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segunda-feira, dezembro 15, 2014

CINEMA: MAPAS PARA AS ESTRELAS


MAPAS PARA AS ESTRELAS

Filmes sobre Hollywood há muitos, desde comédias musicais como “Singing in the Rain” até sátiras verrinosas como “SOB”, “Boogie Nights” ou “The Player”, desde dramas como “Sunset Boulevard”, “A Star is Born”, “Gods and Monsters”, “Stardust Memories”, “The Bad and the Beautiful” ou “Two Weeks in Another Town”, a  alguns nostálgicos, como “The Purple Rose of Cairo”, “The Last Picture Show” ou “Hugo”, não esquecendo evocações biográficas, como “Ed Wood” ou “Shadow of the Vampire”. Mas raras vezes se viu um filme tão amargo, tão violentamente desencantado como “Maps to the Stars”. Depois de nos mostrar em “Cosmopolis” a desagregação de uma sociedade assente numa economia de lucro fácil que tende ao suicídio, Cronenberg retrata agora a mesma sociedade, mas sob o prisma da Meca dos sonhos, num “mapa de estrelas” de onde está ausente qualquer glamour. Hollywood não é mais a fábrica de sonhos de que se falava outrora, mas tão somente uma cidade, não de anjos, mas de demónios, uma espécie de família disfuncional, onde todos olham para o poder, a glória, o sucesso, o dinheiro, esquecendo tudo o mais.
“Mapas para as Estrelas” é, por isso mesmo, extremamente desagradável de ver. Chega a ser quase insuportável dada a crueza com que o argumentista Bruce Wagner e o realizador David Cronenberg nos devolvem a imagem desta Hollywood dos nossos dias. Há quem diga que se trata de uma sátira de um humor negro absoluto, mas parece-nos mais um filme de um hiper-realismo, onde nem mesmo alguns fantasmas sobrevivem senão como projecções da memória dos protagonistas.


Tudo esvoaça em redor de uma família, tendo como figura central Havana Segrand (Julianne Moore), uma actriz entre os quarente e os cinquenta, em decadência, que procura regressar em beleza com um remake de um filme dos anos 60, "Stolen Waters", que teria feito a glória da sua mãe. É como secretária de Havana que Agatha (Mia Wasikowska) se emprega, depois de ter passado uma longa temporada na Florida. No regresso a Los Angeles descobre-se que é irmã de Benjie Weiss (Evan Bird), um miúdo estrela de cinema (um pouco na linha de Macaulay Culkin ou Justin Bieber), insuportavelmente malcriado, prepotente, insolente, e tudo o mais que se possa imaginar. Aos treze anos já passou por drogas e uma sexologia aberrante, e terá sido vítima de Agatha, quando esta, tempos atrás, terá deitado fogo à casa da família. O pai, Stafford Weiss (John Cusack), é um psicólogo muito conhecido, que tem um programa de TV, escreve best-sellers de auto-ajuda, e trata celebridades, como Havana, com massagens no mínimo de duvidosa credibilidade. A mãe de Benjie é Cristina Weiss, que procura salvar a carreira do filho e afastá-lo da presença maléfica de Agatha (como se nesta viagem guiada por Hollywood existissem presenças que não o fossem), recuperando-o para a muito esperada sequela de "Bad Babysitter".
Esta árvore genealógica de Hollywood é realmente aterradora e creio que a intenção de Cronenberg é, de forma metafórica, falar-nos de uma sociedade doente, fechada sobre si própria, aberrante, destituída de quaisquer valores, preocupada apenas com cifras e prazeres fáceis. Havana confessa (ou inventa) uma ligação incestuosa com a mãe, e procura reproduzir êxitos antigos desta última. Benjie e Agatha terão tido igualmente uma relação incestuosa, o que permite supor que em Hollywood é o mesmo ADN que circula sempre. Cronenberg, numa entrevista, fala da perpetuação dos Men, referindo-se a Superman 6, X-Men 5, e tantos outros blockbusters que se eternizam em repetição. Digamos que é uma forma de criação incestuosa, que abdica da criatividade e se limita a reproduzir o mesmo chavão. Ou, como no caso de Havana, que procura recuperar sucessos do passado, seguramente por falta de imaginação ou imperiosa necessidade de empatar capital, jogando apenas pelo seguro.
“Sunset Boulevard” era uma crítica impiedosa a Hollywood, mas emanava do filme de Billy Wilder um encanto evidente. Alguma magia envolvia esta cidade, onde as velhas vedetas envelheciam solitárias, sonhando com um impossível regresso à ribalta. Em “Mapas para as Estrelas” não há ninguém pronto para o close up final, ninguém descerá as escadas para se enfiar numa ambulância a caminho de um hospício. Já toda a gente se instalou no interior do hospício e o “encanto” da star em decadência é vermo-la a limpar o rabo na casa de banho.


