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A carne começa a ser roída por dentro, a pele cola-se aos ossos, os olhos encovam-se por detrás de uma pálpebras corridas pelo cansaço, a respiração é ofegante, mas tímida, os dias vão passando e sente-se um sopro de vida preso, enjaulado num corpo já cadáver. A morte caminha, pressente-se, hoje está pior que ontem, há dias ainda dormia na cama e via televisão no cadeirão. Depois passou a pernoitar de dia na cama almofadada que as enfermeiras lhe vão colocando dos lados para não ferir a pele amarelecida. Toco-lhe na mão e sinto ainda um leve apertar de tendões. Tenta abrir os olhos, procura dizer o que lhe vai no coração. Faz um esforço para entreabrir os olhos. Hoje nem isso, à tarde. À noite, voava sabe-se lá para onde. Vestiram-na com o “vestido de ver a Deus”, que ela escolhera, negro e abotoado até cima, jaz na cama onde passou os últimos dias, mãos sobrepostas sobre o corpo, olhos fechados, um lenço a amparar-lhe a boca. Havia ainda há minutos um sopro de vida neste corpo. Que mistério é este que faz da matéria uma força desconhecida e que, num ápice, a devolve às cinzas? Que força é essa, Tia Ivone?