sexta-feira, julho 13, 2018
LIVROS DE CINEMA: OS CINCO MAGNIFICOS
quarta-feira, novembro 10, 2010
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segunda-feira, novembro 08, 2010
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domingo, janeiro 18, 2009
LETRAS NOS PASSEIOS DE LONDRES
sexta-feira, setembro 05, 2008
LIVROS



Heinrich Himmler, o comandante das SS, da Gestapo e principal organizador do Holocausto, um dos baluartes do Nacional-Socialismo, pode considerar-se um dos maiores “monstros” que a Humanidade produziu. É verdade, mas quem se ficar por aí fica-se por uma semi-verdade. Esse tal Heinrich Himmler, que mandava “limpar” o “lixo polaco” (mas só os que não podiam trabalhar nas fábricas militares para glória do III Reich, desses era aproveitada a sua força de trabalho, e só depois seriam “limpos”), esse mesmo Heinrich Himmler tinha irmãos, Gebhard e Ernest, tinha mulher e amante, tinha pais e demais família, não descurava os deveres familiares, era amigo dos seus (raros) amigos, de uma lealdade férrea ao seu Fuher, e teve uma sobrinha-neta de nome Katrin Himmler (nascida em 1967), que resolveu investigar a vida da sua família, e escrever um livro sobre “Os Irmãos Himmler”. Quem aprecia livros de terror não deve perder, como também quem gosta de História. Quem se deleita com histórias de grandes famílias com moralidade final a condizer também não dará por mal empregue o seu tempo. Na verdade, a leitura desta obra é terrível: verificar que um homem, mesmo uma família, que acariciava os caracóis nas cabeças dos seus filhos e se sentava com eles à mesa na noite de Natal, que dava grandes passeios pelas montanhas aos domingos, era o mesmo que mandava gazear milhões de seres iguais a ele em campos de extermínio, é algo que ultrapassa o terror gótico. É muito edificativo ler um livro onde um homem igual a qualquer um de nós (enfim, com uma “pancada a mais”, é certo, mas quantos de nós não poderemos ter essa pancada?) se pode transformar num monstro. Os monstros não existem enquanto tal. Não nascem “monstros”. Fabricam-se em laboratórios sociais. Uma mezinha daqui, uma ideiazinha malsã dali, uma frustraçãozinha mais, um pozinho que anda no ar, e um homem vulgar passa a génio do crime.




