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segunda-feira, outubro 10, 2011

LEITURAS: JULIAN BARNES

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NADA A TEMER? 

Ultimamente tenho lido, lido, lido imenso. Dezenas de policiais de excelente qualidade, alguns prodigiosos, de que tentarei ir dando conta no blogue “Policiais no Cinema”. Mas, entremeados com os policiais, tenho-me deliciado com clássicos e modernos, de Thomas Mann a Gonçalo M. Tavares, de Walter Hugo Mãe a Giorgio Bassani, de Guy de Maupassant aos “Portugueses”, de Barry Hatton, e sei lá mais quê.  Agora ando a ler “Nada a Temer”, do britânico Julian Barnes, um dos meus ingleses actuais preferidos.
“Nada a Temer” é um romance (será?) lúcido, bem documentado, irónico, erudito que pensa e estuda a morte. Coisa aparentemente macabra. Mas Barnes mostra que não. Fala do medo da morte. Medo da morte ou medo de morrer? Foi esta questão que me leva a transcrever um excerto desta obra que acho brilhante e que dá bem a ideia do “problema”. Um “problema” muito democrático que se torna, porém, em condições normais, “premente” para quem ultrapassou os sessenta. 

Diz assim:

“Se temos medo da morte, não temos medo de morrer; se temos medo de morrer, não temos medo da morte. Mas não hã razão lógica para que um medo exclua o outro; não há razão para que o espírito, com um pouco de treino, não possa expandir-se e incluir ambos. Na qualidade de pessoa que não se importava de morrer desde que depois não ficasse morto, posso certamente começar a elaborar quais seriam os meus medos em relação à morte. Receio ser como o meu pai que, sentado numa cadeira ao lado da cama do hospital, me censurava com irritação pouco habitual — «Disseste que vinhas ontem.» — antes de deduzir pelo meu embaraço que fora ele quem confundira as coisas. Receio ser como a minha mãe, quando imaginava que ainda jogava ténis. Receio ser como aquele meu amigo que, ansiando pela morte, nos confidenciava incessantemente que conseguira obter e engolir comprimidos suficientes para se matar, mas se encontrava agora numa agitação ansiosa, porque os seus actos podiam causar problemas a uma enfermeira. Receio ser como aquele homem de letras de uma cortesia inata, que conheci e que, ao ficar senil, começou a falar constantemente à mulher nas fantasias sexuais mais extremas, como se isso fosse o que secretamente sempre desejara fazer-lhe. Receio ser como Somerset Maugham octogenário, que baixava as calças atrás do sofá e defecava no tapete (apesar de isso me fazer lembrar alegremente a minha infância). Receio ser como aquele meu amigo Idoso, homem ao mesmo tempo refinado e cheio de melindres, cujo olhar mostrava um pânico animal quando a enfermeira do lar anunciava, diante das visitas, quo estava na hora de mudar a fralda. Receio o riso nervoso que terei quando não estiver a perceber uma alusão ou tiver esquecido uma lembrança comum ou um rosto familiar, e começar a desconfiar, primeiro duma grande parte e depois de tudo o que julgo saber. Receio o cateter e o elevador de escadas, o corpo incontinente e o cérebro devastado. Receio o destino de Chabrier/Ravel, não saber quem fui nem o que fiz. Talvez Stravinsky, na velhice extrema, tivesse esses finais em mente quando chamava do quarto a mulher ou algum membro da família. «De que precisas?», perguntavam-lhe. «De ter a certeza da minha própria existência», respondia. E a confirmação podia vir sob a forma de um afago de mão, de um beijo ou de lhe porem a tocar um dos seus discos preferidos.
Arthur Koestler, na velhice, orgulhava-se duma adivinha que formulara: «E melhor para um escritor ser esquecido antes de morrer, ou morrer antes de ser esquecido?» (Jules Renard sabia a resposta: «”Poil de Carotte” e eu vivemos juntos, e espero morrer antes dele,») Mas é um «preferimos o quê» suficientemente poroso para deixar que se infiltre uma terceira possibilidade: o escritor, antes de morrer, pode ter perdido toda a memória de ser escritor.
Quando perguntaram a Dodie Smith se ela se lembrava de ter sido uma dramaturga famosa ela respondeu: «Sim, acho que sim», disse-o exactamente da mesma maneira — com uma espécie de concentração, sobrolho franzido, moralmente consciente da exigência da verdade — como eu a vira responder a dezenas de perguntas ao longo dos anos. Por outras palavras, pelo menos continuava igual a si própria. Para além desses medos mais imediatos de deterioração física e mental, é isto que esperamos e desejamos para nós próprios. Queremos que as pessoas digam: «Até ao fim foi ele próprio, mesmo sem conseguir falar/ver/ouvir.» Embora a ciência e o autoconhecimento nos tenham feito duvidar daquilo que compõe a nossa individualidade, queremos continuar a encarnar essa personagem que nos convencemos, talvez erradamente, que é nossa e só nossa.”
Ed. Quetzal.