Excelentemente interpretada por um elenco magnífico, onde será justo destacar Julianne Moore, num papel ingrato, que muitas actrizes recusariam certamente, mas que ela agarra de forma brilhante, Mia Wasikowska, a perturbante Agatha, e o jovem Evan Bird, numa inquietante composição.
Estruturado quase como um puzzle que se vai organizando à medida que o filme decorre, “Mapas para as Estrelas” prolonga coerentemente o universo mutante de Cronenberg, acrescentado uma nova etapa à sua análise da sociedade actual, de que “Cosmopolis” era um notável exemplo. Não tão perfeito na construção, esta primeira incursão do cineasta por terra norte-americana (Cronenberg nunca filmara nos EUA) é, todavia, uma obra invulgar, uma panorâmica corrosiva e violenta sobre uma sociedade imoral e perversa que não pode aspirar a nada mais do que o suicídio. Mas que não se cansa de recitar Éluard: “Nos refúgios destruídos / nos meus faróis arruinados/ nas paredes do meu tédio / escrevo o teu nome / Na ausência sem desejos / na desnuda solidão / nos degraus mesmos da morte / escrevo o teu nome / Na saúde rediviva / aos riscos desaparecidos / no esperar sem saudade / escrevo o teu nome / Por poder de uma palavra / recomeço a minha vida / nasci para conhecer-te / nomear-te / Liberdade.”
 


MAPAS PARA AS ESTRELAS
Título original: Maps to the Stars
Realização: David Cronenberg (Canadá, EUA, Alemanha, França, 2014); Argumento: Bruce Wagner; Produção: Saïd Ben Saïd, Joseph Boccia, Sarah Borch-Jacobsen, Benedict Carver, Kevin Chneiweiss, Walter Gasparovic, Alfred Hürmer;  Martin Katz, Michel Merkt, Renee Tab, Patrice Theroux; Música: Howard Shore; Fotografia (cor): Peter Suschitzky; Montagem: Ronald Sanders; Casting: Deirdre Bowen; Design de produção: Carol Spier; Direcção artística: Edward Bonutto, Elinor Rose Galbraith; Decoração:  Sandy Lindstedt (Los Angeles), Peter P. Nicolakakos (Toronto); Guarda-roupa:  Denise Cronenberg; Maquilhagem: Alan D'Angerio, Verity Fiction, Cliona Furey, Susan Reilly LeHane;  Direcção de Produção:  Joseph Boccia, Melissa Girotti, Alice S. Kim, David Siegel;  Assistentes de realização: Jack Boem, Walter Gasparovic, Jesse Daniel Glass, Kristina M. Peterson, Gerrod Shully, Cody Williams;  Departamento de arte: John Bannister, Edward Bonutto, Joe Curtin, Kevin Haeberlin, Don Miloyevich, Alexander Narizni, Thibault Pelletier; Som: Rob Bertola, Nicolas Cantin, Pat Cassin, Julien Gigliotti, Michael O'Farrell; Efeitos visuais: Jon Campfens, Peter Denomme, Beau Parsons, Brent Pate; Companhias de produção: Prospero Pictures, Sentient Entertainment, SBS Productions, Integral Film; Intérpretes: Julianne Moore (Havana Segrand), Mia Wasikowska (Agatha Weiss), John Cusack (Dr. Stafford Weiss), Evan Bird (Benjie Weiss), Olivia Williams (Christina Weiss), Robert Pattinson (Jerome Fontana), Kiara Glasco (Cammy), Sarah Gadon (Clarice Taggart), Dawn Greenhalgh (Genie), Jonathan Watton (Sterl Carruth), Jennifer Gibson, Gord Rand, Justin Kelly, Niamh Wilson, Clara Pasieka, Emilia McCarthy, Allegra Fulton, Domenic Ricci, Jayne Heitmeyer, Sean G Robertson, Ari Cohen, Joe Pingue, Christian Lloyd, Donald Burda, Carrie Fisher, Amanda Brugel, Alden Adair, David Amito, Dan Lett, Sandra Battaglini, Joanne Reece, Chris Anton, George Nickolas K., Joseph Murray, Adrienne Wilson, Murray Furrow, Neil Girvan, Byron Lane, Ramiro Paré, Bruce Wagner, etc.  Duração: 111 minutos; Distribuição em Portugal: NOS Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 11 de Dezembro de 2014.