segunda-feira, fevereiro 18, 2008
LIVROS: GORE VIDAL

Gosto de ler biografias, mas prefiro-lhes ainda os livros de memórias. Por quê? A biografia contada pelo próprio é duplamente interessante. Porque, além de ser uma biografia, ou se aproximar disso, relatando aspectos relevantes de uma vida, momentos críticos, situações que merecem, ser recordadas, é ainda particularmente interessante porque revela o que o autor pensa de si próprio e o que quer que os outros pensem dele. Nada numa "memória" é simples, linear, directo. Por que se escolhe para falar de um episódio e se esquece outro?, por que se recorda uma frase e se abafa outra?, porque se relata uma atitude tomada e se não fala de outra? Tudo tem a sua razão de ser. As memórias são selectivas, por muito imparciais que os seus “donos” procurem, honesta e deliberadamente, ser. As "memórias" remetem sempre para uma "pose". É essa pose que me interessa mais. É a faceta mais reveladora de uma personalidade. A pose no retrato. A pose na escrita. A forma como queremos que os outros nos vejam e nos julguem. Muito interessante. Um dia, se tiver tempo, hei-de escrever um livro de "memórias".
Mas por agora refiro-me a um que acabei de ler, “Navegação Ponto por Ponto”, de Gore Vidal. Excelente escritor, excelente memorialista, cheio de um charme muito especial que muitas vezes só os gays sabem ter. Porque são um pouco mais exuberantes, porque tem normalmente uma língua viperina e uma "maldade" crítica sui generis. Estas memórias são para saborear ponto por ponto, sobretudo para quem gosta de cinema, teatro, literatura ou política norte americana.
Gore Vidal teve uma vida agitada e nesta obra aborda os mais variados temas e analisa com um olhar crítico, por vezes fatal, personalidades as mais diversas, desde Jacqueline Kennedy, Tennessee Williams, Eleonor Roosevelt, Orson Welles, Johnny Carson, Greta Garbo, Federico Fellini, Rudolf Nureyev, até Elia Kazan ou Francis Ford Coppola. Homossexual assumido, enfrenta a perca de um amigo (Howard Auster, o seu companheiro de sempre, o homem com quem viveu mais de cinquenta anos) com delicadeza, pudor e subtileza. Com uma escrita elegante, mas nunca de elogio fácil, oferece-nos um retrato brilhante de uma certa época e de uma certa sociedade norte-americana, envolta em humor, ironia e um toque pessoal inimitável. Um belíssimo livro de memórias.
Eduardo Pitta, numa resenha aparecida no “Público”, afirmou certeiramente: “Abarcando os mais de quarenta anos que o escritor viveu em Itália, país onde se fixou em 1963, o frequente recurso ao flashback ilumina algumas zonas de sombra. Num ápice, somos transportados da Roma do imediato pós-guerra para a descoberta precoce do cinema. É hilariante a passagem em que Vidal descreve o dia de 1929 (aos 4 anos, portanto) em que, sentado ao lado dos pais num cinema de St Louis, responde em voz alta à pergunta que uma actriz faz no ecrã... O ritmo mnemónico não poupa nada nem ninguém: o arrivismo da mãe, a zanga com Jackie Kennedy, os engates de rua (onde cabe a explicação do motivo que levou Paul Bowles a fugir para Marrocos), o rapto e assassínio de Aldo Moro em 1978 (mero pretexto para falar das Brigadas Vermelhas), a dor sentida pela morte de amigos muito queridos (entre outros: Susan Sontag, Saul Bellow e Barbara Epstein), o desprezo pela Junta que governa a América - Vidal refere sempre como Junta a tríade formada por Bush, Cheney e Rumsfeld -, as guerras monitorizadas pela CNN a partir dos anos 1990, e assim sucessivamente.”
domingo, fevereiro 17, 2008
LIVROS: ESTE PAÍS NÃO É PARA VELHOS


