Mostrar mensagens com a etiqueta Liteartura. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Liteartura. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, janeiro 01, 2009

O ÚLTIMO ROMANCE DE 2008

A VIAGEM DO ELEFANTE
Já o disse por diversas vezes: Saramago não é autor cuja escrita me toque particularmente. Pois bem, acabei de ler “A Viagem do Elefante” e gostei muito. Trata-se de um romance muito bem construindo, com uma escrita desenvolta, elegante, divertida, mesclando realidade histórica e imaginação ficcionista com uma liberdade e habilidade notáveis. A base é, como se sabe, real: no século XVI, o nosso rei D. João III, querendo impressionar a Europa do seu tempo e em particular o seu primo, genro do imperador Carlos V, o arquiduque Maximiliano da Áustria, envia a este, em caravana, por terra, o presente mais exótico que imaginar se poderia por essa altura, Salomão, um elefante indiano que viajara de Goa, na Índia, dois anos atrás, e se encontrava em Belém. O romance acompanha o itinerário do elefante e do seu tratador, o cornaca Subhro (depois chamado Fritz, por vontade do arquiduque) de Lisboa a Valladolid, onde se encontravam, de férias, o arquiduque e a sua mulher, Maria. E depois, atravessando os Alpes, em pleno Inverno, de Espanha até Viena de Áustria, passando por Itália.
O livro abre com uma citação do “Livro dos Itinerários”: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”, citação sobre que se baseará a metáfora de toda a obra. Mas o que costuma ser por vezes pesadamente demagógico em Saramago é aqui aberto e saudavelmente livre, arejado por um humor comunicativo e uma ironia fina. Boa surpresa e seguramente um dos melhores trabalhos do nosso Prémio Nobel, que nem parece ter sido escrito em condições desvantajosas, com a doença a rondar.
E assim escreve José Saramago, lá pelos meios do romance:

“Não há vento, porém a névoa parece mover-se em lentos turbilhões como se o próprio bóreas, em pessoa, a estivesse soprando desde o mais recôndito norte e dos gelos eternos. O que não está bem, confessemo-lo, é que, em situação tão delicada como esta, alguém se tenha posto aqui a puxar o lustro à prosa para sacar alguns reflexos poéticos sem pinta de originalidade. A esta hora os companheiros da caravana já deram com certeza pela falta do ausente, dois deles declararam-se voluntários para voltar atrás e salvar o desditoso náufrago, e isso seria muito de agradecer se não fosse a fama de poltrão que o iria acompanhar para o resto da vida, Imaginem, diria a voz pública, o tipo ali sentado, à espera de que aparecesse alguém a salvá-lo, há gente que não tem vergonha nenhuma. É verdade que tinha estado sentado, mas agora já se levantou e deu corajosamente o primeiro passo, a perna direita adiante, para esconjurar os malefícios do destino e dos seus poderosos aliados, a sorte e o acaso, a perna esquerda de repente duvidosa, e o caso não era para menos, pois o chão deixara de poder ver-se, como se uma nova maré de nevoeiro tivesse começado a subir. Ao terceiro passo já não consegue nem sequer ver as suas próprias mãos estendidas à frente, como para proteger o nariz do choque contra uma porta inesperada. Foi então que uma outra ideia se lhe apresentou, a de que o caminho fizesse curvas para um lado ou para o outro, e que o rumo que tomara, uma linha que não queria apenas ser recta, uma linha que queria também manter-se constante nessa direcção, acabasse por conduzi-lo a páramos onde a perdição do seu ser, tanto da alma como do corpo, estaria assegurada, neste último caso com consequências imediatas. E tudo isto, ó sorte mofina, sem um cão para lhe enxugar as lágrimas quando o grande momento chegasse. Ainda pensou em voltar para trás, pedir abrigo na aldeia até que o banco de nevoeiro se desfizesse por si mesmo, mas, perdido o sentido de orientação, confundidos os pontos cardeais como se estivesse num qualquer espaço exterior de que nada soubesse, não achou melhor resposta que sentar-se outra vez no chão e esperar que o destino, a casualidade, a sorte, qualquer deles ou todos juntos, trouxessem os abnegados voluntários ao minúsculo palmo de terra em que se encontrava, como uma ilha no mar oceano, sem comunicações. Com mais propriedade, uma agulha em palheiro. Ao cabo de três minutos, dormia. Estranho animal é este bicho homem, tão capaz de tremendas insónias por causa de uma insignificância como de dormir à perna solta na véspera da batalha. Assim sucedeu. Ferrou no sono, e é de crer que ainda hoje estaria a dormir se salomão não tivesse soltado, de repente, em qualquer parte do nevoeiro, um barrito atroador cujos ecos deveriam ter chegado às distantes margens do ganges. Aturdido pelo brusco despertar, não conseguiu discernir em que direcção poderia estar o emissor sonoro que decidira salvá-lo de um enregelamento fatal, ou pior ainda, de ser devorado pelos lobos, porque isto é terra de lobos, e um homem sozinho e desarmado não tem salvação ante uma alcateia ou um simples exemplar da espécie. A segunda chamada de salomão foi mais potente ainda que a primeira, começou por uma espécie de gorgolejo surdo nos abismos da garganta, como um rufar de tambores, a que imediatamente se sucedeu o clangor sincopado que forma o grito deste animal. O homem já vai atravessando a bruma como um cavaleiro disparado à carga, de lança em riste, enquanto mentalmente implora, Outra vez, salomão, por favor, outra vez. E salomão fez-lhe a vontade, soltou novo barrito, menos forte, como de simples confirmação, porque o náufrago que era já deixara de o ser, já vem chegando, aqui está o carro da intendência da cavalaria, não se lhe podem distinguir os pormenores porque as coisas e as pessoas são como borrões indistintos, outra ideia se nos ocorreu agora, bastante mais incómoda, suponhamos que este nevoeiro é dos que corroem as peles, a da gente, a dos cavalos, a do próprio elefante, apesar de grossa, que não há tigre que lhe meta o dente, os nevoeiros não são todos iguais, um dia se gritará gás, e ai de quem não levar na cabeça uma celada bem ajustada. A um soldado que passa, levando o cavalo pela reata, o náufrago pergunta-lhe se os voluntários já regressaram da missão de salvamento e resgate, e ele respondeu à interpelação com um olhar desconfiado, como se estivesse diante de um provocador, que havê-los já os havia em abundância no século dezasseis, basta consultar os arquivos da