domingo, junho 10, 2012

CINEMA: COSMOPOLIS



 COSMOPOLIS
 Raras vezes se encontra uma tão grande fidelidade de um filme a uma obra literária. Fidelidade à história, personagens, situações, mas, sobretudo, fidelidade ao estilo e ao sentido da própria obra. Isso acontece com “Cosmopolis”, de David Cronenberg, adaptado de um romance de Don DeLillo. Poderão alguns dizer que a versão de Cronenberg é, por isso mesmo, demasiado literária e palavrosa. Não é esse o meu entendimento. Quanto muito, poderei admitir ser o romance de Delillo muito cinematográfico, com excelentes diálogos que parecem escritos para cinema (Cronenberg afirmou que adaptou o romance em pouco mais de uma semana, o que se entende). Depois, há um outro aspecto que marca de forma absoluta esta ligação: a obra de DeLillo vai perfeitamente ao encontro de algumas das obsessões maiores de Cronenberg, sobretudo na forma como integra corpos humanos no interior de um universo altamente tecnológico, no que se aproxima muito de um dos títulos mais significativos da carreira do cineasta, “Crash”. Obviamente que “Crash” era mais violento na forma como o metal dos carros e a carne das personagens se interpenetravam. “Cosmopolis” vem directamente desse universo, mas explora outros terrenos, mais filosóficos, onde a palavra adquire um maior significado.
Eric Packer (Robert Pattinson, que vem de um mundo de vampiros adolescentes para continuar num mundo de vampiros adolescentes, mas este muito mais inquietante, pois que real) é um jovem multimilionário que não sabe a fortuna que detém, ganha sobretudo em especulação bolsista. Num dia que começa como todos os outros, sai do seu luxuoso apartamento, em Manhattan, e propõe-se atravessar Nova Iorque, na sua limusina de sete metros, para ir cortar o cabelo a um modesto barbeiro de bairro que lhe recorda a juventude. Mas em Nova Iorque o trânsito não circula. O presidente dos EUA lembrou-se de visitar Manhattan, morreu um célebre músico e o enterro percorre as avenidas em homenagem, o director do FMI foi assassinado em directo quando dava uma entrevista, há manifestações de anarquistas em tudo o que é rua e avenida, e ameaças por todo o lado, que os guarda-costas, que caminham ao lado do majestoso veiculo, vão reportando minuto a minuto. De resto, Eric Packer faz da limusina escritório para seguir e dar ordens sobre os movimentos da bolsa em todo o mundo, quarto para repouso, apartamento para encontros sexuais, clínica privada, onde recebe a visita do seu médico que o observa diariamente, local de encontro, casa de banho… Por ali passam colaboradores, amantes, informadores, médico, enquanto lhe basta descer a janela do blindado para seguir as instruções dos seus “body guards”. Numa das cenas mais ambíguas e perturbantes, o médico examina-o através de um toque rectal para descobrir uma “próstata assimétrica”, enquanto Eric fala com uma colaboradora que mantém entre as pernas uma garrafa de plástico que a excita visivelmente. Excitação que se estende aos dois, aliás. 
Mas, por vezes, Eric sai da limusina para entrar no táxi que passa ao lado, onde vai a sua recente mulher, Elise Shifrin (Sarah Gadon), para tomar o pequeno almoço com ela, para a encontrar no interior de uma livraria, para se deslocar ao barbeiro… A limusina é o seu habitat natural naquele dia, e poderá ser igualmente o carro funerário ou o escritório onde se afunda em minutos uma das maiores fortunas da América. Tudo porque o iene continua a subir no Japão e ele continua a investir, seguindo a sua teoria que, afinal, não compreendia as assimetrias e os desequilíbrios da natureza. Eric é, pois, um símbolo de um capitalismo a entrar no impasse e à beira da auto-destruição. O confronto final com um antigo colaborador, Benno Levin (Paul Giamatti), que o quer assassinar, é disso bem um reflexo. “Cosmopolis” afirma-se como o filme do colapso de uma sociedade tal como hoje a conhecemos e que não traz a felicidade ao Homem, por muito que faça felizes alguns homens, com miragens de um poder irrealista e meramente virtual. A limusina é um casulo insonorizado, ao lado do qual passam os homens e as mulheres “normais”, resignados ou enraivecidos, que prefigura a falta de contacto entre realidades bem distintas. 