“Concordei com ele quando disse que não havia muita coisa boa para dizer sobre a velhice e ele disse que tinha descoberto uma e eu perguntei o que era. E ele disse: É que não dura muito.” - Cormac McCarthy
Não conhecia nada de Cormac McCarthy (Charles Joseph McCarthy, Jr), até me alertarem para a qualidade de “A Estrada”, e para uma frase sensacionalista do Newsweek: “A cada livro, Cormac McCarthy vai alargando o território da ficção norte-americana.” Talvez por isso recebeu o Prémio Pulitzer em 2007. Já tinha sido “National Book Award for Fiction”, em 1992, por “All the Pretty Horses”. Não era de esperar pouco da sua leitura. E não foi.
Cormac McCarthy nasceu em Providence, Rhode Island, em 23 de Julho de 1933. Estudou na Knoxville Catholic High School, e depois na University of Tennessee, Knoxville, que deixou para ingressar na Força Aérea. Vive presentemente em Santa Fé, perto da fronteira sul dos Estados Unidos, com a terceira mulher e um filho. Foi casado com Lee Holleman (1961, de quem se divorciou em 1961, com um filho, Cullen), com Anne DeLisle (1966, novo divórcio), finalmente com Jennifer Winkley (um novo filho, John).
O seu romance preferido é “Moby Dick”, de Herman Melville. É autor de nove romances (The Orchard Keeper (1965), Outer Dark (1968), Child of God (1974), Suttree (1979), Blood Meridian (1985), All the Pretty Horses (1992), The Crossing (1994), Cities of the Plain (1998) e No Country for Old Men (2005)), dos quais a Relógio D’Água publicou “O Filho de Deus”, “O Guarda do Pomar”, “Meridiano de Sangue” e “Este País não é para Velhos”, este último adaptado ao cinema pelos irmãos Cohen e, nesta altura, à espera da consagração dos Oscars, ao que consta.
No cinema a sua contribuição foi até agora diminuta. Escreveu alguns episódios de uma série, "Visions" (1976), viu adaptado em 2000 “All the Pretty Horses” (Espírito Selvagem), por Billy Bob Thornton (com Matt Damon, Henry Thomas, Penélope Cruz, J.D. Young, Laura Poe, Sam Shepard, etc.), até chegar ao ano de 2007 e ao sucesso de “No Country for Old Men”. Agora tem em produção, duas outras adaptações, “The Road”, numa realização de John Hillcoat, e um elenco onde surgem Charlize Theron, Viggo Mortensen, Guy Pearce e Kodi Smit-McPhee (2008) e “Blood Meridian”, a ser dirigido por Ridley Scott (2009).
Li agora “Este País não é para Velhos”, numa cuidada tradução de Paulo Faria para a Relógio d’Água. Excelente realmente. Um magnifico retrato de um western actual, de uma América de fronteira, não tanto a fronteira dos colonos, mas a fronteira intima entre o Bem e o Mal, entre a generosidade e a ganância, entre a luz e as trevas, entre a (pequena cidade) e o deserto, entre a areia e a água do rio, entre uma certa ingenuidade pacóvia e a maldade mais completa que se torna ininteligível, à força de ser tão abstracta, tão desregrada, tão sem sentido para lá do sentido único do seu exercício quase gratuito.
Um homem que passa pelos arredores de uma cidadezinha americana do Rio Grande do Sul, por entre o deserto e o campo, encontra um carros abandonados, mortos vários, um moribundo que rapidamente passa a cadáver, quantidade de heroína em barda, 2 milhões de dólares numa mala, que resolve tornar sua. Essa mala desencadeia perseguições variadas, entre elas a de um “serial killer” que mata sem emoção. O humano transformado num autómato do Mal, um num “profeta da destruição”, como o xerife da localidade sugere, quando afirma: “Dizem que os olhos são as janelas da alma. Eu cá por mim não sei de que é que os olhos são as janelas e se calhar até prefiro não saber. Mas há uma outra maneira de ver o mundo e outros olhos para o ver e é por esse caminho que nós vamos. Eu próprio o trilhei e conduziu-me a um lugar na minha vida que nunca imaginei chegar a conhecer. Algures por aí anda um profeta da destruição, um profeta genuíno, de carne e osso, e eu não o quero enfrentar.” Um profeta que é melhor não enfrentar. Algo que completamente desumano, uma máquina, um robot, alguém para quem se olha e não se reconhece nele feições de gente. Esta é a América de uma violência traumatizante, desconhecida, perturbante, que é atravessada neste romance nervoso, agressivo, provocador, estimulante que nos recoloca na melhor tradição da literatura norte-americana. Hemingway, sim, pela secura dos diálogos, pela poesia dos cenários, Falkneur, sem dúvida, um pouco da violência ingénua de uns “Ratos e Homens”, mas reciclada para novos continentes de um total desencanto. Depois há quem fale de actuais, como Don Delillo, Philip Roth ou Thomas Pynchon, é possível, sobretudo no retrato de uma sociedade doente, dada num registo sincopado, que mostra as aparências e deixa as chagas soterradas, à espera que o leitor as descubra por si só. Terríveis os tempos que geram obras como estas, de um cinzento pesado, de um ar poluído pelo desespero, de uma humanidade desgarrada e à deriva.
Há personagens absolutamente inesquecíveis, como o assassino Anton Chigurh, ou o julgado esperto Llewelyn Moss, ou o desalentado xerife Ed Tom Bell, que conheceu a II Guerra Mundial, e que tem uma ideia do Vietname e dos EUA muito bem condensada nesra frase: “As pessoas dizem que foi o Vietname que pôs este país de rastos. Mas eu nunca acreditei nisso. O país já estava em muito mau estado. O Vietname foi só a cereja em cima do bolo. (…) Não sei o que vai acontecer quando vier a próxima. Não sei mesmo.” Ora a verdade é que a próxima já chegou e o que os escritores (e cineastas) norte-americanos reflectem é esse “não sei mesmo.” A América na encruzilhada, mas mais do que isso, nós todos na mesma encruzilhada.
Magnífico livro. Fico à espera de um igualmente magnífico filme. Seguramente.

