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domingo, novembro 16, 2008

CINEMA: DESTRUIR DEPOIS DE LER

DESTRUIR, DEPOIS DE LER
Não custa muito acreditar que certa crítica tenha ficado um pouco desasada coma última película dos irmãos Joel e Ethan Coen. Para muito boa gente, “Este País Não é Para Velhos” era apenas um grandioso e seriíssimo filme de uma violência sem limites, sobre a violência sem limites, esquecendo que os Coen são uns brincalhões, uns humoristas, por vezes muito negros, que, no que eu me lembre, nunca fizeram um filme sem uma ponta de ironia e de sarcasmo. Não está nos seus genes essa coisa de não se rirem, mesmo do que parece não ter graça nenhuma. Quando a coisa não tem graça, eles inventam-na. Uma vez por outra falham (desastroso o remake de “O Quinteto era de Cordas”), mas quase sempre acertam.
Umas vezes pode pender mais para o sério, outras mais para a galhofa, mas nunca anda o grave e o austero sem a sua quota de ironia, nem o humor sem a sua parcela de crítica inteligente e corrosiva. O que se passa em “Burn After Reading” é um curioso equilíbrio entre a crítica a uma certa e despudorada actual sociedade norte-americana e a sátira a essa mesma sociedade, num filme em que todos os seus intervenientes se divertiram magnificamente, uns a escrever e realizar, outros a interpretar figuras de uma imbecilidade total, todas elas ligadas a aspectos essenciais da actualidade ianque.
Há o agente da CIA, o inspector de finanças, a médica, a escritora, os empregados de um ginásio, os directores da CIA, e afins. Estamos em Washington (e por alguma razão os Coen escolheram a capital política do País), e esta gente toda, como num filme de Robert Altman, começa sem se conhecer entre si, mas, à medida que a acção progride, os cordelinhos vão-se interligando. São todos frustrados e estúpidos como as portas, andam todos engalfinhados sexualmente uns com os outros e, no meio das infidelidades que se cometem a toda a hora, vai girando um CD com dados aparentemente reservados de um agente da CIA que está a escrever as memórias e cuja mulher lhe rouba os segredos do PC, sobretudo para lhe escamotear as contas bancárias. Os segredos vão parar à Embaixada da Rússia, em busca de uma boa recompensa que dê para esticar as mamas e adelgaçar o rabo e as pernas à empregadota de meia idade do ginásio, que leva consigo, a reboque, um mais que idiota "personal trainer" do mesmo estabelecimento. Não vale a pena imaginar a confusão, vale a pena mesmo ver in loco.
O filme é divertidíssimo, interpretado com um humor irresistível por um grupo de excelentes actores que não só trabalham bem, como gostam de se divertir à grande e à americana: Brad Pitt, quase irreconhecível, com um humor de caricatura a roçar Jerry Lewis, George Clooney, como sempre a parodiar-se a si próprio e à imagem do garanhão que se lhe colou, John Malkovich, mais louco de que alguma vez já aparecera, Frances McDormand, numa personagem tão forte e convincente como a que interpretara em “Fargo”, Tilda Swinton, fria e distante, mas muito bem integrada no grupo, e ainda as breves aparições de J.K. Simmons, um dos chefes da CIA que não sabe nada de nada do que se passa na sua casa, são apenas os rostos principais de “uma conspiração colectiva” que aterrou nos EUA e nos oferece um retrato bem inquietante da América de Bush. Esta era nitidamente a intenção dos Coen. Conseguida. Ainda por cima através de uma divertida paródia que nos remete para algumas das obsessões e traumas da sociedade actual, dos encontros marcados via “chats” da Internet à mórbida dependência das cirurgias plásticas. Tudo em nome de encontrar um grande amor, o que quase todos procuram, mas nenhum consegue. Aparelhos imaginosos para provocar mecanicamente o prazer, almofadas para melhor orientar as “orgias” ou corridas pedestres de oito quilómetros para manter o físico são alguns artifícios vislumbrados, mas ineficazes.
De resto, nada disto parece ter importância, nenhuma destas intrigas que provoca assassinatos e loucuras representa o que quer que seja, se vistas de longe, lá do cima, do majestoso universo, como nos indicam os planos iniciais e finais de "Burn After Reading". Quando a câmara se afasta rumo à vastidão do desconhecido, a imbecilidade dos homens dilui-se numa paisagem liliputiana.
Os Coens informaram que com esta obra deram por terminada a sua trilogia dos idiotas (os títulos anteriores tinham sido, segundo eles, "O Brother, Where Art Thou?", 2000, e "Intolerable Cruelty", 2003). A verdade é que quase toda a filmografia destes irmãos cineastas é composta por filmes que não nos falam senão de idiotas em momentos de crise, que os levam a desbloquear situações de uma violência incontrolável. Uns mais sérios, outros mais parodiantes. Mas todos “loucos”.
Não é uma obra-prima mas sabe muito bem.