O tom algo nervoso e elíptico da narrativa de DeLillo é muito bem adaptado à narrativa cinematográfica, fragmentada e caótica, onde o dinheiro deixa de ter uma história linear e onde a ultra avançada tecnologia penetra no corpo humano, sem no entanto o servir harmoniosamente. De onde resulta uma explanação aparentemente desordenada e actos gratuitos que, todavia, são parte integrante do relato estilhaçado de uma sociedade em crise, que é esta nossa actual. A fotografia de Peter Suschitzky é notável a servir os propósitos, bem como a partitura musical de Howard Shore e a nervótica montagem de Ronald Sanders. A interpretação é toda ela excelente, ainda que pessoalmente mantenha muitas reservas quanto ao talento de Robert Pattinson. Mas, neste caso, parece bem integrado e até o seu passado vampiresco se adapta bem a esta nova personagem de um yuppie à beira do colapso, por falta de hemoglobina financeira. 
Julgamos que, no futuro, “Cosmopolis” será um bom tema de partida para a análise dos tempos conturbados por que actualmente passamos. David Cronenberg prossegue a sua carreira de observador crítico de uma sociedade com ameaças virais nem sempre bem visíveis, mas que o cineasta estripa com inteligência e lucidez.
COSMOPOLIS
Título original: Cosmopolis
Realização: David Cronenberg (França, Canadá, Portugal, Itália, 2012); Argumento: David Cronenberg, segundo romance homónimo de Don DeLillo; Produção: Paulo Branco, Martin Katz, Edouard Carmignac, Walter Gasparovic, Gregoire Melin, Renee Tab, Joseph Boccia; Música: Howard Shore; Fotografia (cor): Peter Suschitzky; Montagem: Ronald Sanders; Casting: Deirdre Bowen; Design de produção: Arvinder Grewal; Guarda-roupa: Denise Cronenberg; Maquilhagem: Seth Rossman; Direcção de Produção: Joseph Boccia, Anne Mattatia, Robin M. Reelis, Lori A. Waters; Assistentes de realização: Jack Boem, Tim Cushen, Jonathan Gajewski, Justin Gajewski, Walter Gasparovic, Gerrod Shully; Departamento de arte: Ron Hewitt, Marc Kuitenbrouwer, Matt Middleton, Brad Milburn; Som: Jonathan Acbard, Rob Bertola, Michael O'Farrell; Efeitos especiais: Warren Appleby, Daniel White; Efeitos visuais: Devin Dawkins, Michael DiCarlo, Naomi Foakes, Matthew Lajoie, Wojciech Zielinski; Companhias de produção: Alfama Films, Prospero Pictures, Kinology, France 2 Cinéma, Talandracas, Téléfilm Canada, Leopardo Filmes, Canal+, Rai Cinema, Radiotelevisão Portuguesa; Intérpretes: Robert Pattinson (Eric Packer), Jay Baruchel (Shiner), Samantha Morton (Vija Kinsky), Paul Giamatti (Benno Levin), Kevin Durand (Torval), Juliette Binoche (Didi Fancher), Sarah Gadon (Elise Shifrin), Emily Hampshire (Jane Melman), Mathieu Amalric (Andre Petrescu), Patricia McKenzie (Kendra Hays), Abdul Ayoola (Ibrahim Hamadou), Anna Hardwick, K'Naan, George Touliatos, Saad Siddiqui, Philip Nozuka, Jadyn Wong, Zeljko Kecojevic, Maria Juan Garcias, Milton Barnes, Gouchy Boy, Paulette Sinclair, etc. Duração: 108 minutos; Distribuição em Portugal: Leopardo Filmes; Classificação etária: M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 31 de Maio de 2012.