
Falemos do romance, que data de 1944: Larry Darrell (curioso o facto de W. Somerset Maugham colocar como protagonista alguém com o nome de Lawrence Darrel, com uma única letra a separá-lo de Lawrence Durell, um escritor que tudo indica ser homenageado nesta referência) é americano, jovem, bem apessoado, esteve como piloto na I Guerra Mundial, regressa a Chicago, onde é bem recebido por vários amigos e uma namorada, Isabel Bradley, que está por ele apaixonada e o esperou com ansiedade. Isabel é filha de Louisa Bradley, sobrinha de Elliott Templeton, um “dandy” que fez fortuna a vender antiguidades, se passeia entre a América, Paris, Londres e estâncias de turismo muito in, e que não acha muita graça a Larry, por este, regressado da guerra, querer “vadiar” e não estar muito interessado em contribuir para o progresso da América, arranjando um bom emprego e desfrutando da sua condição de pertencer à melhor sociedade, aos endinheirados que tudo podem e tudo se permitem. Pelo contrário, Larry vive angustiado com uma recordação dolorosa da guerra, que evoca com discrição: foi salvo por um camarada de armas que morreu ao salvá-lo a ele. A sua viagem agora é uma longa procura espiritual: quer encontrar um sentido para a sua vida e um sentido para aquele acto de extrema generosidade e abnegação desse piloto que se atravessou entre o seu avião e o de um alemão.
Larry não quer casar já, quer passar um ou dois anos em Paris, para onde parte. Aí chegado, não aceita os préstimos de Elliot, que o procura apresentar à melhor sociedade, aluga um quarto manhoso numa pensão de quinta ordem, lê tudo o que pode, confraterniza em tertúlias de artistas, viaja e flaneia à sua maneira. Passa pela Alemanha, trabalha numa mina em França, onde cria amizade com um polaco, persegue gurus que o levam até à Índia, descobre-se iluminado por um saber interior que estimula a sua espontânea generosidade. Reencontra-se por várias vezes com Isabel, com quem aceita desfazer o casamento, mas nunca a amizade, troca carícias e amor com mulheres avulsas que o seduzem e de quem aceita o prazer, mas nunca se descobre um amante impulsivo e apaixonado. Recebe a notícia do casamento de Isabel com Gray Maturin com satisfação, assiste à derrocado emocional de Sophie, que vê marido e filho morrerem num acidente de automóvel, e que nunca mais se recompõe do terrível trauma, surpreende-a anos depois numa tasca imunda de Paris, bêbeda e promíscua, dependente do ópio e de uma angústia que a prostra e a levará à morte, pescoço cortado por uma fina lâmina que a atira, primeiro para o Sena e depois para a morgue. No meio de todo este drama, Larry tenta ainda salvar Sophie, oferece-lhe o seu amor (sobretudo o seu “calor”) e o seu quarto em Montparnasse, pede-a em casamento e tenta libertá-la do vinho e das drogas, mas uma “imprevidência” deliberada de Isabel provoca a queda no abismo e a tragédia da sua melhor amiga de infância, que, todavia, ela não consegue ver casada com Larry, o homem que ela sempre amou, e ainda ama, e sempre irá amar, mas que abandonou, perante a perspectiva de uma vida inquieta a seu lado, e o radioso futuro de uma existência tranquila e abastada ao lado de Gray.

Acontece que a fortuna dos Maturin se afundou com a grande recessão de 1929, e o casal volta a Paris na penúria, com duas filhas, aceitando a “esmola” de viverem no palácio de Elliot enquanto se regeneram socialmente. Larry terá mesmo a função de curar Gray de persistentes enxaquecas, com o milagroso saber que trouxera da Índia. Finalmente, um dia, depois de muitas aventuras e peripécias, de dramas e tragédias, com algumas alegrias pelo meio, Larry está pronto para voltar à sua terra, a América. Para ser taxista, talvez, mas agora com alguma possibilidade de entender um pouco melhor a vida e a sua finalidade. A procura terminou, Larry sabe-se um entre milhões, não será nunca um homem excepcional, não irá colocar em letra de forma a sua extraordinária aventura, basta-lhe viver o melhor que pode o resto da sua vida. W. Somerset Maugham assim pensa: “Não tem ambições, nem desejo de se tornar célebre; distinguir-se aos olhos do público ser-lhe-ia sumamente desagradável; é, portanto, admissível que se contente em levar a vida que escolheu e ser apenas ele próprio. É excessivamente modesto para se oferecer como exemplo aos olhos dos outros; mas é possível que julgue que algumas almas indecisas – para ele atraídas como borboletas para a chama - chegarão, com o tempo, a compartilhar da sua maravilhosa crença de que a verdadeira felicidade só pode ser encontrada nas coisas do espírito, e que esteja convencido de que, trilhando com abnegação e renúncia o caminho da perfeição, está praticando o bem tão positivamente como se estivesse escrevendo livros ou discursando a multidões.”