quinta-feira, abril 03, 2008

CINEMA: ESTE PAÍS NÃO É PARA VELHOS

ESTE PAÍS NÃO É PARA VELHOS
Um caçador que se aventura pelos arredores de uma cidadezinha americana do Rio Grande do Sul, com o deserto ao fundo, descobre um macabro e bizarro achado: carros abandonados, mortos vários, um moribundo que rapidamente passa a cadáver, à falta de água, quantidade de heroína em barda, 2 milhões de dólares numa mala, Tudo pode ser ignorado, excepto a mala que Llewelyn Moss resolve tornar sua. Essa mala, porém, irá desencadear perseguições variadas, entre elas a de um “serial killer” que mata friamente, sem emoção. O humano transformado num autómato do Mal, num “profeta da destruição”, como o xerife da localidade sugere, quando afirma: “Dizem que os olhos são as janelas da alma. Eu cá por mim não sei de que é que os olhos são as janelas e se calhar até prefiro não saber. Mas há uma outra maneira de ver o mundo e outros olhos para o ver e é por esse caminho que nós vamos. Eu próprio o trilhei e conduziu-me a um lugar na minha vida que nunca imaginei chegar a conhecer. Algures por aí anda um profeta da destruição, um profeta genuíno, de carne e osso, e eu não o quero enfrentar.”
Um profeta que, realmente, é melhor não enfrentar. Até porque todos os que o encaram não sobrevivem para contar. Pessoa não será, pelas suposições que de “pessoa” fazemos. Autómato poderia ser, mas que máquina teria esse poder de matar sistematicamente tudo o que se lhe atravessa no caminho? É, pois, algo de completamente desumano, uma máquina de destruição, um robot programado para assassinar, alguém para quem se olha e não se reconhece nele feições de gente. Este é Anton Chigurh que se passeia de mortífero pneumático na mão e uma única ideia na cabeça: matar.
Este é também o retrato de uma América de violência traumatizante, desconhecida, perturbante, que é atravessada primeiro pelas palavras secas e austeras de Cormac McCarthy neste romance, nervoso, agressivo, provocador, estimulante que nos recoloca na melhor tradição da literatura norte-americana. Hemingway, sim, pela aridez dos diálogos, pela poesia dos cenários, Falkneur, sem dúvida, pela descrição das paixões e das paisagens, mas também um pouco da violência ingénua de uns “Ratos e Homens”, mas reciclada para novos continentes de um total desencanto. Depois há quem fale de escritores actuais, como Don Delillo, Philip Roth ou Thomas Pynchon, é possível, sobretudo no retrato de uma sociedade doente, dada num registo sincopado, que mostra as aparências e deixa as chagas soterradas, à espera que o leitor as descubra por si só. Terríveis os tempos que geram obras como esta, de um cinzento pesado, de um ar poluído pelo desespero, de uma humanidade desgarrada e à deriva.
Há personagens absolutamente inesquecíveis, como o assassino Anton Chigurh, ou o ávido e “espertalhão” Llewelyn Moss (“O Tesouro da Sierra Madre”?), ou o desalentado xerife Ed Tom Bell, que conheceu a II Guerra Mundial, e que tem uma ideia do Vietname e dos EUA muito bem condensada nesta frase: “As pessoas dizem que foi o Vietname que pôs este país de rastos. Mas eu nunca acreditei nisso. O país já estava em muito mau estado. O Vietname foi só a cereja em cima do bolo. (…) Não sei o que vai acontecer quando vier a próxima. Não sei mesmo.” Ora a verdade é que a próxima já chegou e o que os escritores (e cineastas) norte-americanos reflectem é esse “não sei mesmo.” A América na encruzilhada, mas mais do que isso, nós todos na mesma encruzilhada.
Magnífico livro. E fiquei à espera de um igualmente magnífico filme. Que veio pela mão dos irmãos Coen. Com Óscar para melhor filme do ano, e ainda Óscar para melhor realização. No final, não tão brilhante como apregoaram, mas um filme muito interessante (nada comparado, é certo, com essa obra-prima de Paul Thomas Anderson, “Haverá Sangue”).
