terça-feira, agosto 14, 2007

LIVROS E FILMES: O FIO DA NAVALHA

"O FIO DA NAVALHA":
O ROMANCE
E AS VERSÕES CINEMATOGRÁFICAS
“O Fio da Navalha” é um dos romances de maior sucesso de Somerset Maugham, só ultrapassado, ao que julgo, por “Servidão Humana”. De “The Raizor’s Edge” os americanos realizaram duas adaptações cinematográficas, uma de 1946, com realização de Edmund Goulding, e com um excelente elenco, onde se destacavam Tyrone Power (Larry Darrell), Gene Tierney (Isabel Bradley), John Payne (Gray Maturin), Anne Baxter (Sophie Nelson Macdonald), Clifton Webb (Elliott Templeton), Herbert Marshall (W. Somerset Maugham), Lucile Watson (Louisa Bradley), Frank Latimore (Bob Macdonald) e Elsa Lanchester (Miss Keith, secretária da Princesa). A fabulosa fotografia a preto e branco era assinada por Arthur C. Miller e a partitura musical da responsabilidade de Alfred Newman. Não se tratava de uma obra-prima, mas, com uma ou outra cedência a um exotismo de pacotilha nas sequências rodadas fora dos EUA (Paris e Índia, sobretudo), este “The Razor's Edge” aproximava-se muito do que se pode pedir a uma boa adaptação, com alguns aspectos arrojados e uma notável criação de personagens.
Nos anos 80, mais precisamente em 1984, foi a vez de John Byrum voltar ao clássico, desta feita com uma adaptação promovida e escrita por Bill Murray (de colaboração com o próprio John Byrum), que interpretaria o papel principal, Larry Darrell, ao lado de um elenco curioso: Theresa Russell (Sophie MacDonald), Catherine Hicks (Isabel Bradley), Denholm Elliott (Elliott Templeton), James Keach (Gray Maturin), Peter Vaughan (Mackenzie) e Brian Doyle-Murray (Piedmont), A fotografia, a cores, era da responsabilidade de Peter Hannan, e a música de Jack Nitzsche. O resultado, deve dizer-se, ficou muito aquém das expectativas, sobretudo porque Bill Murray “leu” o romance para o encaixar na sua pele de actor, fazendo deslizar os contornos de personagens e situações a seu belo prazer, colocando um certo acento demasiado visível numa faceta de humor que nunca existiu no romance de W. Somerset Maugham (ironia sim, mas nunca o humor quase burlesco de certas situações recriadas por Bill Murray). Mas haverá muito mais a dizer, o que faremos a seu tempo.

Falemos do romance, que data de 1944: Larry Darrell (curioso o facto de W. Somerset Maugham colocar como protagonista alguém com o nome de Lawrence Darrel, com uma única letra a separá-lo de Lawrence Durell, um escritor que tudo indica ser homenageado nesta referência) é americano, jovem, bem apessoado, esteve como piloto na I Guerra Mundial, regressa a Chicago, onde é bem recebido por vários amigos e uma namorada, Isabel Bradley, que está por ele apaixonada e o esperou com ansiedade. Isabel é filha de Louisa Bradley, sobrinha de Elliott Templeton, um “dandy” que fez fortuna a vender antiguidades, se passeia entre a América, Paris, Londres e estâncias de turismo muito in, e que não acha muita graça a Larry, por este, regressado da guerra, querer “vadiar” e não estar muito interessado em contribuir para o progresso da América, arranjando um bom emprego e desfrutando da sua condição de pertencer à melhor sociedade, aos endinheirados que tudo podem e tudo se permitem. Pelo contrário, Larry vive angustiado com uma recordação dolorosa da guerra, que evoca com discrição: foi salvo por um camarada de armas que morreu ao salvá-lo a ele. A sua viagem agora é uma longa procura espiritual: quer encontrar um sentido para a sua vida e um sentido para aquele acto de extrema generosidade e abnegação desse piloto que se atravessou entre o seu avião e o de um alemão.
Larry não quer casar já, quer passar um ou dois anos em Paris, para onde parte. Aí chegado, não aceita os préstimos de Elliot, que o procura apresentar à melhor sociedade, aluga um quarto manhoso numa pensão de quinta ordem, lê tudo o que pode, confraterniza em tertúlias de artistas, viaja e flaneia à sua maneira. Passa pela Alemanha, trabalha numa mina em França, onde cria amizade com um polaco, persegue gurus que o levam até à Índia, descobre-se iluminado por um saber interior que estimula a sua espontânea generosidade. Reencontra-se por várias vezes com Isabel, com quem aceita desfazer o casamento, mas nunca a amizade, troca carícias e amor com mulheres avulsas que o seduzem e de quem aceita o prazer, mas nunca se descobre um amante impulsivo e apaixonado. Recebe a notícia do casamento de Isabel com Gray Maturin com satisfação, assiste à derrocado emocional de Sophie, que vê marido e filho morrerem num acidente de automóvel, e que nunca mais se recompõe do terrível trauma, surpreende-a anos depois numa tasca imunda de Paris, bêbeda e promíscua, dependente do ópio e de uma angústia que a prostra e a levará à morte, pescoço cortado por uma fina lâmina que a atira, primeiro para o Sena e depois para a morgue. No meio de todo este drama, Larry tenta ainda salvar Sophie, oferece-lhe o seu amor (sobretudo o seu “calor”) e o seu quarto em Montparnasse, pede-a em casamento e tenta libertá-la do vinho e das drogas, mas uma “imprevidência” deliberada de Isabel provoca a queda no abismo e a tragédia da sua melhor amiga de infância, que, todavia, ela não consegue ver casada com Larry, o homem que ela sempre amou, e ainda ama, e sempre irá amar, mas que abandonou, perante a perspectiva de uma vida inquieta a seu lado, e o radioso futuro de uma existência tranquila e abastada ao lado de Gray.

Acontece que a fortuna dos Maturin se afundou com a grande recessão de 1929, e o casal volta a Paris na penúria, com duas filhas, aceitando a “esmola” de viverem no palácio de Elliot enquanto se regeneram socialmente. Larry terá mesmo a função de curar Gray de persistentes enxaquecas, com o milagroso saber que trouxera da Índia. Finalmente, um dia, depois de muitas aventuras e peripécias, de dramas e tragédias, com algumas alegrias pelo meio, Larry está pronto para voltar à sua terra, a América. Para ser taxista, talvez, mas agora com alguma possibilidade de entender um pouco melhor a vida e a sua finalidade. A procura terminou, Larry sabe-se um entre milhões, não será nunca um homem excepcional, não irá colocar em letra de forma a sua extraordinária aventura, basta-lhe viver o melhor que pode o resto da sua vida. W. Somerset Maugham assim pensa: “Não tem ambições, nem desejo de se tornar célebre; distinguir-se aos olhos do público ser-lhe-ia sumamente desagradável; é, portanto, admissível que se contente em levar a vida que escolheu e ser apenas ele próprio. É excessivamente modesto para se oferecer como exemplo aos olhos dos outros; mas é possível que julgue que algumas almas indecisas – para ele atraídas como borboletas para a chama - chegarão, com o tempo, a compartilhar da sua maravilhosa crença de que a verdadeira felicidade só pode ser encontrada nas coisas do espírito, e que esteja convencido de que, trilhando com abnegação e renúncia o caminho da perfeição, está praticando o bem tão positivamente como se estivesse escrevendo livros ou discursando a multidões.”
Toda esta intriga é acompanhada, portanto, pelo próprio W. Somerset Maugham que, assumindo-se como personagem do seu próprio romance, logo a abrir, confessa: “Não inventei coisa nenhuma.” E acrescenta: “Este livro parte das recordações que tenho de um homem com quem, em épocas muito espaçadas, tive íntimo contacto; mas pouco sei do que lhe aconteceu nos intervalos. Creio que, recorrendo à imaginação, eu poderia preencher plausivelmente as lacunas e tornar mais coerente a minha narrativa; mas a tal não me sinto atraído. Quero unicamente relatar factos de que tenho conhecimento.”
Pelos vistos assim será. Durante anos, após o lançamento do livro, e sobretudo após as adaptações ao cinema, muito se tem especulado sobre quem seriam na realidade as personagens em que se inspirara W. Somerset Maugham para escrever o seu romance. Elliot Templeton terá merecido alguma atenção, bem como o “holy man” que Lary visita na Índia e que para muitos estudiosos parece fácil de desvendar (fala-se em Sri Ramana). Mas a figura mais enigmática e aquela que tem feito correr mais tinta é obviamente a de Larry Darrell. Há um site na internet que ao longo de centenas de páginas procura explicar que Larry Darrell não é outro senão um tal americano de nome Guy Hague que terá percorrido um caminho idêntico ao de Darrell. Para os interessados fica aqui a chave de entrada nesse reino de pesquisa que não acaba mais:
http://www.geocities.com/upakaascetic/all_larry_darrell.html.