sábado, novembro 03, 2007

LIVROS - JULIAN BARNES

“ARTHUR & GEORGE”
Julian Barnes é inglês, escritor, admirador de Gustave Flaubert, que já foi tema de um romance seu, “O Papagaio de Flaubert”. “Arthur & George”, seu mais recente livro, volta a centrar a acção num escritor, Arthur Conan Doyle (1859-1930), criador da personagem do detective Sherlock Holmes, cujas histórias policiais de pura dedução, ambientadas numa Inglaterra vitoriana, entusiasmaram gerações. Mas Julian Barnes não pegou na personagem de ficção, mas sim no escritor com existência física para dele nos falar em “Arthur & George”: Arthur é, pois, o célebre Conan Doyle, George é um tal pouco falado George Edalji, inglês de ascendência pársi (indiano de estirpe aristocrata) que, no início do século XX, se viu injustamente condenado pelo crime de esventrar um cavalo na aldeia de Great Wyrley.
O romance de Julian Barnes inicia-se de forma fulgurante com uma montagem em paralelos de curtos capítulos desenhando rapidamente a meninice de dois jovens que se conhecem apenas pelos nomes de Arthur e George. Ambos são contemporâneos, mas cresceram em mundos diferentes, a muitos quilómetros de distância um do outro. Na página 60, descobre-se enfim que Arthur escrevia histórias sobre Sherlock Holmes e que o seu nome completo é Arthur Conan Doyle. Expoêm-se a partir daí também as desventuras de George, oriundo de uma família constituída por um austero pastor anglicano, indiano, e uma devota mãe escocesa, e ainda uma impulsiva irmã mais nova.
Rodeados estão por desconfiados e pérfidos vizinhos que não aceitavam o facto de terem como companhia “indianos”. George bem afirma que é inglês, mas os enxovalhos prosseguem, até que um dia, sendo já advogado e solicitador em Birmingham, e na sequência de vários acontecimentos sangrentos e reais que são ainda hoje conhecidos como “Os Ultrajes de Great Wyrley”, foi parar à cadeia, julgado, e condenado a sete anos atrás das grades. A acusação era de que esventrava cavalos pelos campos de Great Wyrley, em noites de tempestade e ventania.
O trabalho de Barnes é um romance de fundo histórico, uma cuidada reconstituição ficcional que joga com elementos minuciosamente recuperados e mostra como, a partir de certa altura, Arthur Conan Doyle, então no apogeu da sua glória literária, e entre a morte da sua mulher Touie, e o possível casamento com Jean, a quem amou secretamente durante anos, no mais puro platonismo, se envolveu no caso e lutou por inocentar George, levando a justiça britânica a mudar leis e restaurar, não só a liberdade do condenado, como sobretudo a reputação daquele pársi que nunca deixou de reclamar da sua origem inglesa e nunca acreditou inteiramente que tudo o que lhe estava a acontecer era devido a preconceitos raciais. O livro é uma belíssima e envolvente descrição da sociedade inglesa da época, erguendo duas figuras bem desenhadas com largueza e eficácia, entrelaçadas num erro judiciário que as irá reunir, quando nada o fazia prever.
Excelente de início, um pouco menos conseguido mais para o fim, mas nunca desinteressante, “Arthur & George” mostra-nos a qualidade de escrita de um dos mais reputados autores ingleses contemporâneos, que se coloca ao lado de um Ian McEwan ou de um Martin Amis. Barnes, agora com 61 anos, esboça um retrato de Conan Doyle que não esquece os problemas familiares, o gosto pelo críquete, a mundaneidade e o interesse espírita, sugerindo a dependência da droga e outras características bem conhecidas. Por seu turno George é ainda mais sugestivo, talvez por ser desconhecido do grande público. Introvertido, solitário, bom filho e estudante cumpridor, míope, o jovem advogado manteve até ao fim uma inabalável fé na infalibilidade da lei e da justiça inglesas. Mesmo preso nunca recuou nas suas convicções. O seu caso tornar-se-ia um exemplo, dado que em função do erro cometido as instituições jurídicas inglesas se viram obrigadas a alterar o processamento normal, criando tribunais de apelação para prevenir que outros casos deste tipo pudessem voltassem a aparecer em tribunais do país.
“Arthur & George” foi finalista do Booker Prize 2005 e do International IMPAC Dublin Literary Award 2007.
Principais obras: Metroland (1980, romance), Fiddle City (1981, romance, pseudo. Dan Kavanaugh), Before She Met Me (1982, romance), Flaubert's Parrot (1984, romance), Putting the Boot In (1985, romance, pseudo. Dan Kavanaugh), Staring at the Sun (1986, romance), A History of the World in 10 1/2 Chapters (1989, romance), Duffy (1980, romance, pseudo. Dan Kavanaugh), Going to the Dogs (1987, romance, pseudo. Dan Kavanaugh), Talking it Over (1991, romance), The Porcupine (1992, romance), Letters from London (1995, ensaio), Cross Channel (1996, contos), England, England (1998, romance), Love, Etc. (2000, romance), Something to Declare (2002, ensaios), The Pedant in the Kitchen (2003, gastronomia), The Lemon Table (2004, contos) e Arthur & George (2005, romance)