sexta-feira, janeiro 25, 2008
CINEMA: EXPIAÇÃO


Depois de ter realizado, há dois anos atrás, um meritório “Orgulho e Preconceito”, segundo Jane Austen, Joe Wright regressa a um tema semelhante, por igual via, uma adaptação literária de um romance de envergadura. Agora em vez de Jane Austen, Ian McEwan, outro inglês que curiosamente abre esta sua obra com uma citação de Austen. Coerência, portanto, num autor.
Note-se: “autor”, não duvido. Há preocupações constantes que tendem à obsessão de fantasmas privados – mansões antigas exalando felicidade que encerram nos seus sótãos preconceitos, personagens leves como a aragem que as percorre que se precipitam em vendavais de paixões que as conduzem à tragédia; segredos que se expiam e atormentam vidas com memórias dolorosas, mulheres delicadas que sofrem perante a discreta ferocidade de uma sociedade que o homem controla e domina, do alto da sua superioridade senhorial e machista… Depois há uma equipa que funciona coesa (actores e técnicos que passam de filme para filme). Temos portanto o produto típico de um autor absorvido pela fina análise de figuras e situações emblemáticas de uma sociedade circunspectamente conservadora, que irradia uma falsa imagem de harmonia e felicidade, quando no seu seio germina uma violência tensa e um dormente cansaço, o que provoca o plausível aborrecimento dos gémeos que fogem da pasmaceira, o que leva Briony Tallis (Saoirse Ronan), uma miúda de treze anos, a “inventar” peças de teatro que tenta encenar para agitar o marasmo, o que conduz à perversão do que se vê e à invenção de situações “explosivas”, o que precipita esperados acontecimentos dramáticos que depois se calam para não ofuscarem a rigidez moral do ambiente. Com uma única excepção: o filho do empregado da casa, que se prepara para estudar medicina, protegido pelos patrões, mas que apesar de tudo nunca inspira a confiança suficiente para não ser logo acusado e mandado para a prisão na primeira crise que atravessa ocasionalmente.

Veja-se como Ian McEwan inicia a sua obra com a descrição da escrita da peça por Briony: “A peça - para a qual Briony tinha desenhado os cartazes, os programas e os bilhetes, construído a bilheteira com um biombo voltado de lado e debruado uma caixa com papel crepe vermelho para recolher donativos - tinha sido escrita por ela num assomo de criatividade que tinha durado dois dias e que a levara a perder um pequeno-almoço e um almoço. Depois de concluídos todos os preparativos, já não tinha mais nada a fazer a não ser rever o manuscrito e esperar pela chegada dos primos que vinham do norte. Só teriam tempo para um dia de ensaios antes de o irmão chegar. A peça, com passagens sinistras e outras desesperadamente tristes, era uma história de amor, cuja mensagem, transmitida num prólogo em verso, era a de que o amor que não estivesse assente numa base de bom-senso estaria condenado. A paixão louca da heroína, Arabella, por um maléfico conde estrangeiro é punida pelo infortúnio de ela contrair cólera durante uma ida impetuosa até uma vila à beira-mar com o namorado. Abandonada por ele, e por quase toda a gente, presa à cama numas águas-furtadas, descobre em si própria um inesperado sentido de humor. A sorte dá-lhe uma segunda oportunidade, sob a forma de um médico pobre que, na verdade, é um príncipe disfarçado que escolheu trabalhar no seio dos mais necessitados. Arabella é curada por ele e, desta vez, faz uma escolha sensata, sendo recompensada pela reconciliação com a família e pelo casamento com o príncipe-médico “num dia de Primavera com muito sol e algum vento” (1).