O Filme de 1946
George Cukor terá sido o primeiro a ser convidado a assinar a versão de 1946 de “The Razor’S Edge”, mas rapidamente o produtor Darryl F. Zanuck o despediu, em virtude do tipo de adaptação que o realizador sugeria e que não agradava de forma nenhuma ao boss da Twenty Century Fox. Acabou por ser Edmund Goulding, um realizador interessante, mas homem sem grande marca pessoal, a aceitar a encomenda de que se desembaraçou com satisfação geral.
Tyrone Power, que acabava de regressar da Europa e da intervenção na II Guerra Mundial, mostrava-se farto de interpretar a figura de aventureiros sem registo psicológico de assinalar, pretendia papéis com outra dimensão humana, e prometeu regressar a Zorro se lhe oferecem o desempenho de Larry Darrell. Por outro lado, W. Somerset Maugham, vivendo do sucesso dos seus romances mais falados, viajou até Hollywood em 1945 para escrever a adaptação do seu romance para cinema, de colaboração com Lamar Trotti, um argumentista da velha escola de Hollywood. Quando Darryl F. Zanuck lhe perguntou quanto levava pelo trabalho, três meses depois, o escritor declinou qualquer pagamento (bastavam-lhe os direitos que auferiu na concessão do livro para adaptação ao cinema, e que ascenderam a 150.000 dólares, recebidos em Outubro de 1944), aceitou apenas ser ressarcido das suas despesas nos EUA, mas acabaria por receber na volta um quadro de Matisse (dizem que no valor de 15.000 dólares). Darryl F. Zanuck mostrou-se generoso quanto ao pagamento, mas não usou uma linha dessa adaptação. W. Somerset Maugham não ficou nem surpreendido, nem aborrecido. Conta-se, aliás, que quando trabalhava com Lamar Trotti o descobriu tão zeloso na fidelidade à obra e na forma de a adaptar ao cinema, que lhe confidenciou: “Você ainda é mais respeitoso com Maugham, o escritor, do que eu mesmo!”
Na capa do guião escrevera mesmo: “Por favor, notem que, no fundo, isto é uma comédia, e deve ser interpretada enquanto tal por todos os actores, excepto nas passagens definitivamente sérias.”
A adaptação do escritor funcionou apenas como um esboço para a adaptação final. Maugham comentou: “Zanuck nunca utilizou uma única linha do meu guião…. Tomaram imensas liberdades com o meu romance original no guião que acabou por ser filmado. Mas Maugham sentiu-se satisfeito por “ter sido eliminado por $15,000" e admitia que “The Razor's Edge” tinha algumas qualidades de acção, de movimento ("pedestrian”) que convidavam à injecção de certos estímulos cinematográficos. “

Estreado a 20 de Novembro de 1946, no "Roxy", em New York City, numa soirée de gala, “O Fio da Navalha” dividiu opiniões críticas. Muitos apoiaram entusiasticamente, mas o crítico do “The New York Times” refere "diálogos vazios". O que não impediu o filme de galopar nas bilheteiras até uma receita de cinco milhões de dólares (tendo custado 1, 2 milhão).
Na cerimónia de atribuição dos Oscars do ano, “O Fio da Navalha” ganhou o “Oscar de Melhor Actriz Secundária (para Anne Baxter), além de ter sido nomeado em outras três categorias: Melhor Filme, Melhor Actor Secundário (Clifton Webb) e Melhor Direcção Artística (a preto e branco). Entretanto, nos Globos de Ouro, alcançou duas estatuetas: para os dois actores secundários (Clifton Webb e Anne Baxter).
Perante estes resultados, artísticos e sobretudo económicos, Zanuck pensou numa sequela, mas Maugham não aceitou: “A única sequela que conheço tão boa como o original é “Don Quixote”, e eu estaria louco se admitisse uma continuação para “The Razor's Edge".
O filme foi lançado com uma boa proposta: “Ele tinha tudo e não queria nada. Aprendeu que não tinha nada e queria tudo. Salvou o mundo e ficou devastado. O caminho para a salvação é tão cortante e fino como o fio da navalha.” O que se aproxima muito da frase de Katha-Upanishad que serve de citação inicial à obra literária: “Difícil é andar sobre o fio aguçado de uma navalha e árduo, dizem os sábios, é o caminho da salvação.”
Estas obras, tanto o romance de 1944, como o filme, de dois anos mais tarde, terão sido percursoras do movimento “hippie” que se desencadeou durante a década de 60, bem como instigadoras fundamentais das inúmeras peregrinações ao Oriente, em direcção a Kathmandu e outras paragens de inspiração budista e hinduísta. Foram igualmente importantes para modificar o olhar e a posição do Ocidente em relação ao Oriente, afastando a ideia de que por estas bandas asiáticas só imperava o mistério maléfico de Fu Manchu e parceiros. Rapidamente citem-se duas razões para avalizar uma boa adaptação: a primeira é que se não se quer ser fiel ao espírito da obra, então porque se adapta? A segunda é que nem sempre (ou melhor, quase nunca) uma adaptação fiel ao romance (ou à obra original) assegura uma nova obra de qualidade. Dito isto, tudo é possível. No caso da versão de 1946 de “The Razor’s Edge” há que referir desde logo algo que me parece muito original na altura: aparecer a personagem do escritor, enquanto tal (Somerset Maugham em pessoa) que convive com as outras personagens do seu romance em pé de igualdade. Ele funciona como no livro: um inquisidor que vai despoletando diálogos, recolhendo informações, inquirindo, procurando saber, ligando factos e figuras, dando algum sentido a uma história cheia de hiatos. Herbert Marshall é um W. Somerset Maugham plausível e correcto, não intervindo demasiado, olhando com alguma ironia esse "jet-set" que interpela, essa "beautifull people" com que se encontra, mas nunca deixando de os observar com alguma ternura e sensibilidade. Para Maugham, um mineiro e um dandy podem e devem ser vistos com a mesma delicadeza de olhar e igual afecto. Ambos participam de uma obra muito vasta, ambos se moldam com a mesma matéria, com fraquezas e vícios, virtudes e forças desconhecidas a uma primeira impressão. O que não quer dizer que todos sejam objecto da mesma fraternidade e simpatia. Ao longo do romance há personagens de sombreado mais carregado, de interpretação menos dúbia. Mas, obviamente, que o prazer da companhia vai direitinho para Larry Darrell, que dir-se-ia o “seu tipo inesquecível”.
A adaptação parece-me extremamente interessante, porquanto não se procura manter apenas fiel às peripécias do romance, mas procura “adaptá-lo” a um novo contexto narrativo, sem perder a essência da obra donde parte. Houve que concentrar situações e personagens, há figuras que desaparecem, como Suzanne Bouvier, outras que ganham mais força no filme, como Isabel Bradley, Sophie Nelson Macdonald ou Elliott Templeton (valorizadas, e muito!, pelos desempenhos notáveis de todos os actores que os vivem), há muita conversa em busca do Absoluto que é substituída por imagens que tendem a instalar a sugestão. Há uma soberba fotografia que acentua o lado espiritualista do projecto, sublinhando a riqueza dos cinzentos, num mundo que nunca é visto num agressivo e contrastado preto e branco.
Há infelizmente, como já procurei referir a abrir, algumas sequências de um exotismo de pacotilha, sobretudo nas “caves” de Paris, com parisienses de bigodinho e comportamento estereotipado. Mas existe, por outro lado, uma preocupação de verdade noutras cenas, quer nos ambientes requintados de Chicago ou Paris, quer nas minas francesas ou nas alturas das montanhas indianas.
Resumidamente, parece-me um filme plasticamente muito bem resolvido, sem o sopro do génio na realização, é certo, mas com o saber técnico e o rigor seguro de um profissional competente, servido aqui e ali por alguma respiração a rondar a excepção, o que torna o projecto ambicioso e exaltante. É o tipo de filme que se vê e se não esquece facilmente.