inquisição, e responde, secamente, Onde é que você foi buscar essas fantasias, aqui não houve nenhum pedido de voluntários, com um nevoeiro destes a única atitude sensata foi a que tomámos, manter-nos juntos até que ele decidisse por si mesmo levantar-se, aliás, pedir voluntários não é muito do estilo do comandante, em geral limita-se a apontar tu, tu e tu, vocês, em frente, marche, o comandante diz que, heróis, heróis, ou vamos sê-lo todos, ou ninguém. Para tornar mais clara a vontade de acabar a conversa, o soldado içou-se rapidamente para cima do cavalo, disse até logo e desapareceu no nevoeiro. Não ia satisfeito consigo mesmo. Tinha dado explicações que ninguém lhe havia pedido, feito comentários para que não estava autorizado. No entanto, tranquilizava-o o facto de que o homem, embora não parecesse ter o físico adequado, deveria pertencer, outra possibilidade não cabia, pelo menos, ao grupo daqueles que haviam sido contratados para ajudar a empurrar e puxar os carros de bois nos passos difíceis, gente de poucos falares e, em princípio, escassíssima imaginação. Em princípio, diga-se, porque ao homem perdido no nevoeiro imaginação foi o que pareceu não lhe ter faltado, haja vista a ligeireza com que tirou do nada, do não acontecido, os voluntários que deveriam ter ido salvá-lo. Felizmente para a sua credibilidade pública, o elefante é outra coisa. Grande, enorme, barrigudo, com uma voz de estarrecer os tímidos e uma tromba como não a tem nenhum outro animal da criação, o elefante nunca poderia ser produto de uma imaginação, por muito fértil e dada ao risco que fosse. O elefante, simplesmente, ou existiria, ou não existiria. É portanto hora de ir visitá-lo, hora de lhe agradecer a energia com que usou a salvadora trombeta que deus lhe deu, se este sítio fosse o vale de josafá teriam ressuscitado os mortos, mas sendo apenas o que é, um pedaço bruto de terra portuguesa afogado pela névoa onde alguém (quem) esteve a ponto de morrer de frio e abandono, diremos, para não perder de todo a trabalhosa comparação em que nos metemos, que há ressurreições tão bem administradas que chega a ser possível executá-las antes do passamento do próprio sujeito. Foi como se o elefante tivesse pensado, Aquele pobre diabo vai morrer, vou ressuscitá-lo. E aqui temos o pobre diabo desfazendo-se em agradecimentos, em juras de gratidão para toda a vida, até que o cornaca se decidiu a perguntar, Que foi que o elefante lhe fez para que você lhe esteja tão agradecido, Se não fosse ele, eu teria morrido de frio ou teria sido comido pelos lobos, E como conseguiu ele isso, se não saiu daqui desde que acordou, Não precisou de sair daqui, bastou-lhe soprar na sua trombeta, eu estava perdido no nevoeiro e foi a sua voz que me salvou, Se alguém pode falar das obras e feitos de salomão, sou eu, que para isso sou o seu cornaca, portanto não venha para cá com essa treta de ter ouvido um barrito, Um barrito, não, os barritos que estas orelhas que a terra há-de comer ouviram foram três. O cornaca pensou, Este fulano está doido varrido, variou-se-lhe a cabeça com a febre do nevoeiro, foi o mais certo, tem-se ouvido falar de casos assim, Depois, em voz alta, Para não estarmos aqui a discutir, barrito sim, barrito não, barrito talvez, pergunte você a esses homens que aí vêm se ouviram alguma coisa. Os homens, três vultos cujos difusos contornos pareciam oscilar e tremer a cada passo, davam imediata vontade de perguntar, Onde é que vocês querem ir com semelhante tempo. Sabemos que não era esta a pergunta que o maníaco dos barritos lhes fazia neste momento e sabemos a resposta que lhe estavam a dar. Também não sabemos se algumas destas coisas estão relacionadas umas com as outras, e quais, e como. O certo é que o sol, como uma imensa vassoura luminosa, rompeu de repente o nevoeiro e empurrou-o para longe. A paisagem fez-se visível no que sempre havia sido, pedras, árvores, barrancos, montanhas. Os três homens já não estão aqui. O cornaca abre a boca para falar, mas torna a fechá-la. O maníaco dos barritos começou a perder consistência e volume, a encolher-se, tornou-se meio redondo, transparente como uma bola de sabão, se é que os péssimos sabões que se fabricam neste tempo são capazes de formar aquele maravilhas cristalinas que alguém teve o génio de inventar, e de repente desapareceu da vista. Fez plof e sumiu-se. Há onomatopeias providenciais. Imagine-se que tínhamos de descrever o processo de sumição do sujeito com todos os pormenores. Seriam precisas, pelo menos, dez páginas. Plof.”