Mais adiante: “ Ela era uma daquelas crianças possuídas pelo desejo de ter um mundo exemplar. Enquanto o quarto da sua irmã mais velha era um antro de livros espalhados, roupas em desalinho, cinzeiros cheios, com a cama por fazer, o de Briony era um santuário do demónio do controlo: na quinta de brincar montada num parapeito fundo havia os animais do costume, mas estavam todos voltados para o mesmo lado — para o seu dono — como se estivessem prestes a entoar uma canção. Até as galinhas estavam impecavelmente colocadas dentro da cerca. Aliás, o quarto de Briony era o único do andar de cima que estava arrumado. As bonecas, de costas muito direitas, nas múltiplas divisões da sua casinha de brincar, pareciam ter recebido ordens estritas de não tocarem nas paredes; as muitas figuras minúsculas de cowboys, mergulhadores, ratos humanóides, dispostas sobre o seu toucador, faziam lembrar, pela forma como estavam alinhadas e pela distância que as separava, um exército de cidadãos à espera de ordens.
O gosto pelas miniaturas era um dos aspectos de um espírito em ordem; um outro era a paixão pelos segredos: num armário envernizado, que muito estimava, havia uma gaveta secreta que se abria carregando no veio de um entalhe inteligentemente torneado. Era aí que guardava um diário fechado com uma mola e um caderno escrito num código que ela inventara.” (1).
Coisa de miúdos, é certo, mas de miúdos frustrados por educações penosas, mentes retorcidas desde criança. Diga-se que a educação terá particular relevância na definição destes caracteres, mas há predisposição nata para assim se percorrer os corredores da casa, em passo estugado, decidido, curvando nos cantos a noventa graus, progredindo em linha recta até ao objectivo final. Quem assim anda, não pode sofrer desvios ditados pelo destino ou o acaso, sabe o que quer e não gosta de ser contrariado. Quando o é, alguém sofre as consequências. Robbie passa rapidamente de objecto de desejo a desejo de vingança. Lola Quincey (Juno Temple) é surpreendida a ser violada por um vulto, na noite da busca dos gémeos Pierrot (Felix von Simson) e Jackson (Charlie von Simson), e a casta e puritana Briony não duvida um segundo de quem é o violador de que apenas descortinou a silhueta. E impunemente atira para o opróbrio e o calabouço aquele que anteriormente era o encanto dos seus pensamentos. Quando há que encontrar um “culpado” ele terá de ser de outra classe social, tanto mais que o afastamento de Robbie afasta igualmente uma ligação inter-classicista de todo em todo indesejável.


“Ao longo destes cinquenta e nove anos (o tempo que medeia entre 1935 e 1994), o problema tem sido este: como é que uma escritora pode fazer a sua expiação se, com o poder absoluto de decidir o final, ela é em certa medida Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade, nenhum ser superior a quem ela possa apelar, com quem possa reconciliar-se ou que possa perdoá-la. Não há nada para além dela. Foi ela que marcou os limites e os termos, com a sua imaginação. Não há expiação para Deus, nem para os escritores, mesmo que sejam ateus. É uma tarefa impossível, e a questão é precisamente essa. O que conta é a tentativa.” (1)
Como se vê, “Expiação” é realmente um filme muito interessante, muito curioso ainda ao nível da narrativa (boa e eficaz a adaptação do dramaturgo Christopher Hampton (português, nascido nos Açores, descobri agora), que parte do belíssimo romance de Ian McEwan, e o transfere sem alterar o espírito para o cinema. Consegue proezas dignas de registo, como, logo de início, a forma como nos dá duas versões de um mesmo acontecimento, quando visto, ao longe, através do vidro de uma janela, e quando presenciado e vivido por um dos protagonistas da cena. O processo repete-se com avanços e retrocessos na narrativa, mas talvez já sem a mesma justificação interior, ainda que com resultados interessantes. Reflexão pois sobre a criação artística (ou literária), sobre a procura da verdade, sobre a imposição ou não dessa verdade como prisma de criação.
Falemos ainda do excepcional desta obra: a partitura musical, da responsabilidade do italiano Dario Marianelli, e que mistura, ao longo de quase todo o filme, o matraquear da máquina de escrever com as notas musicais e outros ruídos, para criar um clima absolutamente absorvente e inquietante. Irreal. Boa a fotografia do irlandês Seamus McGarvey que mistura tons quentes e frios, e os altera a seu belo prazer. Veja-se como o verde pode ser, em cenas sucessivas, abrasador como o vermelho mais intenso (o assombroso vestido de Keira Knightley) ou frio e dolorosamente macerado (plano de Briony, aos treze anos a deitar-se num quarto forrado a verde). A realização é sensível, sensual e sumptuosa por vezes, mas deixa uma sensação de “um pouco mais de sol, e seria brasa.” Será que chega para atingir o Óscar de melhor filme do ano? Curioso não estar nomeado para o de melhor realização.