O Filme de 1984
O mesmo não se poderá dizer de “O Fio da Navalha”, na sua versão de 1984, rodada por John Byrum, com a colaboração no argumento de Bill Murray, que é igualmente o protagonista. Nalguns aspectos, a história repetia-se. Bill Murray, apaixonado pelo projecto, teve de se impor à produtora, a Columbia, com argumentos idênticos aos de Tyroner Power, quarenta anos antes: “Se quiserem mais “Biggie Goes to College Movies" (tipo de filmes que interpretava com imenso sucesso), terei de fazer “The Razor's Edge”.
Inicialmente há que referir a adaptação que é, curiosamente, o inverso da de 1946: aqui tudo se transforma. Larry Darrell é visto abundantemente durante a sua contribuição na I Guerra Mundial (como elemento de uma ambulância da Cruz Vermelha, e não como piloto, o que desvia o filme do romance para o romancista: Maugham é que desempenhou semelhante tarefa durante esse conflito), o que permite várias sequências de movimentadas acções militares, que acenam à espectacularidade, mas acabam por sofrer de um decorativismo sem autenticidade, cheirando tudo a plástico e a vulgar guarda-roupa. Depois, o tratamento dado ao romance é discutível, não tanto por sublinhar umas situações e personagens e relegar para a sombra outras. Essa seria uma liberdade que se justifica, se os fins o confirmassem. Mas, infelizmente, nada se passa assim. Isabel é quase esquecida, para dar lugar a uma Sophie muito mais presente (a escolha das actrizes desde logo prenunciava tal: Theresa Russell é Sophie MacDonald, Catherine Hicks é Isabel Bradley), sem que se consiga nada de suplementar (muito pelo contrário, a obra fica coxa). A personagem de Larry Darrell é construída por Bill Murray na linha das suas composições na época (“Stripers” ou “Os Caça-Fantasmas”, por exemplo), e muito longe do que depois seria o seu trabalho num outro registo, em “Lost in Translation”, por exemplo. Demasiado humor de situação e pouca ironia. Parece que a ideia de Murray-Byrum era actualizar a mensagem do romance e levá-la as gerações mais jovens. Intenções malogradas, já que o insucesso foi completo e o filme um tremendo “flop”. Finalmente, todo o projecto enferma de um mesmo vício: um esteticismo “bonitinho” que passa da fotografia à música, da direcção artística aos cenários. Tudo muito bilhete-postal, desde as cenas rodadas no campo de batalha até aos interiores de Paris ou aos exteriores da Índia. John Byrum que se estreara em 1974, com uma obra profundamente interessante e surpreendente, “Inserts”, prosseguira-a depois com Heart Beat (1980), ainda muito estimável, mas daí em diante nunca mais se voltou a notabilizar. Construiu uma lenda de autor intratável que o lançou para raras contribuições na televisão e pouco mais. O seu “The Razor's Edge” (1984) é uma decepção que, todavia, mantém admiradores incondicionais (veja-se o site
http://www.theoldcorner.org.uk/exclusive.htm).
O FIO DA NAVALHA
Título original: The Razor's Edge
Realizador: Edmund Goulding (EUA, 1946); Argumento: Lamar Trotti, segundo romance de W. Somerset Maugham; Darryl F. Zanuck (sequências adicionais); Música: Alfred Newman; Fotografia (p/b): Arthur C. Miller; Montagem: J. Watson Webb Jr.; Direcção de arte: Richard Day, Nathan Juran; Decoração: Thomas Little; Maquilhagem: Ben Nye; Direcção de produção: Raymond A. Klune; Guarda-roupa: Oleg Cassini, Charles Le Maire, Sam Benson; Assistentes de realização: Saul Wurtzel; Departamento de arte: Paul S. Fox, Lady Elsie Mendl; Som: Alfred Bruzlin, Roger Heman Sr.; Efeitos especiais: Fred Sersen; Produção: Darryl F. Zanuck; Companhia produtora: Twentieth Century-Fox Film Corporation
Intérpretes: Tyrone Power (Larry Darrell), Gene Tierney (Isabel Bradley), John Payne (Gray Maturin), Anne Baxter (Sophie Nelson Macdonald), Clifton Webb (Elliott Templeton), Herbert Marshall (W. Somerset Maugham), Lucile Watson (Louisa Bradley), Frank Latimore (Bob Macdonald), Elsa Lanchester (Miss Keith, secretária da Princesa), Fritz Kortner (Kosti), John Wengraf (Joseph), Cecil Humphreys (Homem sagrado), Harry Pilcer (dançarino), Cobina Wright Sr. (Princesa Novemali), Dorothy Abbott, George Adrian, Demetrius Alexis, Olga Andre, John Ardell, Frank Arnold, Juan Arzube, Richard Avonde, Claude Avray, Louis Bacigalupi, Virginia Barnato, Robert Barron, Claude Bayard, Eugene Beday, Pati Behrs, Emile Bejaut, Stanislaw Belski, Wilson Benge, Evelyn Bennett, Carmen Beretta, Walter Bonn, Eugene Borden, Jacques Boyjan, George Brenner, Mary Brewer, Maurice Brierre, George Bruggeman, Frederic Brunn, Paul Bryar, Joseph Burlando, Peter Camlin, Renee Carson, Jaque Catelain, David Cavendish, André Charlot, Jack Chefe, Gordon Clark, Louise Colombet, Helene Copel, Robert Cornell, Franco Corsaro, Noel Cravat, Mary Currier, Adolph Damotte, Roberta Daniel, Eddie Das, Alexis Davidoff, John Davidson, George Davis, Jack Davis, Jean De Briac, Paul De Corday, Marcel De la Brosse, Gene De Liere, Jean Del Val, Harry Denny, Ray De Ravenne, Henri DeSoto, Marion de Sydow, Juan Duval, Gerald Echaverria, Gale Entrekin, Edward Equinet, Nestor Eristoff, Ben Erway, Joe Espitallier, Paul Everton, Fed Farrell, John Farrell, Bertha Feducha, Bess Flowers, Robert Ford, Leo Galitzine, Jack Gargan, George Gastine, Helen Giere, Fred Godoy, Sol Gorss, Dolores Graham, Don Graham, Fred Graham, Marcelle Grandville, Greta Granstedt, Edna Mae Harris, Susan Hartmann, Jamiel Hasson, Yvette Heap, Bert Hicks, Jackson Jordan, Wanda Karska, Dorothy Kelly, Frank Kerbrat, Hassan Khayyam, Ilia Khmara, Nicholas Kobliansky, Theodore Kompanetz, Edward Kover, Serge Krizman, Yolanda Lacca, Isabel La Mal, Raymond Largay, Robert Laurent, Tony Laurent, Eddie Le Baron, Henri Letondal, Arthur Little Jr., Manuel López, Jacques Lory, Charles Loyal, Tanya Lupeea, Maurice Marsac, Andre Marsaudon, Michael Mauree, George Mendoza, Louis Mercier, Ruth Miles, Rene Mimieux, Baldo Minuti, Frances Morris, Diana Mumby, Henri Muro, Forbes Murray, Joan Myles, George Navarro, Mayo Newhall, Barry Norton, Robert Norwood, Suzanne O'Connor, Peggy O'Neill, Alfredo Palácios, Manuel Paris, Helen Pasquelle, Marg Pemberton, Albert Petit, Alex Pollard, Albert Pollet, Marie Rabasse, Alfred Redgis, Frances Rey, Loulette Sablon, Cosmo Sardo, Leonardo Scavino, Suzanne Schwing, Shushella Shakari, Robert Shaw, Mario Siletti, Paul Singh, Dina Smirnova, George Sorel, Aldo Spoldi, Lillian Stanford, Ann Staunton, Hermine Sterler, Laura Stevens, Adele St. Mauer, Blanche Taylor, Dr. Ross Thompson, Olga Marie Thunis, Willy Thunis, Nanette Vallon, Roger Valmy, Tyra Vaughn, Odette Vigne, Jacques Villon, Betty Lou Volder, Jack Wagner, Basil Walker, Joe Warfield, Joanee Wayne, Barrett Whitelaw, Crane Whitley, Marek Windheim, Al Winters, Bud Wolfe, Frank Wolf, Jack Young, etc. Duração: 145 minutos; Locais de filmagem: Denver, Colorado (EUA); Data de estreia: Dezembro de 1946 (EUA).

O FIO DA NAVALHA
Título original: The Razor's Edge
Realizador: John Byrum (EUA, 1984); Argumento: John Byrum, Bill Murray, segundo romance de W. Somerset Maugham; Música: Jack Nitzsche; Fotografia (cor): Peter Hannan; Montagem: Peter Boyle; Design de produção: Philip Harrison; Direcção de arte: Malcolm Middleton; Decoração: Stuart Rose, Ian Whittaker; Guarda-roupa: Shirley Russell, Catherine Halloran, Michael Jeffery, Aperna Kasara; Maquilhagem: George Frost, Mike Jones, Mike Lockey; Direcção de produção: Atul Bhasin, John Comfort, Sudesh Syal, Serge Touboul; Assistentes de realização: Laurent Brégeat, Ray Corbett, Kieron Phipps, Kanwal Swaroop; Departamento de arte: Terry Apsey, Jean-Pierre Bazerolle, Arun Joglekar, Robert Le Corre, Marcel Simeon, Saba Zaidi; Som: Rene Borisewitz, Stan Fiferman, Leslie Hodgson; Efeitos especiais: Martin Gutteridge; Casting: Elizabeth Desouches, Jacqueline Perpere, Jennifer Shull, Maude Spector; Produção: Harry Benn, Rob Cohen, Jason Laskay, Robert P. Marcucci; Companhias produtoras: Columbia Pictures Corporation, Marcucci-Cohen-Benn Production.
Intérpretes: Bill Murray (Larry Darrell), Theresa Russell (Sophie MacDonald), Catherine Hicks (Isabel Bradley), Denholm Elliott (Elliott Templeton), James Keach (Gray Maturin), Peter Vaughan (Mackenzie), Brian Doyle-Murray (Piedmont), Stephen Davies (Malcolm), Saeed Jaffrey (Raaz), Faith Brook (Louisa Bradley), André Maranne (Joseph), Bruce Boa (Henry Maturin), Serge Feuillard (Coco), Joris Stuyck (Bob MacDonald), Helen Horton, Michael Fitzpatrick (Tyler), Robert Manuel (Albert), Sam Douglas, Nora Connolly, Jeff Harding, Richard Oldfield, Gordon Sterne, Mary Larkin, Christopher Muncke, Russell Sommers, John Moreno, Hugo Bower, Abbie Shilling, Cassie Shilling, Jean-François Soubielle, Claude Le Saché, Caroline John, Daniel Chatto, Louis Sheldon, Kunchuck Tharching, Derek Lyons, etc.
Duração: 128 minutos; Data de estreia: 19 de Outubro de 1984 (EUA).

segunda-feira, agosto 13, 2007

MÁ PUBLICIDADE

Este anúncio tem graça, o do "Fino Dental" não tem nenhuma.

Não consegui a imagem (algém ma envia?), o que lamento, mas o anúncio da Super Bock que se chama “Fino Dental” e anda por aí nos Mupis é de muito “mau gosto” (sim, também é um trocadilho de mau gosto!). Há anúncios que são maus, outros exageram. Este, que relembra um par de pernas femininas, em mau "período" (ou bom "período", consoante os pontos de vista, mas sempre em “período”!), ultrapassa as medidas.
Será que, depois de ver aquele anúncio, alguém, a não ser o príncipe da Transilvânia, mais conhecido por Drácula, fica com vontade de beber uma cerveja Super Bock?