sábado, dezembro 27, 2008

ÚLTIMAS LEITURAS DE 2008

HOMEM NA ESCURIDÃO
Não se percebe muito bem o que leva alguns leitores e certos críticos a afastarem-se de Paul Auster por ele se manter fiel a si próprio. O que me agrada em Auster é precisamente o facto dele ter um universo muito próprio e não o abandonar. Quando se pega (avidamente, digo eu!) num novo livro de Auster (como de quase todos os grandes autores) é sempre com o prazer de ir reencontrar um mundo. Com diferenças de enredo, de intriga, com personagens novas, situações inesperadas, mas um estilo que se mantém, uma estrutura que remete para as mesmas obsessões, os mesmos temas, os mesmos fantasmas. Não sei se “Man in the Dark”, o último a ser lançado em tradução portuguesa, é melhor ou pior do que o anterior. Sei que é Paul Auster, que me “apanhou” mal o comecei a ler e que só o larguei (com pena) quando da última página. Depois, as edições da Asa mantêm o mesmo estilo de apresentação, e tudo ressoa a familiar. É muito saudável.
August Brill é um crítico literário retirado, que vive sozinho com uma filha e uma neta, ambas traumatizadas por casos emocionais mal resolvidos (um divórcio, uma viuvez). Ele próprio recorda a mulher desaparecida e não suporta as insónias que o deixam acordado noites a fio, durante as quais vai escrevendo uma história que se transforma num mundo paralelo: depois das conturbadas eleições de 2000, que terminaram com a vitória de Bush, os EUA voltaram a dividir-se numa nova guerra de Secessão, com Estados fiéis a Bush e outros que se revoltaram e criaram uma federação independente. Nas noites em que não escreve, vê clássicos de cinema com a neta e ambos se entretêm a prolongar o prazer da visão dos filmes, explorando os seus significados, em desenvolvidas críticas que são magníficos estudos sobre o poder da imagem (Ladrões de Bicicletas, A Grande Ilusão, O Mundo de Apu, Viagem a Tóquio). Afinal está lá tudo o que tem a ver com Paul Auster. Algo que aprendi com a idade foi a explorar em profundidade os autores que me marcam. Ler uns atrás de outros os livros de alguém que subitamente nos iluminou. E ficar depois à espera que, mais ano, menos ano, apareça um novo título para nos dizer que tudo está bem, o mundo continua a girar e nós ainda reconhecemos o reconhecível. Mesmo quando, como no caso presente, um romance se torna algo inquietante. Aqueles mundos paralelos podem não ser tão paralelos assim. Visionário por absurdo, Paul Auster não especula senão com a realidade dos nossos dias.
UM HOMEM MUITO PROCURADO
John Le Carré é um velho conhecido, desde “O Espião que saiu do Frio” (conhecido como escritor, conhecido também como invulgar fornecedor de boas histórias para o cinema, veja-se o recente “O Fiel Jardineiro”, excelente romance e não menos digno filme do brasileiro Meireles). Com “Um Homem Muito Procurado” (Ed. Dom Quixote, 2008), John le Carré mantém-se ao nível do seu melhor, abordando um tema de enorme actualidade e de uma forma equilibrada e bem documentada. Dizem por aí alguns críticos literários que esta III Guerra Mundial que vivemos agora contra um inimigo encoberto que utiliza o terrorismo como arma letal, e cujos principais instigadores se ajaezam (bom termo, neste contexto!) no mundo islâmico não tivera até hoje um autor que o descrevesse melhor e que Carré logra onde muito outros haviam falhado. Na verdade o que sobressai a uma primeira leitura é a equidistância a que se coloca Le Carré, dando voz quer ao Ocidente (serviços secretos da Alemanha, de Inglaterra, dos EUA), quer ao sentir islâmico.
Todo roda à volta de um homem muito procurado, que se diz chamar Issa, devoto de Alá, jovem meio russo, meio checheno, que chega a Hamburgo vestindo um sobretudo preto comprido e morto de fome, com um passado de prisões e torturas por todos os sítios por onde passara. Quer ser médico, para ajudar os seus, usa uma pulseira de ouro, legado materno que não abandona, e sabe que em Hamburgo existe uma conta “suja” que seu pai, militar russo da velha guarda, lhe deixou com muitos milhões de euros onde não pensa tocar, mas que quer endereçar aos que sofrem na “sua” Chechénia. Uma instituição de apoio a refugiados e emigrantes manda Annabel, uma jovem advogada alemã especializada em direitos humanos, apoiar Issa e defendê-lo de uma deportação mais que óbvia. Para desenterrar a herança, têm de falar com Tommy Brue, o director do Brue Frères, um banco britânico que no passado tinha ajudado a lavar a fortuna de Karpov. Mas espiões alemães, ingleses e americanos querem chegar a Issa e a outros possíveis contactos muçulmanos acobertados em Hamburgo, com intenções muito precisas.
Curiosamente, num universo de uma total desumanidade e de uma violência extrema, não há uma morte descrita no romance. O clima é de histeria generalizada, onde o leitor não consegue deslindar o verdadeiro do falso, os factos reais das fantasias engendradas pela patologia de uma guerra sem cenário, ou que permite todos os cenários. Escrito de forma magnífica, tensa, comovente, movendo-se entre o Bem e o Mal com uma agilidade desarmante, “Um Homem Muito Procurado” acompanha-se sem descolarmos os olhos das suas páginas. Não é um “simples romance de espionagem”. É um esplêndido romance de um dos grandes escritores actuais sobre o nosso mundo. Muito inquietante, na verdade.