EXPIAÇÃO
Título original: Atonement
Realização: Joe Wright (Inglaterra, França, 2007); Argumento: Christopher Hampton, segundo romance de Ian McEwan; Música: Dario Marianelli; Fotografia (cor): Seamus McGarvey; Montagem: Paul Tothill; Casting: Jina Jay; Design de produção: Sarah Greenwood; Direcção artística: Ian Bailie, Nick Gottschalk, Niall Moroney; Decoração: Katie Spencer; Guarda-roupa: Jacqueline Durran; Maquilhagem: Sarah Jane Cosgrove, Ivana Primorac, Andy Seston, Matthew Smith, Elizabeth Yianni-Georgiou; Direcção de produção: Erica Bensly, Simon Fraser, Deborah Harding; Assistentes de realização: Tom Brewster, David Daniels, William Dodds, Stewart Hamilton, Candy Marlowe, Thomas Q. Napper, Josh Robertson, Michael Stevenson; Departamento de arte: Tim Browning, Laurent Ferrie, Oliver Goodier, Sarah Miller, Adrian Platt, Sarah Stuart, Tom Whitehead, Tracey Wilson; Som: Catherine Hodgson, Becki Ponting, Chris Sturmer; Efeitos especiais: Mark Holt; Efeitos visuais: John Moffatt; Produção: Tim Bevan, Liza Chasin, Richard Eyre, Eric Fellner, Robert Fox, Jane Frazer, Debra Hayward, Ian McEwan, Paul Webster; Companhias de produção: Working Title Films, Relativity Media, Studio Canal.
Intérpretes: Saoirse Ronan (Briony Tallis, 13 anos), Ailidh Mackay, Brenda Blethyn (Grace Turner), Julia West (Betty), James McAvoy (Robbie Turner), Harriet Walter (Emily Tallis), Keira Knightley (Cecilia Tallis), Juno Temple (Lola Quincey), Felix von Simson (Pierrot Quincey), Charlie von Simson (Jackson Quincey), Alfie Allen (Danny Hardman), Patrick Kennedy (Leon Tallis), Benedict Cumberbatch (Paul Marshall), Peter Wight, Leander Deeny, Peter O'Connor, Daniel Mays, Nonso Anozie, Michel Vuillermoz, Nick Bagnall, Charlie Banks, Jamie Beamish, Madeline Crowe, Scarlett Dalton, Michelle Duncan, Matthew Forest, Romola Garai (Briony, 18 anos), Vivienne Gibbs, Olivia Grant, Ben Harcourt, Jack Harcourt, Paul Harper, Mark Holgate, Ryan Kiggell, Katy Lawrence, Neil Maskell, Gina McKee, Anthony Minghella (entrevistador), Jade Moulla, John Normington, Georgia Oakley, Alice Orr-Ewing, Catherine Philps, Jay Quinn, Vanessa Redgrave (Briony Tallis, velha), Bryony Reiss, Jérémie Renier, Kelly Scott, Billy Seymour, Sarah Shaul, Anna Singleton, Richard Stacey, Emily Thomson, Tilly Vosburgh, Ben Webb, etc.
Duração: 130 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Classificação etária: M/12 anos; Locais de Filmagem: Aldwych Underground Station, Aldwych, Holborn, Londres, Inglaterra, Data de estreia: 17 de Janeiro de 2008 (Portugal);

