que possam ser alguns dos seus westerns spaghettis, se pode comparar a esse naipe de cineastas atrás referidos.
Depois há no filme uma mescla de factos e personagens reais e outros ficcionados que desorientam objectivamente o espectador. Aqui a razão está com Tarantino que se serve habilmente desta liberdade criativa. Temos assim em simultâneo uma Hollywood que existe, que se sente bem próxima (a recriação é magnifica sob todos os pontos de vista, desde os exteriores naturais até ao guarda-roupa, aos adereços), e uma outra que não tem existência própria que vive apenas da imaginação de Tarantino, ainda que suportada por modelos, esses sim existentes e reais.  Por exemplo, o protagonista, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), vedeta de séries de televisão, é uma criação do argumentista, se bem que moldada sobre Burt Reynold, este sim de existência real (era para surgir no filme, como convidado especial, mas faleceu sem o ter conseguido). Rick Dalton era cartaz em séries de western e de espionagem, e em finais de 90, está a viver um período menos brilhante da sua carreira, numa altura em que, pelo contrário, se procurava impor no mundo do cinema. Em Hollywood as hipóteses são poucas, mas um produtor amigo, Marvin Schwarz (um fabuloso Al Pacino), recomenda-lhe uma viagem até Itália, para filmar com “o segundo melhor realizador de westerns spaghettis, Sergio Sollima”. Sem grande vontade, Rick Dalton lá segue o conselho, regressa casado com uma “ragazza”, e com poucas hipóteses de manter Cliff Booth (Brad Pitt) como seu duplo e motorista privado, além de ser o seu melhor amigo e confidente privilegiado. O filme vive muito desta relação de amizade e lealdade que existe entre ambos.
Entre a verdade e a ficção, está igualmente o caso Sharon Tate (aqui interpretada por Margot Robbie), de que tanto se fala acerca dele em “Once Upon a Time in Hollywood”, e que afinal passa ao lado do filme. Rick Dalton é vizinho do casal Polanski e será a sua casa a assaltada pelos discípulos de Charles Manson que de lá saem esturricados, desenlace bem diverso do que aconteceu na realidade em Cielo Drive, na fatídica noite de 9 de Agosto de 1969. Tarantino poupa Tate e amigos à sua cruel sorte neste filme.
Cinquenta anos depois, Tarantino recorda Hollywood dos seus anos de menino (tinha sete anos em 1969), relembra a morte de uma certa ideia de cinema, e o aparecimento de uma nova geração de cineastas que criaram a Nova Hollywood, com nomes com Spielberg, Copolla, Scorsese, Lucas, entre alguns mais. Tarantino filma a sua nostalgia desses dias, capta a luz dourada dessa mítica capital de sonhos (que transforma pesadelos em sonhos, ainda hoje: “Once Upon a Time in Hollywood” é um exemplo acabado dessa mensagem, o massacre em casa de Sharon tate não acontece e os idiotas dos hippies são confrontados com o lança chamas de Rick Dalton que ele guardara num armazém e “ainda funciona” e de que maneira!), vagueia de carro pelas avenidas emolduradas de cinemas e néons que ostentam cartazes de filmes desse ano (e de outros, como nos mostra o magnifico plano das hippies da família Manson passando em frente a um monumental cartaz de “O Gigante”), penetra nos estúdios e leva-nos a assistir a algumas rodagens (outro excelente plano, um painel é lateralmente deslocado num estúdio, deixando ver o que se passa por detrás), dando tempo para ainda nos cruzarmos com algumas personagens lendárias, para lá de Sharon Tate e Roman Polanski, Bruce Lee, Steve McQueen, Sam Wanamaker, George Spahn, Charles Manson ou Jay Sebring, entre outros. Nenhum sob a aparência real, mas interpretados por actores.
Resumindo, após segunda visão, uma bela viagem pela Hollywood de outras eras, pelo fascínio dessa fábrica de sonhos, numa cuidada e esmerada reconstituição de tempo e local, com uma realização emocionada e uma interpretação excelente (para lá de todos os outros, atenção especial a uma miúda que vai longe, Margaret Qualley, a Pussycat), devendo ainda sublinhar-se a fotografia, a banda sonora musical (com êxitos daqueles anos, fazendo recordar um pouco “American Graffiti”, de Lucas) e a montagem. Um bom concorrente aos prémios que se avizinham. Em diversas categorias.


ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD
Título original: Once Upon a Time... in Hollywood
Realização: Quentin Tarantino (EUA, 2019); Argumento: Quentin Tarantino; Produção: Tina Anderson, Jeffrey Chan, William Paul Clark, David Heyman, Georgia Kacandes, Shannon McIntosh, Daren Metropoulos, Quentin Tarantino, Dong Yu; Música: Mary Ramos (supervisor); Fotografia (cor): Robert Richardson; Montagem: Fred Raskin; Casting: Victoria Thomas; Design de produção: Barbara Ling; Direcção artística: Tristan Paris Bourne, John Dexter, Richard L. Johnson, Eric Sundahl, Jann K. Engel; Decoração: Nancy Haigh; Guarda-roupa: Arianne Phillips; Maquilhagem: Trish Almeida, Karen Bartek, Stephen Bettles, Jean Ann Black, Kathryn Blondell, Laura Caponera, Diana Choi, Seana Gorlick, Sian Grigg, Carey Jones, Greg Nicotero, Anna Quinn, Janine Rath, Kristen Saia, Heba Thorisdottir, Nicole Venables, Kevin Westmore, Jennifer Zide; Direcção de Produção: Georgia Kacandes, Nathan Kelly, Jason Zorigian; Assistentes de realização: Deborah Chung, William Paul Clark, Mohmmad Yunus Ismail, Brendan Lee, Christopher T. Sadler; Departamento de arte: Richard K. Buoen, Susannah Carradine, Tina Charad, Lisa M. Kittredge-Rodriguez, Vanessa Riegel, Jessica Ripka, Chris Snyder, etc. Som: Harry Cohen, Tom Hartig, Gary A. Hecker, Michael Hertlein, Sylvain Lasseur, etc; Efeitos especiais: Jeremy Hays; Efeitos visuais: Andrew Kalicki, Michael Perdew, Kevin Souls, Raphael A. Pimentel, Chaz Pizani, Eddie Porter; Companhias de produção:Columbia Pictures, Bona Film Group, Heyday Films; Intérpretes: Leonardo DiCaprio (Rick Dalton), Brad Pitt (Cliff Booth), Margot Robbie (Sharon Tate), Emile Hirsch (Jay Sebring), Margaret Qualley (Pussycat), Al Pacino (Marvin Schwarz), Timothy Olyphant (James Stacy), Julia Butters (Trudi Fraser), Austin Butler (Tex Watson), Dakota Fanning (Squeaky Fromme), Bruce Dern (George Spahn), Mike Moh (Bruce Lee), Luke Perry (Wayne Maunder), Damian Lewis (Steve McQueen), Nicholas Hammond (Sam Wanamaker), Samantha Robinson (Abigail Folger), Rafal Zawierucha (Roman Polanski), Lorenza Izzo (Francesca Capucci), Costa Ronin, Damon Herriman, Lena Dunham, Madisen Beaty, Mikey Madison, James Landry Hébert, Maya Hawke, Victoria Pedretti, Sydney Sweeney, Harley Quinn Smith, Marco Rodríguez, Ramón Franco, Clu Gulager, Kurt Russell, Zoë Bell, Michael Madsen, Tim Roth, Brenda Vaccaro,  etc. Duração: 161 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 16 anos; Data de estreia em Portugal: 15 de Agosto de 2019.