MYRA

“Myra”, de Maria Velho da Costa (Ed. Assírio & Alvim), é outro dos grandes romances deste fim de ano em Portugal. Uma das “Três Marias”, como ficou conhecida desde os anos 70, quando, juntamente com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, lançou “Novas Cartas Portuguesas”, Maria Velho da Costa já tinha atrás de si um belíssimo romance, “Maina Mendes” (1969). Licenciada em Filologia Germânica, professora no ensino secundário, membro da direcção da Associação Portuguesa de Escritores, leitora do Departamento de Português e Brasileiro do King's College, da Universidade de Londres, adjunta do Secretário de Estado da Cultura, em 1979, adida cultural em Cabo Verde, membro integrante da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Maria Velho da Costa trabalha actualmente no Instituto Camões. Prémio Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora, pelo conjunto da sua obra, em 1997, Prémio Camões, em 2002, a escritora aproximou-se várias vezes do cinema, participando na elaboração de argumentos de filmes de João César Monteiro, Margarida Gil e Alberto Seixas Santos.
“Myra”, seu mais recente romance, é uma obra admirável a vários níveis, que fica a martelar na cabeça do leitor dias a fio. Muito bem escrito, com uma ousadia de termos e de imagens invulgar, que ronda a terminologia arrevesada, mas que pela propriedade se mostra eficaz e colorida, “Myra” é ainda uma envolvente e sedutora história de fadas que termina da pior maneira possível, demonstrando que o reino das fadas e das crónicas de príncipes e princesas é mesmo coisa de “encantar”. Myra é uma menina russa que emigra para Portugal, por onde vagueia sozinha, à mercê dos maiores dissabores e constrangimentos, quando descobre, moribundo, um cão de raça violenta de que se torna amiga. Ambos irão ser adoptados uma e outra vez, ambos viajam com e sem destino pelo país, ambos conhecerão o que terá de ser conhecido por quem ler este brilhante exercício de escrita e de terror. Dois excertos, à laia de exemplo:
“O céu estava baixo e muito escuro. Havia estrias roxas e verdes na distância mais clareada do horizonte e pareciam, céu e mar, uma única onda a levantar-se para cobrir a terra. Myra tirou os sapatos e as meias rotas e ficou parada a ver aquele assombro. Se corresse por ali adentro ninguém daria com ela nunca mais, nem no país dali, nem em nenhum outro.”
(…) “Falta muito?, perguntou Myra, no desvio do descampado deserto, agreste de árvores cinza na madrugada, rebanhos de ovelhas e bois com a cabeça descida à terra ocre, de fome, de sono.
Falta o que falta da tua história. E o Sr. Kleber sorriu.
Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta do paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja.”
A não perder.