Acompanhando o percurso do livro quase a par e passo, apenas saltando aqui e ali um ou outro episódio e elidindo quase todos os solilóquios do velho xerife (o que acaba por empobrecer o filme, dado que é desse confronto de dois tempos de narrativa que nasce uma das iluminações mais fortes do romance e a ideia de que o homem pode transcender-se e permanecer "humano", apesar da brutalidade que o rodeia), o filme dos Coen é uma adaptação bastante fiel da obra de Cormac McCarthy, recriando a mesma terra seca, o mesmo ar saturado de poeira, a mesma solidão, a mesma violência climática, a mesma psicologia rasteira, a mesma rudeza de comportamento, a mesma agressividade de uns, o mesmo desalento de outros, a frustração de tantos, a desilusão de muitos, os gestos repetidos sem significado de alguns, o desespero, sim o desespero no olhar de quem morre e o olhar vítreo de quem mata. Estamos em que País afinal? Na América pós-Vietname, na América pós-11 de Setembro, na América pós-invasão do Afeganistão e do Iraque, na América dos adolescentes “serial killers”, que dizimam turmas de escolas, na América profunda da opressão, do racismo, do fanatismo, mas também na América da auto-crítica, da má consciência, na América que invariavelmente ergue a voz contra as injustiças, que discute, que recusa, que se insurge, que faz filmes como este ou “Haverá Sangue”.
Actores brilhantes e um Javier Bardem magnífico ajudam à festa. Mas fica a sensação de que o livro é melhor e o filme poderia ter ido um pouco além. Não é o melhor dos Coen, mas não deslustra. Apenas peca por participar de uma injustiça flagrante: “Haverá Sangue” é muito melhor, sob todos os pontos de vista. Na comparação, os Coen saem por baixo, mas foram eles que arrecadaram os Oscars.
ESTE PAÍS NÃO É PARA VELHOS
Título original: No Country for Old Men
Realização: Ethan Coen, Joel Coen (EUA, 2007); Argumento: Joel Coen, Ethan Coen, segundo romance homónimo de Cormac McCarthy; Música: Carter Burwell; Fotografia (cor): Roger Deakins; Montagem: Ethan Coen e Joel Coen (assinando ambos Roderick Jaynes); Casting: Ellen Chenoweth; Design de produção: Jess Gonchor; Direcção artística: John P. Goldsmith; Decoração: Nancy Haigh; Guarda-roupa: Mary Zophres; Maquilhagem: Brian Hillard, Geordie Sheffer, Dave Snyder, Christien Tinsley; Direcção de produção: Karen Ruth Getchell, Robert Graf, Omar Veytia; Assistentes de realização: Bac DeLorme, Peter Dress, Jai James, Betsy Magruder, Donald Murphy, Taylor Phillips; Departamento de arte: Mark Bankins, Sage Emmett Connell, James Fowler, Gregory Hill, Roberta Marquez; Som: Craig Berkey; Efeitos especiais: Peter Chesney, Megan Flagg, Jason Hamer, Diane Woodhouse; Efeitos visuais: Alexandre Cancado, Vincent Cirelli, Valy Lungoccia, Ashok Nayar, Ian Noe; Produção: Ethan Coen, Joel Coen, Scott Rudin, David Diliberto, Robert Graf, Mark Roybal; Companhias de produção: Paramount Vantage, Miramax Films, Scott Rudin Productions, Mike Zoss Productions.
Intérpretes: Tommy Lee Jones (Ed Tom Bell), Javier Bardem (Anton Chigurh), Josh Brolin (Llewelyn Moss), Woody Harrelson (Carson Wells), Kelly Macdonald (Carla Jean Moss), Garret Dillahunt (Wendell), Tess Harper (Loretta Bell), Barry Corbin (Ellis), Stephen Root, Rodger Boyce, Beth Grant, Ana Reeder, Kit Gwin, Zach Hopkins, Chip Love, Eduardo Antonio Garcia, Gene Jones, Myk Watford, Boots Southerland, Kathy Lamkin, Johnnie Hector, Margaret Bowman, Thomas Kopache, Jason Douglas, Doris Hargrave, Rutherford Cravens, Matthew Posey, George Adelo, Mathew Greer, Trent Moore, Marc Miles, Luce Rains, Philip Bentham, Eric Reeves, Josh Meyer, Chris Warner, Brandon Smith, Roland Uribe, Richard Jackson, Josh Blaylock, Caleb Jones, Dorsey Ray, Angel H. Alvarado Jr., David A. Gomez, Milton Hernandez, John Mancha, Scott Flick, Elizabeth Slagsvol, etc.
Duração: 122 minutos; Classificação etária: M/18 anos; Distribuição em Portugal: Lusomundo Audiovisuais; Locais de filmagem: Albuquerque, New Mexico (EUA); Estreia: 28 de Fevereiro de 2008 (Portugal).
***
Julgo que será interessante, e ajuda a compreender quer o livro, quer o filme, conhecer o poema que dá título às duas obras:

Sailing to Byzantium


That is no country for old men. The young
In one another's arms, birds in the trees
- Those dying generations - at their song,
The salmon-falls, the mackerel-crowded seas,
Fish, flesh, or fowl, commend all summer long
Whatever is begotten, born, and dies.
Caught in that sensual music all neglect
Monuments of unageing intellect.

An aged man is but a paltry thing,
A tattered coat upon a stick, unless
Soul clap its hands and sing, and louder sing
For every tatter in its mortal dress,
Nor is there singing school but studying
Monuments of its own magnificence;
And therefore I have sailed the seas and come
To the holy city of Byzantium.

O sages standing in God's holy fire
As in the gold mosaic of a wall,
Come from the holy fire, perne in a gyre,
And be the singing-masters of my soul.
Consume my heart away; sick with desire
And fastened to a dying animal
It knows not what it is; and gather me
Into the artifice of eternity.

Once out of nature I shall never take
My bodily form from any natural thing,
But such a form as Grecian goldsmiths make
Of hammered gold and gold enamelling
To keep a drowsy Emperor awake;
Or set upon a golden bough to sing
To lords and ladies of Byzantium
Of what is past, or passing, or to come.

William Butler Yeats, The Tower (1928)

Na tradução de José Agostinho Baptista

I

Este país não é para velhos. Jovens
Abraçados, pássaros que nas árvores cantam
- essas gerações moribundas -
Cascatas de salmões, mares de cavalas,
Peixe, carne, ave, celebrando ao longo do Verão
Tudo quanto se engendra, nasce e morre.
Prisioneiros de tão sensual música todos abandonam
Os monumentos de intemporal saber.

II

Um velho é coisa sem valor,
Um andrajo apoiado num bordão, a não ser que
A alma aplauda e cante, e cante mais alto
Cada farrapo da sua mortal veste.
Nem há escola de canto somente o estudo
Dos monumentos de seu próprio esplendor;
Por isso cruzei os mares e cheguei
À sagrada cidade de Bizâncio.

III

Oh, sábios que estais no sagrado fogo de Deus
Qual dourado mosaico sobre um muro,
Vinde desse fogo sagrado, roda que gira,
E sede os mestres do meu canto, da minha alma.
Devorai este meu coração; doente de desejo
E atado a um animal agonizante
Ele não sabe o que é; juntai-me
Ao artifício da eternidade.

IV

Da natureza liberto jamais de natural coisa
Retomarei minha forma, meu corpo,
Mas formas outras como as que o ourives grego
Em ouro forja e esmalta em ouro
Para que o sonolento Imperador não adormeça;
Ou em dourado ramo pousado, cantarei
Para damas e senhores de Bizâncio
Cantarei o que passou, o que passa, ou o que virá