Toda esta intriga é acompanhada, portanto, pelo próprio W. Somerset Maugham que, assumindo-se como personagem do seu próprio romance, logo a abrir, confessa: “Não inventei coisa nenhuma.” E acrescenta: “Este livro parte das recordações que tenho de um homem com quem, em épocas muito espaçadas, tive íntimo contacto; mas pouco sei do que lhe aconteceu nos intervalos. Creio que, recorrendo à imaginação, eu poderia preencher plausivelmente as lacunas e tornar mais coerente a minha narrativa; mas a tal não me sinto atraído. Quero unicamente relatar factos de que tenho conhecimento.”
Pelos vistos assim será. Durante anos, após o lançamento do livro, e sobretudo após as adaptações ao cinema, muito se tem especulado sobre quem seriam na realidade as personagens em que se inspirara W. Somerset Maugham para escrever o seu romance. Elliot Templeton terá merecido alguma atenção, bem como o “holy man” que Lary visita na Índia e que para muitos estudiosos parece fácil de desvendar (fala-se em Sri Ramana). Mas a figura mais enigmática e aquela que tem feito correr mais tinta é obviamente a de Larry Darrell. Há um site na internet que ao longo de centenas de páginas procura explicar que Larry Darrell não é outro senão um tal americano de nome Guy Hague que terá percorrido um caminho idêntico ao de Darrell. Para os interessados fica aqui a chave de entrada nesse reino de pesquisa que não acaba mais:
http://www.geocities.com/upakaascetic/all_larry_darrell.html.
O Filme de 1946
George Cukor terá sido o primeiro a ser convidado a assinar a versão de 1946 de “The Razor’S Edge”, mas rapidamente o produtor Darryl F. Zanuck o despediu, em virtude do tipo de adaptação que o realizador sugeria e que não agradava de forma nenhuma ao boss da Twenty Century Fox. Acabou por ser Edmund Goulding, um realizador interessante, mas homem sem grande marca pessoal, a aceitar a encomenda de que se desembaraçou com satisfação geral.
Tyrone Power, que acabava de regressar da Europa e da intervenção na II Guerra Mundial, mostrava-se farto de interpretar a figura de aventureiros sem registo psicológico de assinalar, pretendia papéis com outra dimensão humana, e prometeu regressar a Zorro se lhe oferecem o desempenho de Larry Darrell. Por outro lado, W. Somerset Maugham, vivendo do sucesso dos seus romances mais falados, viajou até Hollywood em 1945 para escrever a adaptação do seu romance para cinema, de colaboração com Lamar Trotti, um argumentista da velha escola de Hollywood. Quando Darryl F. Zanuck lhe perguntou quanto levava pelo trabalho, três meses depois, o escritor declinou qualquer pagamento (bastavam-lhe os direitos que auferiu na concessão do livro para adaptação ao cinema, e que ascenderam a 150.000 dólares, recebidos em Outubro de 1944), aceitou apenas ser ressarcido das suas despesas nos EUA, mas acabaria por receber na volta um quadro de Matisse (dizem que no valor de 15.000 dólares). Darryl F. Zanuck mostrou-se generoso quanto ao pagamento, mas não usou uma linha dessa adaptação. W. Somerset Maugham não ficou nem surpreendido, nem aborrecido. Conta-se, aliás, que quando trabalhava com Lamar Trotti o descobriu tão zeloso na fidelidade à obra e na forma de a adaptar ao cinema, que lhe confidenciou: “Você ainda é mais respeitoso com Maugham, o escritor, do que eu mesmo!”
Na capa do guião escrevera mesmo: “Por favor, notem que, no fundo, isto é uma comédia, e deve ser interpretada enquanto tal por todos os actores, excepto nas passagens definitivamente sérias.”
A adaptação do escritor funcionou apenas como um esboço para a adaptação final. Maugham comentou: “Zanuck nunca utilizou uma única linha do meu guião…. Tomaram imensas liberdades com o meu romance original no guião que acabou por ser filmado. Mas Maugham sentiu-se satisfeito por “ter sido eliminado por $15,000" e admitia que “The Razor's Edge” tinha algumas qualidades de acção, de movimento ("pedestrian”) que convidavam à injecção de certos estímulos cinematográficos. “