EM BUSCA DO GRANDE PEIXE

“Em Busca do Grande Peixe”, de David Lynch (Ed. Estrela Polar, 2008), é um livro de certa forma desconcertante. Tanto aborda o seu processo criativo, como se apruma como obra de bons conselhos iniciáticos, para quem a meditação é um fenómeno essencial, como base de enriquecimento da sua consciência pessoal e como aspecto fundamental para a sua criatividade. Mas não se trata de um qualquer tipo de meditação, mas sim da “Meditação Transcendental”, promovida pela “Foundation for Consciousness-Based Education and World Peace”, entidade a que destina os lucros da edição internacional desta obra, com o objectivo de angariar fundos para incentivar novos programas nas escolas de todo o mundo.
“As ideias são como peixes. Se quisermos capturar peixes pequenos, podemos ficar pelas águas pouco profundas. Mas, se quisermos capturar os peixes grandes, temos de ir mais fundo. Nas águas profundas, os peixes são mais poderosos e mais puros. São enormes e abstractos. E são muito bonitos.” Esta a ideia condutora da obra, que, todavia, conta casos concretos da concepção de certos momentos da sua obra como realizador, dos mais representativos e considerados da actualidade. Pode parecer um livro de “auto-ajuda” e é-o, sem dúvida, mas escrito por uma personalidade fascinante.
Leia-se o que David Lynch confessou a um jornalista brasileiro sobre “Meditação Transcendental”: “A meditação transcendental é uma técnica mental, uma forma antiga de meditação, trazida para o nosso tempo pelo Yogi Maharishi Mahesh. Qualquer ser humano pode usar essa técnica, se achar a chave para abrir a porta para o mais profundo nível da vida. Ciência moderna unida ao antigo oceano da pura consciência vibrante e amplamente desperta, que sempre existiu. Campo eterno, campo infinito, sem limites, que se baseia em matéria e mente. Você tem um mantra, um som bem específico de vibrações e pensamentos.
O mantra de Maharishi torna a consciência interna num mergulho natural nos profundos níveis da mente e do intelecto e então transcende. Experimenta esse oceano, experimenta uma consciência viva e todas essas qualidades positivas. Tudo que na sua vida foi sempre igual passa a expandir-se, todas essas qualidades positivas passam a expandir-se. Em pouco tempo, a vida torna-se muito boa. (…) Um mantra é uma coisa muito preciosa, ele tem que ser um suporte para a vida em todos os níveis profundos.
“ (…) Totalmente desperto é esclarecedor, e o esclarecimento é a única maneira de estar realmente desperto. Todo ser humano tem esse potencial. O potencial total do ser humano é chamado de esclarecimento. Mas precisamos desdobrar isso. Os efeitos colaterais de expandir o esclarecimento são o fim dos pensamentos negativos. Nas escolas há muito stress, muitos problemas. Eles levam os problemas para casa, depois trazem os problemas de casa de volta à escola, é um pesadelo. Passaram a existir dezasseis escolas nos EUA. Um ano antes de começarem, havia violência, tiroteio, facadas, suicídios, stress, stress e mais stress. Aprendia-se muito pouco. Eles começaram a usar a meditação transcendental há um ano e tudo mudou radicalmente. Passaram a ser escolas que todos gostariam de frequentar, as brigas acabaram, as revoltas também. As relações pessoais melhoraram.(…) Não é uma religião. Não é contra nenhuma religião. Não é um culto. É próprio do ser humano. As pessoas passam a falar. Você passa a ouvir mais e mais histórias. Não é uma coisa estranha, é uma coisa do ser humano. Achavam que meditação é muito estranho para usar em escolas e agora descobrem que estranho é não usa-la nas escolas.”
Este lado de “Em Busca do Grande Peixe” é interessante e sabemos que David Lynch não é um charlatão e está sinceramente a falar de algo que conhece e diariamente experimenta. Por outro lado, as pequenas “narrativas” de memórias cinematográficas do cineasta, essas são a não perder.