sexta-feira, agosto 10, 2007

VISTA DA GRAÇA



Marika é italiana, de Modena, estuda literaturas ibéricas, acabou o doutoramento e anda há três meses por Portugal a especializar-se nestas áreas. Conheci-a há anos, quando visitou Portugal pela primeira vez, terminava um mestrado em cultura portuguesa, estudava a persistência (ou o progressivo afastamento, melhor dizendo) do cinema italiano das salas portuguesas, foi ter um dia à Biblioteca Museu República e Resistência onde descobriu um livro meu sobre Censura e Cinema em Portugal, durante o Estado Novo, quis falar comigo para saber mais, falámos, ficámos amigos, passou pelo Famafest como jurada. Regressou a Modena, embrenhou-se então num doutoramento que não a deixou respirar. De famílias não muito abastadas, foi trabalhando num restaurante para assegurar a subsistência, conta esses anos com um sorriso, mas dorido. Tem 34 anos, é solteira, explica que “ainda não calhou”, “ou não teve tempo”, para encontrar “o tal”, deixa no ar a suspeita de que a sua vida familiar tem os problemas pendentes, ninguém percebe muito bem por que não arranja um emprego sólido com as capacidades que tem, ninguém percebe por que não se instala numa vida familiar cómoda, ninguém percebe por que arranja uma bolsa de mês e meio para estudar em Portugal, e aqui passa três (muito económicos) meses a visitar Vila Viçosa, Coimbra ou o Panteão Nacional para olhar apenas “os túmulos dos seus heróis”, percorrer as ruas que já foram deles, ou estudar palimpsestos de histórias antigas.
Marika é mulher de corpo robusto e roliço, bonita de rosto, de nariz arrebitado, para ser coerente com a lenda, pele que sabe bem tocar, e uma forma muito especial de estar na vida, rindo de forma distanciada do que de menos bom lhe vai acontecendo, e aproveitando cada minuto de felicidade que vai atravessando. Há dias, para marcar solenemente o seu regresso a Modena, fomos jantar à Graça. Não era essa a meta original, mas na vida há sempre imprevistos que se devem seguir. Saímos de casa com a ideia de ir a um restaurante argentino para a zona da rua da Escola Politécnica, mas por indicação do taxista, que nos falou de “um bom restaurante”, também com “uma vista deslumbrante sobre Lisboa”, “e boa comida”, acabámos por desembarcar na rua Damasceno Monteiro (que Marika associou logo ao italiano Antonio Tabucchi, “A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro”, assinala), onde o “Via Graça” satisfez todas as expectativas criadas pelo simpático motorista.
Depois de um jantar pouco frugal, saímos para a rua com vontade de passear pelas ruas de Lisboa, de descer até ao Martim Moniz, de ajudar a digestão enquanto se gozava o prazer de uma noite de Verão quente, mas não exageradamente abafada. Corria uma aragem breve e doce, nas ruas os carros eram raros, deslizavam sem ruído nem pressa, embalados pela calmaria que tudo envolvia. Ouviam-se as conversas que vinham de dentro das casas, daquele terceiro andar surgia uma discussão mais acalorada de um casal de jovens, nas paredes grafitis com a sabedoria das coisas simples exemplificadas em palavras que correm pelos muros: “A realidade não é o que parece” ou “Por trás de uma mulher feliz há um machista abandonado.” Quem escreveu? O casal desavindo do terceiro?
Descemos lentamente a rua da Voz do Operário, a Calçada de S. Vicente, a Calçadinha do Tijolo. Espreitamos as obras no Pátio Quintalinho. Entramos abertamente na Rua das Escolas Gerais, com as Escadinhas das mesmas ali ao lado. As casas têm as janelas abertas e escorregam vestígios de novelas e de telejornais para o exterior. Há um ou outro casal de jovens turistas, que saem de tabernas e tascas. Lá dentro, bebendo cervejas ou tinto, com sardinhas assadas anunciadas em tabuletas à porta, os clientes de sempre. Homem de pele calejada, mãos trabalhadas pelas obras, mulheres de saia curta e gargalhada fácil. Olho e sinto uma tremenda nostalgia do que nunca conheci, dessas noites em tabernas de bairro, dessas horas mortas entre o espreitar da televisão e o copo de tinto, dessa conversa sem sentido aparente, dessa calma que se respira numa noite de verão… Aqueles são homens e mulheres que tudo indicam não lêem os livros que eu leio, não vêem os filmes que eu vejo, não vão ao teatro que eu vou, não lêem os jornais que eu folheio diariamente. Encontramo-nos por vezes nas páginas de um jornal desportivo que nos une, nas imagens de um filme de televisão, na assembleia de voto em que até poderemos escolher o mesmo candidato. No entanto, nesta noite de verão onde tudo parece suspenso de uma serenidade imaculada, como os sinto meus irmãos, como me parece absurda a divisão, a separação, o fosso. Gosto do olhar melancólico e dorido, mas suspenso de um sorriso bonito, da mulher de vermelho que, sentada no banco da tasca, estende as pernas a espreguiçar-se. A sua imagem acompanha-me nos dias seguintes. Lá atrás adivinho o balcão escuro, onde os cotovelos do patrão se apoiavam enquanto falava. Mais à frente uma silhueta de homem, olhando a televisão e levando à boca a garrafa de cerveja, que esvazia a goles pequenos. Pensei em Stuart. Mas não eram os geniais traços do desenhador da Lisboa das vielas. São os genuínos modelos que persistem nesta “Lisboa que eu amo.”
Parámos, a Marika, a Eduarda e eu, numa paragem de eléctricos. A espera prolonga-se. Descobrimos, ao ver os horários, que o último já passara há mais de vinte minutos. Regressámos. De táxi, a caminho das avenidas novas com a recordação de “Metropolis”, de Fritz Lang, na memória.

quarta-feira, agosto 08, 2007

CINEMA: "PROOF"

DIÁLOGO ENTRE DOIS JOVENS AMIGOS,
À SAÍDA DE “À PROVA DE MORTE”

Lisboa, Saldanha, noite de Verão, 23º, corre uma aragem que ajuda a suportar o calor. Dois jovens amigos saem do centro comercial, depois de uma sessão de cinema. Calças escuras, um traz uma camisa preta, de tecido leve, o outro uma t-shirt azulada. Caminham pelo passeio em direcção ao Marquês.
- Ok, já percebi. “À Prova de Morte” (no original “Grindhouse: Death Proof”) integra um díptico, que se inspira no que se chamam “exploitation movies” e também nos “slasher films”. Li isso tudo nos jornais. O outro filme que completa o conjunto, já me disseram também, só vai estrear em Portugal em 27 de Setembro, o realizador é Robert Rodriguez, e chama-se “Grindhouse: Planet Terror”. Certo?
- Certo. Vejo que andaste a estudar umas coisas antes de vir ao cinema…
- Pois, li umas coisas mas continuo com muitas dúvidas sobre o que é isso de “exploitation movies” e “slasher films”. São géneros?
- Mais sub-géneros do cinema americano dos anos 70 e 80, que merecem especial atenção e carinho por parte de Tarantino. Quase todos os seus filmes são homenagens a essas obras, desde “Cães Danados” a “Pulp Fiction”, de “Jackie Brown” ao duplo “Kill Bill” (enfim, estes com outras influências à mistura). Mas “exploitation movies” e “slasher films” não são a mesma coisa. “Exploitation movies” é mais uma designação de filmes de acção, de orçamento modesto e cariz muito popular, que se produziam às dezenas nas décadas de 70 e 80 nos EUA. Dentro deste modelo de produção, de que o Roger Corman foi um precursor dos anos 60 e o grande instigador, criaram-se muitos sub-géneros. Os “slasher films” são um deles.
-Ok. Esse é um dos meus problemas. Explica melhor esse tipo de filmes. Já sei que são de acção, populares e pobrezinhos de orçamento, mas há milhares assim…. O “Jackie Brown”, que é dos Tarantinos de que mais gosto, era baseado num “black exploitation”, por isso foi buscar uma das vedetas deste género de películas, Pam Grier… Mas os “slasher films”…
- Os “slasher films” são “exploitation movies” com características próprias. Existem mulheres provocantes e indefesas, um “serial killer” e, normalmente, desgovernadas corridas de automóveis. Tudo misturado com violência em barda, em estilo “gore”. “Proof” tem muito de tudo isso…
- Mas não se pode dizer que seja um filme de baixo orçamento. Esse é um dos pecados de Tarantino, um dos seus actos gratuitos. Adora um certo tipo de filmes, mas brinca com eles com orçamentos que destroem pela base a homenagem. Fala-se muito em “Proof” de um filme notável, de 1971, “Vanishing Point”, de Richard C. Sarafian. Pois bem, tem muito pouco a ver. Esse era um filme inteligente, profundamente consequente com a crítica à sociedade norte-americana da época, feito com pouco dinheiro, mas muito talento e muitas ideias. Em “Proof” há talento, claro que Tarantino tem talento!, mas expressa-se sobretudo pelo fogo de artificio, pelos meios de produção, pela capa de efeitos especiais que ostenta, e deixa na sombra a profundidade de análise, o íntimo, o mais secreto… As ideias de Tarantino são sugadas aqui e ali, ele limita-se a baralhar e dar de novo, agora sob uma patente registada que agrada muito aos pós-modernos: coisas populares com roupagens modernaças e muito “tecno”. Não me convence…
-Olha que nada é por acaso em Tarantino e a crítica à sociedade é muito consequente. “Proof” é uma excelente crítica à América violenta de Bush. Repara na construção do argumento, que obedece a dois tempos: uma primeira “temporada” expositiva que conduz a um crime: um grupo de raparigas que é desafiada por um ex-duplo de cinema (ele anuncia-se como tal, não sabemos se é verdade ou não), Stuntman Mike (Kurt Russell). Conversas, convívio, uma aproximação, o convite a uma miúda num bar para aproveitar a boleia, e depois a primeira grande cena de violência: Stuntman Mike prende a borlista no carro, no lugar do pendura, e assassina-a, literalmente, atirando-a contra as paredes do viatura, para depois alcançar o automóvel das raparigas e colocar-se à sua frente, por forma a abalroá-las frontalmente com o seu possante carro, “à prova de morte”, e desfazê-las num ápice.
- Uma cena infernal, concordo… - No segundo “tempo” do filme, parece que vamos assistir à repetição da façanha do assassino (que, certamente, alcança o orgasmo nessas diabólicas demonstrações de virilidade automobilística!), com a preparação do golpe executado da mesma forma, mas desta vez o feitiço volta-se contra o feiticeiro e quem é trucidado é o machista americano às mãos de umas jovens enraivecidas, que sabem utilizar todos os argumentos masculinos com sabedoria “extra” (duas delas são efectivamente “duplos” do cinema). Para que essa absorção da masculinidade seja completa, uma vai ao ponto de ir buscar um tubo de ferro a uma lixeira, para assim ficar munida do elemento fálico simbólico por excelência, para executar a vingança. São as mulheres contra o homem, a vitória do feminino contra o machismo mais conservador e reaccionário da América…
- Queres com isso dizer que basta uma mulher ir buscar um símbolo fálico e dar com ele num homem até à morte para termos uma interpretação progressista da guerra de sexos e do triunfo do poder das mulheres numa América reaccionária? Olha, parece-me antes de tudo o mais que toda a simbologia utilizada por Tarantino, todas as suas ideias são de uma pobreza, não direi franciscana, mas templária. Depois julgo muito triste que para “marcar o seu terreno” e bater “o homem”, as mulheres tenham de ir buscar símbolos fálicos para o combater. É como se confessassem que para derrotar o macho há que ser macho, para se matar a besta há que ser besta. Para se extirpar a violência há que ser ainda mais violento. Nada disto me agrada, nada disso me merece muita atenção.
- Mas a violência é gozada, divertida, parodiada…
- Achas? A mim parece-me que Tarantino gosta da violência pindérica das “exploitation movies” e do sadismo dos “slasher films” e copia-os com muito dinheiro para gastar em efeitos especiais, que são absolutamente notáveis, é certo, e com meia dúzia de álibis cinéfilos que não me convencem. Faz agora “explotation movies” para a burguesia ver e “adorar”, ela que nos anos 70 e 80 não frequentava os cinemas de bairro onde os autênticos “exploitation movies” eram projectados. Nessa altura, os “black explotation”, por exemplo, tinham um papel libertador e catártico. Hoje não passam de filmes domesticados que correm nas grandes salas dos grandes centros das capitais, para plateias convencionais que se querem muito anti-convencionais por assistirem a “cult movies” de “autores” que nada têm para dizer e gastam fortunas com o seu dandismo de moda. Tarantino é um fenómeno de moda, muito bem explorado pela indústria. Tem algum talento é certo, viu muitos filmes das lojas de trezentos, arrota uma cinefilia de pobre que cai bem aos endinheirados e aos abastados da cultura, e faz pela vida sem se incomodar muito. Não é parvo, não senhor!, tem algumas ideias, mas é tudo coisa rasteira, sem grandeza, nem projecção. Uma sequência de Scorsese tem mais ideias que a filmografia completa de Tarantino.
- Então arrasas assim “Proof”? Nada a ressalvar?
- Não. Acho um filme interessante. Dou-lhe três estrelas. Tem duas ou três sequências muito boas. Quando uma das miúdas vem para fora do bar, para o alpendre, olhar a noite e os carros, tendo a seu lado uma estrela de néon vermelho, num plano de recorte azul-escuro, é algo muito bonito. Apetece perguntar, por que não vai ele por ali? Mais adiante, o diálogo do xerife com o seu ajudante nos corredores de um hospital é muito bom. Magnifico mesmo (o velho Michael Parks e o filho, James). Aí há humor, distanciamento. A representação de Kurt Russell é excelente, na linha das suas melhores (em filmes, esses sim grandiosos filmes “populares”, de John Carpenter). As actrizes são todas elas magníficas (há mesmo uma “stuntwoman” brilhante, Zoe Bell). Mas achar o filme interessante, com alguns bons momentos, está muito longe dos delírios de quem proclama aos sete ventos que há uma história do cinema Ante- Tarantino e outra Pós-Tarantino.
- É um realizador definitivamente importante, acredita.
- Olha, há dias morreram dois realizadores realmente “importantes”: o Bergman e o Antonioni. O Tarantino, a remoer “exploitation movies” e “slasher films”, nunca sairá daí: um (demasiado) valorizado e prestigiado autor de “remakes”, com o seu toque pessoal, com muito boa imprensa, com a indústria atrás, mas sem grandeza, sem marca universal. Anda na onda, enquanto a onda durar.
- Não nos vamos zangar por isso. Vamos até ao “Lux”? Vai uma tequilla?
- Ná. Prefiro uma cerveja fresquinha.
Entram no carro, estacionado perto do Fórum Picoas, e partem. O carro é cinza metalizado e não tem no tejadilho a caveira de Stuntman Mike nem esá artilhado “à prova de morte.” É um banal carro utilitário de cidade.