Muitas hipóteses em música, fotografia e argumento adaptado.
(1) “Expiação”, de Ian McEwan, tradução de Maria do Carmo Figueira, Gradiva, 2002
quinta-feira, janeiro 24, 2008
LIVROS: SÁNDOR MÁRAI, V

“A MULHER CERTA”,
AS DUAS ALEXANDRAS
E O “PÚBLICO”

Curiosamente, esta Alexandra é amiga, foi colega de estudos, é camarada de profissão e de jornal de uma outra Alexandra (esta Prado Coelho), a quem ofereci no Natal um dos seis exemplares de “A Mulher Certa” que comprei pretendendo difundir o mesmo prazer que eu sentira ao lê-lo, agora estendendo-o a familiares e amigas nessa quadra. O Natal é isto.
Estas Alexandras nunca me enganaram. O “Público” tem coisas de que gosto menos, é certo, mas muitas de que gosto muito. As Alexandras estão neste último caso. Ambas com Márai nos olhos.

domingo, janeiro 20, 2008
LIVROS: A MULHER CERTA


Quem foi Sándor Márai? Nasceu em 1900, em Kassa, uma pequena cidade húngara que hoje pertence à Eslováquia. Passou um período de exílio voluntário na Alemanha e na França durante o regime de Horthy nos anos 20, até que abandonou definitivamente o seu país em 1948 com a chegada do regime comunista, tendo emigrado para os Estados Unidos. A subsequente proibição da sua obra na Hungria fez cair no esquecimento quem nesse momento era considerado um dos escritores mais importantes da literatura centro-europeia. Foi preciso esperar várias décadas, até à queda do regime comunista, para que este extraordinário escritor fosse redescoberto no seu país e no mundo inteiro. Sándor Márai suicidou-se em 1989, em San Diego, na Califórnia, EUA.
Em 1941, Márai publicou “Az Igazi” (A Mulher Certa), um romance composto por dois longos monólogos. Para a edição alemã de 1949 (“Wandlungen der Ehe”), o autor adicionou uma terceira parte, escrita durante o seu exílio em Itália. Em 1980 rescreveu esta terceira parte, à qual adicionou um epílogo, dando-a à estampa com o título “Judit... és az utóhang” (Judit... e um epílogo). A presente edição lançada em Portugal reúne as quatro partes que constituem este “work in progress”.
Este é um daqueles romances que se lê de um fôlego e se vai deixando de lado para durar. Percebem? Queremos ler rapidamente até ao fim, mas não queremos que acabe. Queremos estar envoltos naquelas palavras, dialogar co aquelas personagens, conhecer a cidade, os locais, mas não queremos que tal acabe já. Quanto mais lemos, mais lamentamos as poucas páginas que faltam. São raros livros assim.
Sandor Marai é escritor elegante de palavra, subtil na anotação, lança-se na psicologia das personagens com agilidade e sabedoria, cruza o romance histórico e a meditação filosófica, oferece-nos uma Budapeste que se entranha, fala-nos da guerra e da política, do horror e do amor, e, no final, suicida-se no exílio. Não há salvação? Será mesmo este um pessimista desesperado? Pelas páginas de “A Mulher Certa” perpassa um pouco (ou muito) da condição humana, mas a forma como Sandor Marai escreve, por si só, é motivo suficiente para acreditar. Se não for em nada mais, na arte da utilização da palavra.
Numa cafetaria de Budapeste, uma mulher, nova, bonita, desejável, relata a uma amiga como descobriu que o marido a traía com a recordação de alguém que ficara para trás na sua vida. Conta como o tentou reconquistar em vão e como tudo se precipitou para o divórcio. Na mesma cidade, o marido dialoga, mais tarde, com um amigo, e explica como o seu casamento, que tinha tudo para ser feliz, ruiu e ele se deixou levar por uma paixão antiga. Funesta. No terceiro monólogo, numa pequena pensão romana, entra a segunda mulher desse homem a confessar a um amante como foi a sua vida com o marido. Desde ressentimento e vingança, passando por uma luta de classes que se insinua nas relações amorosas, até chegar à história íntima de Budapeste esventrada por várias guerras, há de tudo, com ferocidade e raiva. Finalmente, anos depois, num bar de uma cidade americana, fala-se de jazz e de um exilado húngaro. Marika, Péter e Judit descrevem com realismo e uma desencantada tristeza a falência das suas relações. Não há mulher certa, como não há amor que resista, como não há felicidade possível. Uma obra de uma terrível solidão, de total desencontro com a vida, mas onde, apesar de tudo, se respira.
No Natal, ofereci este livro, que foi dos que mais me tocou nos últimos tempos, a várias familiares e amigas (calhou serem só mulheres, é certo!). Veremos a reacção das que leram.