DUST

“Dust”, de Martha Grimes, é outro policial da Ed. Estampa, colecção Sombra de Dúvida, onde eu descobrira um magnifico “Marcado para Morrer”, de que já aqui falei. Pois “Dust”, nome de bar, não se aproxima da qualidade da obra de John Dunning, apesar de lhe ser aparentado no gosto pela literatura. Desta feita a intriga gira à volta do assassinato de um jovem celibatário, que é baleado num quarto de hotel, a poucos metros da casa onde vive, e a meio de uma refeição. Richard Jury, superintendente da Scotland Yard, chamado por um jovem de treze anos, seu amigo, Benny Keegan, começa a investigação que no entanto tem na inspectora Lu Aguilar, da polícia local, uma mulher surpreendentemente erótica que, cada vez que encontra Jury, o derruba com uma frontalidade e violência que põe o prédio onde este habita em polvorosa.
Billy Maples, assim se chamava a vítima, tomava conta de uma casa museu de Henry James. Aqui entra a atracção pela literatura que vem contagiando dezenas de policiais recentes. Mas desta vez essa atracção foi relativamente fatal para o romance. Martha Grimes deixa-se enredar por toda essa fancaria exterior ao nervo do romance e este não anda nem desanda durante um número excessivo de páginas. O resultado é frustrante. O que para um policial, é… frustrante..

sexta-feira, setembro 05, 2008

LIVROS

Algumas (novas) leituras de férias
Nos últimos tempos a minha atenção em relações a livros anda como sempre dispersa. Li um excelente Ivo Andric (nascido em Travnik, 9 de Outubro de 1892; falecido em Belgrado, 13 de Março de 1975), “O Pátio Maldito” (e tenho na mesinha de cabeceira, entre duzentos outros volumes, “A Ponte Sobre o Drina” para atacar). É um Nobel (1961), nascido na Bósnia, romancista e poeta, com apetências políticas que se notam bem em quem o lê. “O Pátio Maldito” fala-nos de uma prisão na Istambul Otomana que tem uma péssima reputação, só comparável à sua realidade. Ali vai parar Frei Petar, um franciscano bósnio, preso por engano e que, de certa forma, é um alter ego do escritor. O que se descobre neste universo concentracionário onde sobrevivem, lado a lado, inocentes e assassinos do pior jaez, violadores, criminosos, conspiradores, adversários políticos e servidores de religiões caídas em desgraça, é de molde a dar uma ideia do que pensa Ivo Andric da condição humana, da possível ou improvável harmonia entre os homens, e da própria região dos Balcãs que tem servido de berço a tanto conflito. Diz Andric: “Se quiseres saber o que vale um Estado e o seu governo, e qual é o seu futuro, é só ver quantos homens honestos e inocentes há nas prisões desse país e quantos criminosos e delinquentes em liberdade”. A escrita de Andric é de uma soberba clareza e de intensidade invulgar. Edição Cavalo de Ferro.