TARANTINO

UMA ICONOGRAFIA
“SLASHER FILMS”
Os bares de estrada As bebidas, o álcool As carotas atrevidas
o "serial killer"
os carros

a simbologia machista

a violência

em filmagens

TEXTO RECUPERADO


CORRIDA CONTRA O DESTINO
Título original: “Vanishing Point”
Realização: Richard Sarafian (EUA, 1971) Intérpretes: Barry Newman, Cleavon Little, Dean Jagger, Victoria Medlin, etc. Distribuição: Fox Filmes; Estreia: Cinema Berna (20.10.1971)

Ex-herói do Vietname, ex-polícia, ex-cidadão bem comportado de uma ex-democracia, Kowalski é agora um ex-corredor profissional, um outsider que se entretém a entregar carros, levando-os de uma costa à outra dos E. U. A.
Numa sexta-feira qualquer Kowalski apostou levar de Denvèr a S. Francisco um “Dodge Challenger”. E a corrida inicia-se. Com ela a transgressão. Transgressão gratuita que se transforma em algo de sistemático. É o jogo onde tudo se arrisca por coisa nenhuma. Ou, quem sabe, por uma irreal sensação de liberdade. De liberdade que nunca se teve. Que nunca se alcança dessa forma. Mas mesmo assim, sensação de liberdade... Como alguém dirá no filme, Kowalski “não sabe se calhar para onde vai, mas interessa-lhe saber, apenas, quem o irá parar...”

Nessa corrida desenfreada, Kowalski vai transgredindo regras, leis, atirando para a berma da estrada carros de polícia, patrulhas de guardas, desportistas com sede de competição, pesados camiões de indústria, enormes máquinas de redigir decretos ao longo das estradas... Encontrará um pouco de tudo, estará do lado dos consumidores de drogas (que como ele também fogem, sabe-se lá como e de quê?), dos “híppies”, dos negros, dos velhos camponeses deserdados... Pela frente terá a polícia, os linchadores de negros, os legisladores, todos aqueles que vão traçando, pelas estradas, linhas de conduta... E a corrida prossegue, num ajuste de contas individual, suicida, fatal...

Na sua solidão, Kowalski contará com a solidariedade de um cego negro Super Soul, locutor do mais popular programa de todo o "Far-West”, que irá criar para o seu “herói” a imagem de uma bandeira de liberdade, por que se baterá também... E pela qual irá sofrer igualmente no corpo as consequências do risco que aceitou correr. Este o esquema de “Corrida contra o Destino”, filme de Richard Sarafian (de quem apenas conhecíamos “Livre como o Vento”, outra curiosa defesa da liberdade...). Trocadas as motos pelo “Dodge Challenger”, “Vanishing Point” aproxima-se demasiado de “Easy Ridder”, mantendo, aliás, semelhanças de estilo com muitas outras películas de jovens1 americanos, como “Destinos Opostos”, “Em Busca da Felicidade”, “The Pursuit of Happiness”, etc. É evidente o mesmo olhar de desencanto e amargura frente à realidade social americana, tanto em Dennis Hopper, como em Peter Fonda, Bob Raffelsson, Robert Mulligan e agora Richard Sarrafian. Após as feridas que a carne não esquece, fica o desespero de não saber por onde ir…

Apesar de extremamente interessante, digamos mesmo importante, “Corrida contra o Destino” não é um filme isento de falhas. As suas limitações principiam logo pela base donde parte, que deve ter sido um considerável “subsídio” ou “apoio” da “Dodge” para se realizar um filme para glória desta marca. Assiste-se, assim, a uma curiosa situação, que pressupõe contradições de toda a espécie: uma empresa capitalista financia um filme que, em princípio, põe em causa o próprio sistema que o alimenta. Sarafian jogou um jogo difícil e nem sempre se soube desenvencilhar dele. Sobretudo durante toda a primeira parte, “Vanishing Point” quase não deixa de ser o puro elogio de uma marca de automóveis. Aliás, para além deste aspecto, (ou por causa dele) a película não consegue engrenar até perto de meio. Característica que depois se vai diluindo progressivamente, até terminar em tom maior, num crescendo de densidade insuspeita nas cenas principais.
Com alguns defeitos, mas também com inequívoca importância no panorama do moderno cinema americano, “Vanishing Point” aí fica. Um filme a ver.
Lauro António, in “Diário de Lisboa, 22 de Outubro de 1971

domingo, agosto 05, 2007

CINEMA: BELLE TOUJOURS

DIÁLOGO ENTRE DOIS CINÉFILOS,
À SAÍDA DE “BELLE TOUJOURS”
À saída da projecção de “Belle Toujours”, de Manoel de Oliveira, dois espectadores, cinéfilos de longa tradição, trocavam opiniões acaloradas. Os dois eram objectivamente adeptos fervorosos de Luis Buñuel, sendo que um deles não o seria tanto de Oliveira. Mas a conversa decorria animada, começando logo à porta do cinema, e continuando num café da esquina onde ambos se sentaram para a bica da praxe e a troca de impressões que a seguir relato, sem a hipótese de a transcrever palavra a palavra. Socorro-me da memória, que já não é o que foi, mas que ainda vai segurando as pontas do que se ouve.
Cinéfilo Um – … mas, para quê ir buscar uma obra como “Belle de Jour” para ainda por cima a transfigurar através de uma sequela que nunca seria a de Buñuel? Se há filme transgressor, representativo da melhor fase francesa de Buñuel, é este. Se há obra-prima indiscutível que se notabilizou pelo mistério que deixou no ar, atrás de si, que levou o indizível a um plano de perfeição, é esta…
Cinéfilo Dois - … referes-te ao caso da misteriosa caixa de que nunca se soube o conteúdo no filme de Buñuel? Aquela caixa que o cliente asiático abria, na deslumbrada presença de Catherine Deneuve, donde saía um estranho silvo, e que deixava antever prazeres indizíveis, possivelmente sado-masoquista, uma onda que aquecia todo o filme?
Cinéfilo Um – Esse é o aspecto mais marcante, mas todo o filme do Buñuel deixa quase tudo sem explicação, tudo embrenhado nos domínios do subconsciente, do sonho ou do pesadelo psicanalíticos, do mais inquietante que a narrativa automática do surrealismo já nos deu… Ora Manoel de Oliveira parece vir procurar dar respostas ao que não tem respostas. Onde não se deve sequer procurar respostas racionais e inteligíveis. Arranjar soluções para o filme de Buñuel seria aniquilar a obra.
Cinéfilo Dois - O que nunca acontece, nota. A caixa aparece, e o conteúdo continua desconhecido, Severine quer saber de Henri Husson o que o marido conhecia realmente sobre ela e a sua dupla vida, e também não o consegue saber, nem nós, espectadores…
Cinéfilo Um - Pois, é verdade. Mas as conversas entre Henri Husson e o barman são uma explicação demasiado primária da história de “Belle de Jour”. Aquele arrazoado sobre sadismo e masoquismo parece saído das Selecções do Reader’s Diggest. Tudo muito simplista, quando o filme de Buñuel é tudo menos simplista.
Cinéfilo Dois – Acontece que o filme de Oliveira não belisca de qualquer forma o filme de Buñuel (ambos existem por si próprios, com valorização intrínseca, e não é por haver uma sequela que o original se diminui), e o português consegue algumas boas malhas.
É sabido desde sempre, mas sobretudo desde “A Caça” (mas já era visível em “Douro, Faina Fluvial”) o parentesco entre Buñuel e Oliveira, parentesco “à contre coeur”, mas parentesco real. Há muitas afinidades entre o cinema de um e de outro, apesar de Buñuel ser profundamente anti-clerical e Oliveira nunca desdizer a sua costela cristã. Mas as aparências iludem: nem Buñuel era o ateu por que se queria fazer passar, nem Oliveira o cristão exemplar que muitos julgam ver à transparência. Um e outro se referem a uma mesma religiosidade, ambos ostentam uma imagética muito particular, o cinema opaco de Buñuel tem muito a ver com a representação obsessiva de Oliveira. Repara que neste filme não há um plano que não seja objectivamente uma “representação” de actores, logo desde o plano inicial, da orquestra tocando Dvorak no auditório da Gulbenkian. Tudo é “representação”, tudo se passa num palco (ou num décor), até os passeios de Henri Husson por essa Paris outonal, com a estátua de Joana d’Arc sempre no horizonte, as colunatas de pedra, as portas dos hotéis, culminando nessa magnífica cena de jantar num quarto de hotel, à luz das velas, em que quase nada se diz, onde apenas se pensa e repensa o filme de Buñuel, “à luz” do olhar de Oliveira. Eu sei que este não é um filme qualquer, é um filme de Oliveira, o que pressupõe logo uma estética muito determinada que, ou se aceita ou se rejeita, de que se gosta ou não se gosta. Eu por vezes gosto muito, doutras não tanto, desta feita fico hesitante, a meio caminho, mas sou incapaz de recusar integralmente. Não esqueço que este homem tem 97 anos, uma lucidez desarmante, uma inesperada vitalidade, uma austeridade de processos e, ao mesmo tempo, uma ironia que me tocam profundamente. Acho uma bonita homenagem ao filme do mestre, feita com muito amor e alguma perversidade. Penso que Buñuel teria gostado.