APRESENTAÇÃO DE LIVRO EM BRAGA

Apresenta o livro (e ciclo)
ZHANG YIMOU
de Lauro António
Decorre no próximo dia 21 de Janeiro, pelas 17h30, no Anfiteatro B1 do Campus de Gualtar, em Braga, o lançamento de uma monografia sobre o cineasta chinês Zhang Yimou, da autoria do cineasta português Lauro António. O lançamento desta obra conta com o apoio do Instituto Confúcio da Universidade do Minho e marca o início de um ciclo de cinema do mesmo cineasta chinês, com uma apresentação sobre a obra lançada, a obra de Zhang Yimou e as películas a apresentar durante o referido ciclo.
Durante a sessão será serviço chá chinês ''O Segredo da Flor''.
Nascido em Xi?an, China, em 1951, Zhang Yimou é um dos melhores realizadores chineses da 5ª Geração, respeitado e reconhecido um pouco por todo o mundo.
Tendo alcançado o sucesso da crítica cinematográfica e comercial muito cedo, Zhang Yimou é hoje em dia um dos realizadores mais influentes no mundo do cinema, contando já com inúmeras nomeações e prémios para filmes como ''Ju Dou'', ''Esposas e Concubinas'', ''Herói'', ''Nem um menos'', ''Casa dos Punhais Voadores'', entre outros.
Um dos fins estatutários do Instituto Confúcio da Universidade do Minho é a promoção de actividades culturais relacionadas com a China que elevem o interesse público pela sua história e cultura, designadamente ao nível da literatura, história, arte, filosofia, sociedade e economia, e ciência e tecnologia, através de actividades que podem incluir cursos intensivos, conferências, seminários, exposições e ciclos de cinema.
Esta iniciativa resulta não apenas do interesse cultural em si do(s) evento(s), mas também da auto-exigência de promover e aproveitar todas as oportunidades de cooperação entre discentes e docentes da Licenciatura de Estudos Orientais, e entre os mesmos e o Instituto Confúcio. A proposta de organização deste ciclo de cinema partiu de uma aluna da Licenciatura em Estudos Orientais, tendo o Instituto decidido agarrar a ideia com ambas as mãos, agendando e cabimentando a iniciativa para o Plano e Orçamento de 2008.
Filmes do Ciclo de Cinema
(todas as sessões têm início pelas 18h e decorrem no Anfiteatro B1, Campus de Gualtar)
- Herói, 21 de Janeiro, 2.ª feira;
- O segredo dos punhais voadores, 22 de Janeiro, 3.ª feira;
- Nem um menos, 23 de Janeiro, 4.ª feira;
- Caminho Solitário, 24 de Janeiro, 5.ª feira;
- A Maldição da Flor Dourada, 25 de Janeiro, 6.ª feira.