Cinéfilo Um – Meu caro, a integridade de Oliveira nunca a ponho em causa. Se há homem íntegro no cinema actual, último avatar de uma floresta de génios de que restam poucas árvores, será ele. Mas esta sua deliberada invasão dos terrenos do surrealismo não me parece conseguida, surge-me algo parecido com a visão iconoclasta de Buñuel, revista pelo olhar “culpado” de um católico que por vezes “pecou”, ao longo da vida, por “pensamentos, palavras e actos”, mas no final da mesma se mostra subitamente “arrependido”. Não contente em se arrepender sozinho para descansadamente ir para o Céu, quer levar consigo, postumamente, o seu amigo Buñuel... Catherine Deneuve terá tido razão em não querer embarcar na aventura.
Cinéfilo Dois – Não o vejo assim, além de que Bulle Ogier a substitui à altura. Aliás, ela e Michel Piccoli vão muito bem (o que já não direi do restante elenco, aí dou a mão à palmatória).
Nesta altura o Cinéfilo Dois levanta-se, vai ao balcão e pede um whisky, “duplo!”. O empregado, em vez de um “tout de suite”, diz-lhe que o servirá de imediato. Quando chega à mesa, já os dois cinéfilos reataram a conversa sobre “Belle Toujours” que o empregado, “sem querer ser intrometido”, disse que também já vira (“O cinema fica mesmo aqui à frente!”) e que não compreendera uma coisa:
Empregado – Parece que este filme é baseado num outro, dos anos 60, de Buñuel… Ora eu tenho 29 anos, não o vi nunca. Como posso saber de que tratava, se nem existe em versão DVD (já me fui informar na Fnac!)? Peço desculpa pela intromissão, mas os senhores são clientes habituais…
Cinéfilo Um – Nenhum problema com isso. É sempre bom descobrir pessoas que gostam de cinema. Você não tem Internet? É fácil procurar por “Belle de Jour”, ler umas coisas sobre o filme. Na verdade este de Oliveira, procura ser uma homenagem a esse outro filme, a Buñuel e Jean-Claude Carrière, ambos argumentistas que adaptaram inicialmente o romance de Joseph Kessel …
Cinéfilo Dois – …mas posso dar-lhe uma ideia num minuto. Este é daqueles filmes que, ou se demoram dias a tentar descrever, ou se resumem, de forma muito simplista, em meia dúzia de linhas. A história do filme de Buñuel fala de um casal de burgueses bem instalados na vida: ele é Pierre Serizy (Jean Sorel), médico, ela é Severine (Catherine Deneuve).
Só para lhe dar uma ideia da complexidade da narrativa, o filme começa com o casal passeando de carruagem. De repente o marido pára e ordena aos cocheiros que dispam a mulher, a amarrem a uma árvore, a torturem e a violem a seu belo prazer. Estamos no domínio mais puro do sado-masoquismo ou do bondage, mas afinal tudo não passa de um sonho. Severine acorda e descobre que sonhara, que tivera um pesadelo…
Cinéfilo Um – Terá sido mesmo um pesadelo? Não seria a realidade sonhada? Os desejos mais íntimos satisfeitos?
Cinéfilo Dois – Ora aí está toda a complexidade da obra. Nunca se saberá nada. O que é sonho, o que é realidade, o que se deseja, o que se teme, ou mesmo quando se teme o que se deseja ou se se deseja o que se teme. Puro surrealismo, aqui atravessando zonas de um freudianismo de profunda pulsão libidinal.
Empregado – estou a ver… quer dizer… procuro ver…
Cinéfilo Dois – Continue a procurar, enquanto não aparecem mais clientes. Eu também vou continuar: Severine percebe-se que ama o marido, mas que está sexualmente descontente. Para dar satisfação a si própria e ao marido (só sexualmente feliz dará prazer ao marido), e aceitando o conselho de um amigo, Henri Husson (Michel Piccoli), que lhe indicara o endereço de uma casa de prostituição fina, resolve procurar Madame Anaïs (Geneviéve Page) para aceitar clientes diurnos. Passará a ser, de dia, uma puta de luxo, para clientes de estimação, e de noite a bela e amantíssima esposa de Pierre.
Empregado – O Michel Piccoli aparece então nos dois filmes a fazer o mesmo papel…?
Cinéfilo Dois – Pois aí está outro dos argumentos de Oliveira: ver o que aconteceu àquelas personagens 38 anos depois. O Piccoli aceitou participar na sequela, a Catherine Deneuve não, foi substituída pela Bulle Ogier. Ambos são Henri Husson e Severine quase quarenta anos depois. Encontram-se ocasionalmente num teatro, ouvindo a 8ª Sinfonia de Dvorak, ela foge ao confronto, vai-se esgueirando ao destino, até que o que tem de acontecer, acontece e jantam juntos num quarto de hotel, rodeados de criados…
Empregado – Cena pouco real… Se queriam estar sós, não seria preferível jantarem sós, sem aquela gente toda à volta?
Cinéfilo Um – Meu caro, este casal não quer sexo, quer relembrar o passado. Na impossibilidade de viverem o presente, querem reviver o passado. E acertar contas. Ele vingar-se dela, ela acertar contas consigo própria. Ambos querem a paz possível para a inquietação que os atormenta. Ela afirma-se mesmo “uma outra mulher”. Quer “entrar para um convento”, talvez para se martirizar por um passado de culpa. Mas a inquietação permanecerá: nenhum alcançará os seus intentos. Tanto ela como ele não conseguirão acalmar o seu íntimo, saber o que não sabiam, ir além da realidade mais aparente. Este não é um filme para resolver as dúvidas do outro filme, mas para as prolongar, 38 anos depois. Buñuel levantou as questões, Oliveira manteve-as.
Empregado – Qual a vantagem? Se não resolve nada, nem levanta as questões que já tinham sido colocadas numa obra anterior?
Cinéfilo Um – Essas são as virtudes e os limites do filme. O olhar é diferente. Buñuel nunca pensaria em mandar Severine para o convento, expiar as culpas. Era mais provável manter Severine aos 70 anos a frequentar ainda a casa de Madame Anais. Por isso Oliveira prolonga as dúvidas, mas numa outra direcção: a sua. Curioso este entrelaçar de caminhos, este cruzar de olhares.
Cinéfilo Dois – Traga aí a conta. Tenho de ir. Sabem que mais? Dois velhos sabidos, é o que é!
Ambos pagam, e saem para a luz coada da noite. Cruzam-se com duas garridas senhoras que segredam entre si, antes de entrarem no café.
Cinéfilo Um – Olha lá, estas não são…?
Cinéfilo Dois - … se não são, são tão parecidas!...
Ambos riram. Corre o pano e ouve-se Dvorak em fundo. Não é Paris, não chove. Passa um galo no corredor de um hotel, por entre as portas dos quartos. Uma está aberta.
Lisboa, 20 de Julho de 2007

in "O Progresso", nº 1, Agosto de 2007

CENSURA E LIBERDADE DE EXPRESSÃO


SOBRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
CONSIDERAÇÕES I

- Sabes o que é a liberdade?
- Não. Sei o que não é a liberdade. Não é uma manifestação de liberdade enfiar uma faca na barriga de um gajo de quem não gosto por uma razão qualquer, não é uma manifestação de liberdade mandar prender ou torturar alguém que se me opõe, não é uma manifestação de liberdade chamar filho da puta a alguém que pensa de forma diferente da minha, não é uma manifestação de liberdade atirar-me para cima de uma miúda muito provocante, só porque estou excitado, não é uma manifestação de liberdade andar a por bombas nas lojas dos judeus, não é uma manifestação de liberdade fazer ou dizer algo que ofenda física ou psicologicamente alguém. Isso sei definitivamente que não é liberdade. Por isso quem agir assim está na contingência de sofrer na pele as consequências dos seus actos.
- Mas esses actos podem estar legitimados por uma qualquer teoria política ou social…
- Claro que alguém pode pensar assim. Um nazi poderá sempre pensar assim, um comunista-estalinista também, um anarco-sindicalista. Toda a gente pode pensar e agir em conformidade se assim o entender e quiser, mas depois não se deve queixar. Vejamos: a nossa grande manifestação de liberdade é a escolha, a opção de vida. Eu posso escolher ser um criminoso, não posso depois desculpar-me e defender-me a dizer que os outros não me deixam ser criminoso: claro que não deixam e fazem muito bem. Quem escolheu ser um criminoso, teve a suprema liberdade de escolher o seu caminho. Caminhará por ele, enquanto não for apanhado pelas teias dos vigilantes da ordem estabelecida. Não se pode esquecer que a sociedade está organizada de determinada forma (por vezes injusta, é certo, esse é um outro problema) e que as pessoas para viverem e coabitarem em sociedade têm de aceitar certas regras. A educação nada mais faz do que integrar as pessoas em diferentes estruturas sociais. O alfabeto é um deles - aprende-se a ler para comunicar; a matemática outra. A moral outra. Se não houvesse “educação”, que é obviamente um mecanismo repressor, não havia civilização, não havia cultura, não havia sociedade. A educação diz-nos que não podemos fornicar com a primeira mulher que se atravessar no nosso caminho, que não podemos matar e roubar à nossa vontade, que não podemos andar a insultar uns e outros consoante a cara de cada um. Quando se é um bocadinho mais civilizado, até se deve pensar nos animais, no ambiente, na boa vizinhança, etc. Em lugar de não prejudicar os outros, pode-se subir um pouquinho a parada civilizacional e pensar em ajudar os outros. Enfim, para muita gente é um esforço excessivo, mas já não será mau se ficarem pela deliberação e a prática de não agredirem os outros.
- Obviamente que nada disto é tão simples assim…
- Pois. Todos temos o direito à indignação e à revolta. Todos temos o direito de pensar diferente. Vou mais longe: todos temos o direito à nossa própria estupidez particular. Não temos é o direito de agredir e maltratar, física e psicologicamente, o nosso semelhante. Pode-se discutir tudo, pode-se protestar, não se pode ofender. Aliás que discussão era essa se alguém chegasse a uma repartição pública e dissesse ao representante do governo por detrás do balcão: “És um filho da puta!”, ao que o solicito empregado responderia, segundo o manual vigente de boas maneiras, “O senhor desculpe, mas um filho da puta é o senhor!”. Em vista deste diálogo, a senhora que esperava na fila para ser atendida lamentaria a demora, já exaltada, “Vocês é que são dois filhos da puta!” Realmente seria uma forma muito curiosa de resolver certos problemas. Há mentes que não dão para mais, é sabido. Quando, à falta de argumentos, se deita mão destes fundamentos, não há liberdade que resista.
Ora bem, a liberdade é uma forma de vivermos em comum e de nos respeitarmos. A começar obviamente pelo Estado que, em democracia, existe como emanação da vontade da maioria dos cidadãos e que, por isso mesmo, tem a obrigação de respeitar para ser respeitado. O Estado pode ser autoritário e agir abusivamente. O governo Sócrates anda no fio da navalha de há uns tempos a esta parte. Por um lado tem de ser autoritário: numa democracia representativa, que é a nossa (a melhor forma de governo que conheço, apesar dos seus erros e das suas falhas), o governo foi investido de poderes que tem de fazer cumprir. Mais: poderes de que não pode abdicar, sob pena de transformar o País numa república das bananas em que cada um faz o que quer. Mas o governo tem de saber muito bem até onde vai o seu poder e a partir de onde o exercício desse poder é despótico.
Durante muitos anos, vivemos sob uma ditadura despótica, corporativa e paternalista, mas nem por isso menos tirânica. Para acender um isqueiro no meio da rua era preciso licença (fui preso, com 18 anos, não por fumar, mas por acender um isqueiro na Praça dos Restauradores!). Eu não podia escrever o que estou a escrever, e se o escrevesse ninguém o publicava e, em edição de autor, seria o texto apreendido e eu, no mínimo, chamado a depor na PIDE. E se chamasse “filho da puta” ao chefe, a qualquer chefe, não era preciso ser ao Chefe do Governo, ia bater com os costados na choldra. Isso sim, era falta de liberdade de expressão. E digo mais, nessa altura era de homem protestar. Hoje, certos protestos são só manifestação de má criação, de barbarismo, de incivilidade. Coisa de tão pouca monta que acaba num “processo arquivado”. Arquive-se a parvoíce e passe-se a outra.
Inquietante são outras coisas, um chorrilho delas diga-se de passagem. Um professor (“professor”, leia-se bem!) numa repartição pública ofende publicamente o Chefe do Governo. É grave como sintoma do estado da educação neste País. Do estado de alguns professores neste País. Não que não tivesse razão para protestar (não está em causa, se calhar teria, tenho a certeza de que muitos bons professores neste Pais têm razões de queixa deste governo!), mas pela forma como protestou. Ponto um.
Haver um outro professor que denuncia o anterior (leia-se “professor!” que vai fazer queixa do primeiro, estilo “Aquele senhor chamou filho da puta ao Senhor Primeiro-Ministro!”), não me parece bem. Mesmo dentro de uma repartição pública. Se ficou chocado, chamava-o de parte e dizia-lhe o que pensava, não ia denunciar a correr um colega. Muito mau exemplo. Ponto dois.
Uma Directora Regional de Educação que dá uma atenção excessiva a este caso, parece-me um pouco anedótico. Tomava conhecimento do caso, chamava o faltoso e dava-lhe uma ensaboadela. Em privado. “Arquivava o processo” antes deste ter tido existência legal, e não punha as coisas no meio da rua. Ponto três.
O “professor” que chama “filho da puta” ao Primeiro-Ministro (o que ficou provado em processo, segundo veio a público) não assume o acto que praticou e desculpa-se em mentiras. Repare-se: estamos a falar de “professores” ainda. Ponto quatro.
Mas as coisas não se ficam por aqui.

SOBRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
CONSIDERAÇÕES I

Nesta arruaça sobre a falta de liberdade de expressão e sobre o autoritarismo do aparelho de Estado tenho visto coisas de bradar aos céus. Então nos blogues nem se fala. Óbvio que qualquer inteligência superior, qualquer ser normalzinho ou qualquer idiota chapado pode ter acesso a esta nova forma de expressão, o que acho magnífico. É uma maneira de democratizar a opinião. Até os idiotas têm direito à sua opinião. Além de que já vi idiotas geniais. Sabe-se lá o que será idiotia. Mas falo de “direito à opinião”. Alguns democratizam a chafurdice, a barbárie, o destempero. Como o que está a dar nas sociedades actuais é o espectáculo da brutalidade, quer seja nos canais de TV, quer seja noutras forma de expressão, vamos lá a brutalizar à fartazana que na net ninguém nos apanha. Engano. Escrever num blogue, é como escrever num jornal. Se existe o direito à opinião, existe o dever da responsabilidade. Mas o que se vê mais é irresponsabilidade.
Veja-se apenas um exemplo: alguns blogues que prezo chamaram-me a atenção para uma “forma de censura” exercida contra um tal “InApto, blogue de um jornalista de Viseu, A. Pinto Correia. Acho que escreve e dirige o jornal “Voz das Beiras”, onde contestou a actual direcção do Museu Grão Vasco e por isso notificado pela PJ e interrogado sobre os artigos que escreveu. Agora, afirma-se, que a "perseguição" se estende já ao blogue que criou.
O referido senhor explica o que se passou: “(...) Enquanto jornalista, assinei alguns artigos sobre aquilo que considerei e continuo a considerar um péssimo serviço prestado às gentes de Viseu pela actual directora do Museu Grão Vasco que em lugar de mostrar com o seu trabalho que estávamos enganados, preferiu recorrer aos tribunais, numa atitude óbvia de intolerância.
(...) Fui, por causa desses artigos que assinei e aos quais não retiro uma vírgula, notificado para comparecer na Polícia Judiciária e interrogado sobre o que escrevi. – Acrescento que me recusei a prestar declarações – Após duas citações e duas comparências e quando julguei que o MP já tinha matéria suficiente para me queimar num auto de fé, eis que recebo uma terceira notificação para esclarecer – pasme-se! – sobre quem havia comentado neste blog e sobre alguns textos que aqui publiquei. (Ao tempo o blog tinha os comentários abertos. Refiro ainda que curiosamente todos esses comentários e textos desapareceram dos arquivos e que não fui eu a fazê-lo) (...) O MP insatisfeito com o trabalho da PJ e certamente pressionado pelos poderes que se movem na sombra resolveu que eu saberia os nomes dos autores de comentários nada favoráveis à Dr.ª Ana Paula Abrantes...”
Curioso, fui até ao Blogue “InApto”, saber in loco o que se passava. Logo à abrir uma “declaração de princípio” que será interessante reter. Vamos reler em uníssono:
“Urge repensar o sindicalismo. Urge repensar igualmente a necessidade ou não da existência de partidos políticos; e torna-se tanto mais urgente fazê-lo porquanto a sacrossanta democracia que nos impingem como valor supremo não passa de uma falácia grosseira envolta num invólucro cor-de-rosa e um verdadeiro atentado à nossa inteligência.
Vagueio, desde que tenho consciência política, pela esquerda lusa apenas para constatar o óbvio: é uma área sem nada de novo, agarrada a dogmas cristalizados e incapaz de se adaptar aos tempos. Desta forma formatam os militantes para a obediência cega, para a frase feita, para o nacional-carneirismo, em nada divergente da direita cega, burra e obtusa.
O boom editorial despoletado pelo Maio de 68 e a relativa abertura da primavera (?!) marcelista deram-me a conhecer o rico e variado leque de opções ideológicas revolucionárias, fora dos limites estreitos do Leninismo: Situacionismo, Conselhismo Operário, Trotskismo, marxismo heterodoxo (Bordiga, Gramsci, Guérin) e os múltiplos cambiantes das ideias libertárias.
Identifico-me com os ideais libertários, recusando a subserviência e a obediência cegas. “Órfãos de Estaline” parece ser um óptimo título para um filme sui generis, tal a placidez doentia do seguidismo fácil e não questionado com que o zé-povinho se deixou embalar. E é vê-lo feliz nos autocarros alugados pelas máquinas partidárias e ou pelos sindicatos alinhados com o esquema, gritando rua fora palavras ensinadas pelas cabeças pensantes, sorrisos boçais estampados no rosto, olhos vítreos de ódio não disfarçado, para logo no domingo seguinte se intoxicarem com dose quase mortal de futebol. Os governos agradecem, os partidos promovem esta atitude, os dirigentes sindicais sorriem ante a baboseira nacional. Estão todos dentro do mesmo saco: partidos e sindicatos; estes últimos cumprindo subservientemente as ordens dos partidos, instrumentalizados, usados e fazendo tudo menos aquilo que é suposto fazerem: defender interesses de classe, pugnar por uma sociedade mais justa, quebrando grilhetas e plantando a utopia.
Sou assumidamente libertário, o que me permite viver sem grilhetas. Leio os filósofos, estudo as diferentes opções de sociedade, mas todas sem excepção me parecem castradoras. São-no efectivamente. Por isso exercito o simples acto de pensar. Os partidos preenchem ou explicam-me o caos da sociedade actual? Os sindicatos sem excepção dão-me a mais pequena réstia de esperança de que querem de facto alterar os equilíbrios instáveis em que estamos mergulhados? A resposta é um claro não. Uns e outros pugnam pelo servilismo, cada um deles defendendo o pequeno “tacho” adquirido à custa da manipulação e da vontade real de mudança de muita gente. Pois bem, o mundo será sempre dos visionários e dos utópicos que concebem o acto supremo: o acto libertário.
Acabar com os partidos e com o sindicalismo que se vai fazendo por essa Europa fora, mas sobretudo com o que se vai fazendo por cá, é um imperativo que libertará em definitivo o homem novo. É neste que reside a última esperança de sobrevivência da raça.”
Muito bem. Como defesa teórica não está mal. Portanto temos alguém que, à semelhança de fascistas, nazis e comunistas-estalinistas, não acredita na democracia, nos partidos, nos sindicatos, e em qualquer espécie de organização social que não seja a libertária. Portanto, propõe acabar com os partidos e destruir esta “palhaçada” democrática. Muito bem. Então porque se espanta que a “sociedade organizada” se defenda, e mande a PJ investigar as suas arruaças de libertário? Ou será tão ingénuo que pensa que a sociedade muda porque ele quer, e se sente do direito de tudo exigir e nada receber em troca?
Mas vou mais longe ainda. Admitamos que esta é uma defesa ”teórica” do “acto libertário”, e que, na prática, o senhor em causa, se mantinha numa linha editorial de defesa de pensamento, e não de agressão pura. Por mim, tudo bem. Acho muito estimulante o pensamento anarquista, o libertário, as grandes utopias. Acho de um exotismo de muito bom tom haver um jornal dirigido por um “libertário” em Viseu, região tida como a capital do Cavaquistão profundo. Só fica bem à democracia e à liberdade de expressão.
Vamos então ler um pouco mais deste blogue, para ver o seu pensamento. Acho que procura essencialmente ser satírico, sarcástico, criticar pelo humor.
“O ministro das obras públicas foi sujeito a uma intervenção de urgência de “desratização”, segundo um documento do Hospital Amadora-Sintra. No mesmo opúsculo distribuído à população portuguesa, pode ler-se mais à frente “ter sido esta intervenção um fracasso, já que nem os ratos morreram nem foi possível um implante de um único neurónio, tendo ficado sua excelência com um monte de – omitimos a palavra por respeito aos nossos leitores – na cabeça em lugar de um cérebro como seria normal.”
Por sua vez o ministério tutelado por Mário Lino afirma que “ a operação do senhor ministro constitui um inêxito, podendo com toda a legitimidade concluir-se que os ratos irão contaminar o espaço escorregadio que serve de cabeça ao OTÁrio, adiando desta forma a resolução do problema do novo aeroporto”.
Parece-me realmente uma excelente (e inteligentíssima!) forma de discutir o problema da localização do próximo aeroporto.
Passemos a outro comentário. Acho que o senhor em causa não é adepto da “Causa Monárquica”, e bate-se, libertariamente, pelo fim (!) da Monarquia num texto de fino recorte literário:
“Um cavalo da casa Real que tentou sem êxito montar Isabel Herédia, acabou com uma pata partida num conhecido hospital da cidade de Lisboa.
Segundo um comunicado elaborado pelo departamento das cavalariças reais, “Houve manifesta má-fé por parte de Sua Alteza, Dona Isabel Herédia, que se baixou propositadamente quando o cavalo tentava montá-la”. O mesmo documento afirma “ser um caso de polícia e o progenitor do equídeo prepara-se para apresentar uma queixa-crime junto do ministério público”.
Entretanto, um relatório do hospital, salienta “a gravidade da lesão contraída pelo “Garanhão” na pata posterior direita, sendo para já o prognóstico reservado”. Em declarações à imprensa, o cavalo mostra-se “aborrecido com toda a situação” e diz “não entender a atitude insensata e premeditada de Isabel Herédia, que noutras ocasiões se tem mostrado mais cooperante”.
Interrogado sobre o assunto, D. Duarte Nuno Pio de Bragança remeteu-nos para uma interminável conversa sobre “a importância da cavalaria no século XVII”, sublinhando no entanto a “imensa preocupação com que acompanho a situação. Não entendo o despropósito de Isabel. É de esperar da esposa de um Rei um tratamento adequado em relação aos outros machos da casa, onde se incluem naturalmente os cavalos”. O herdeiro do trono disse ainda à nossa equipa de reportagem “ter ela um valente arcaboiço para arcar com o cavalo”, embora “entenda que o «Garanhão» tenha de vez em quando instintos muito ousados de índole sexual”.
Confrontado com esta afirmação, o “Garanhão” mostrou-se surpreendido e até ofendido. “Essa agora! Para que quero eu tal fêmea se tenho o melhor harém do reino?”
O texto segue na mesma linha editorial, que deixa antever o alto pender intelectual do seu autor.
Mais uma pérola, esta sobre o “10 de Junho”:
“Repetiram-se as frases gastas da “diáspora portuguesa”, enfatizaram-se “feitos que deram novos mundos ao mundo”, apelou-se à “fé em dias melhores” e sublinhou-se a necessidade absoluta de continuarmos a trabalhar arduamente para “alterar o rumo das nossas desgraças”.
(…) Parece haver uma união hipotástica das naturezas dos nossos políticos assumidamente reflectida na pessoa quase divina do professor de Boliqueime, que lembre-se, quis queimar em auto de fé o livro de Saramago, “O evangelho segundo Jesus Cristo”.
De censor a presidente, passando por péssimo governante que deixou o país à beira do fim – seria esse o dia de Portugal depois? –, Cavaco esforça-se por vender a imagem de um homem simples, sábio e justo. Os portugueses, aniquilados por séculos de embrutecimento aquiescem.
Esvaziar de simbolismo o dia de Portugal, é pois tarefa obrigatória dos nossos políticos. O dia e o país que vendem às instâncias da União com um despudor arrepiante.
Até quando vamos permitir os censores e os defensores de verdades absolutas transformadas em dogmas inquestionáveis?”
Finalmente, uma derradeira transcrição para se ver até que ponto é injusta a injustificada perseguição movida ao autor de tão “InApto” blogue:
“Após alguns anos de experiência a tentar vender tudo aos espanhóis, Joaquim Pina Moura pondera agora vender a mãe e restantes familiares ao grupo Iberdrola.
Um comunicado do grupo informa a imprensa de que “Pina Moura é um incompetente como ficou demonstrado aquando da sua passagem pelo governo, mas comporta-se como o velho traidor Miguel de Vasconcelos”. Mais à frente pode ainda ler-se que “Não foi a competência profissional mas os superiores interesses de Espanha e do grupo que determinaram a sua escolha para traidor”, sublinhando-se numa outra passagem que “não se pode ainda confirmar o interesse da Iberdrola na mãe de Pina Moura, embora pareça relevante adquirir a prima, uma mulher de peitos bem generosos”.
Questionado sobre o assunto, Pina Moura remete-nos para um comunicado a ser emitido “quando as circunstâncias o determinarem e os superiores interesses espanhóis o exigirem”. Presumimos que tal comunicado só seja emitido aquando da experimentação da prima dos peitos generosos por um dos vice-presidentes para a área de mamas.”
Como se vê, o que se entende por liberdade de expressão pode ter muitas leituras. Não será só o “InApto” (que tem a vantagem de ter um nome a assiná-lo) a justificar leituras destas. Outros blogues (e mesmo alguns jornais) permitiriam idênticas análises. Não as mereceriam, todavia, muitos deles por que nem a coragem de assinarem os textos possuírem os seus autores.

quarta-feira, agosto 01, 2007

COM A DEVIDA VÉNIA

FERNANDO CHARRUA MENTIU

E PARECE QUE NINGUÉM REPAROU


(estava para escrever algo sobre o caso Charrua, quando li no DN este texto de João Miguel Tavares, que encerra (quase) tudo o que eu iria dizer. Por isso o transcrevo aqui, com a devina vénia, e um aceno de cumplicidade. Apenas acrescentaria a este triste caso uma nota: fala-se tanto em liberdade de expressão e em censura sem se procurar fazer da primeira um bom exercicio e sem se perceber o que é a segunda. Voltarei a tema. Por agora fiquemos com o texto de João Miguel Tavares.)


A ministra de Educação enterrou o caso Charrua - paz à sua alma. Mas permitam-me um último dizer sobre o defunto. É que ando há vários dias a coçar as meninges diante deste bizarro silenciamento: será que ninguém reparou que o pobre e oprimido professor mentiu com os dentes todos? Se é verdade que o seu processo disciplinar é inadmissível e preocupante, não é menos verdade que o despacho de acusação - cujo conteúdo, sublinhe-se, não foi contestado nem por Charrua nem pela sua advogada - é claríssimo e desmente a versão que o professor sempre fez passar aos media - a de que se teria limitado a dizer uma piada sobre a licenciatura de José Sócrates. Chamar "filho da puta" ao primeiro-ministro (a frase exacta é: "somos governados por uma cambada de vigaristas e o chefe deles todos é um filho da puta") não é uma graçola inocente - é um insulto a Sócrates e à sua mãezinha.A mim, pessoalmente, a coisa chateia-me. Mas até agora quase não li uma linha sobre o assunto - apenas o martelar cego na tecla que se tornou dogma nas últimas semanas: somos governados por gente autoritária e arrogante. Não me entendam mal: nós somos mesmo governados por gente autoritária e arrogante. Só que uma opinião pública informada tem obrigação de separar o trigo do joio. É um facto que o caso Charrua se inicia com um acto de bufaria digno dos melhores tempos da PIDE. É um facto que uma qualquer figura miserável transformou o que se devia ter mantido como uma conversa de corredores em queixa formal e assunto de Estado. Mas é igualmente um facto que o heróico professor Charrua, que anda para aí a armar-se em vítima da liberdade de expressão, não teve coluna vertebral para assumir publicamente o que se passou e as palavras que proferiu. Fernando Charrua não precisava de vir para as televisões confessar "eu chamei filho da puta ao primeiro-ministro". Mas devia ter dito: "Quaisquer excessos de linguagem que tenha cometido aconteceram no decorrer de uma conversa privada e ninguém tem nada a ver com isso." Tivesse-o feito e mereceria todo o meu respeito. A partir do momento em que mentiu e andou pelas ruas a jurar que se limitara a soltar "um comentário em tom jocoso", o seu processo disciplinar não deixa por isso de ser uma vergonha - mas ele perde qualquer autoridade moral para andar agora a reivindicar indemnizações, reintegrações e a ameaçar processos contra o Estado. O professor Charrua pode ser uma vítima. Mas faltou-lhe a grandeza dos que, sendo acusados de forma injusta, assumem os seus actos e não inventam mentiras só para compor a fotografia. Infelizmente, ninguém sai bem desta história.

Nota pessoal, preparatória de outras que hão-de vir:

Alguém sabe o que é censura? Alguém sabe o que é a Liberdade de Expressão? Eis um bom tema de debate para um próximo dia, tanto mais que muita gente protesta com a "perseguição" a alguns blogues. Mas será que "Liberdade de Expressão" é deixar sair pela boca fora os maiores dislates e as provocações mais alarves sem dar conta disso a ninguém? Será mesmo uma "república das bananas" o que queremos? Quem procede de forma tão leviana ou é um irresponsável absoluto ou alguém que sistemáticamente procura descredibilizar a "Liberdade de Expressão" para impor uma ditadura.