Heinrich Himmler, o comandante das SS, da Gestapo e principal organizador do Holocausto, um dos baluartes do Nacional-Socialismo, pode considerar-se um dos maiores “monstros” que a Humanidade produziu. É verdade, mas quem se ficar por aí fica-se por uma semi-verdade. Esse tal Heinrich Himmler, que mandava “limpar” o “lixo polaco” (mas só os que não podiam trabalhar nas fábricas militares para glória do III Reich, desses era aproveitada a sua força de trabalho, e só depois seriam “limpos”), esse mesmo Heinrich Himmler tinha irmãos, Gebhard e Ernest, tinha mulher e amante, tinha pais e demais família, não descurava os deveres familiares, era amigo dos seus (raros) amigos, de uma lealdade férrea ao seu Fuher, e teve uma sobrinha-neta de nome Katrin Himmler (nascida em 1967), que resolveu investigar a vida da sua família, e escrever um livro sobre “Os Irmãos Himmler”. Quem aprecia livros de terror não deve perder, como também quem gosta de História. Quem se deleita com histórias de grandes famílias com moralidade final a condizer também não dará por mal empregue o seu tempo. Na verdade, a leitura desta obra é terrível: verificar que um homem, mesmo uma família, que acariciava os caracóis nas cabeças dos seus filhos e se sentava com eles à mesa na noite de Natal, que dava grandes passeios pelas montanhas aos domingos, era o mesmo que mandava gazear milhões de seres iguais a ele em campos de extermínio, é algo que ultrapassa o terror gótico. É muito edificativo ler um livro onde um homem igual a qualquer um de nós (enfim, com uma “pancada a mais”, é certo, mas quantos de nós não poderemos ter essa pancada?) se pode transformar num monstro. Os monstros não existem enquanto tal. Não nascem “monstros”. Fabricam-se em laboratórios sociais. Uma mezinha daqui, uma ideiazinha malsã dali, uma frustraçãozinha mais, um pozinho que anda no ar, e um homem vulgar passa a génio do crime.
Diz Katrin: “Sabia sobre Heinrich Himmler, o meu tio. Sabia sobre “o grande assassino do século”, responsável pela exterminação dos judeus na Europa e assassino de milhões de outras pessoas. Identifico-me com as vítimas e sinto vergonha do meu apelido e, de certa forma, uma inexplicável culpa. Mas sempre evitei olhar para a história da minha própria família.” Até ao dia em que resolveu investigar e publicar o que descobriu. Honra lhe seja feita. Com uma família daquelas, haver uma descendente com esta coragem é de sublinhar. Como de sublinhar é a má tradução e a péssima revisão da Edição Caleidoscópio. Era bom que a revissem numa segunda edição (a haver!).
Nunca fui um entusiasta de Yukio Mishima. Não me inspirava nenhuma confiança aquele japonês que se matou num harakiri em honra do seu Imperador, e que tinha um exército particular. Havia o belíssimo filme de Paul Schrader (“Mishima: A Life in Four Chapters”), mas nem esse me convencia muito. Há dias, a Eduarda começou a traduzir uma correspondência entre Mishima e um outro génio da literatura nipónica, Yasunary Kawabata, e deu-nos aos dois um “coup de foudre”. Desatámos a ler Mishima e Kawabata e empolgámo-nos. Eu continuo com reservas quanto ao militarismo e ao lado auto-destrutivo de Mishima, mas “Confissões de uma Máscara” é uma obra-prima (Edições Assírio & Alvim). Por isso comprei, de livraria em livraria, tudo o que havia para ler de Mishima em português e mandei vir mesmo da Amazon uma biografia, um ensaio de Marguerite Yourcenar, e não fiquei por Mishima, alonguei-me por Kawabata, deliciei-me com a elegância da escrita e a sensibilidade de “Terra de Neve” (Edições Dom Quixote) e o atordoante “A Casa das Belas Adormecidas” (Edições Assírio & Alvim). Enfim, refastelado com muita e muito boa literatura.
Como os génios andam por aí à solta, mais do que se julga, em conversa com o entusiástico embaixador brasileiro Lauro Moreira, veio à baila o duplo centenário de Machado de Assis que eu já não lia há muito (desde os meus tempos de universidade). A conversa foi de tal forma empolgante que o apetite foi instantâneo. Regressado a casa, rebusquei uma lindíssima edição antiga de “Quincas Borba” e não a larguei até agora. É uma escrita tremendamente inventiva, irónica, moderna na sua construção. Uma volta pelas livrarias trouxe-me mais algumas relíquias para saborear durante as noites (por isso há pouca produção por estes lados – desculpem os leitores, mas entre ler génios e escrever para o blogue, ainda por cima com o trabalho que tenho entre mãos, não há que hesitar). Mas sobre Mishima e Assis, voltaremos a falar, certamente.

quarta-feira, outubro 10, 2007

LIVROS: PLANO DE EVASÃO

PLANO DE EVASÃO

Acabei de ler outro livro magnífico de Adolfo Bioy Casares. Chama-se “Plano de Evasão”, tem por cenário mais uma vez de uma ilha, uma ilha prisão, para os que estão, para os que chegam, onde vem aterrar um tal Henrique Nevers, que se proclama administrador, colaborante de Castel, o misterioso e estranho director da prisão, que na ilha do Diabo, constrói algo de que se suspeita a existência, mas de que se desconhece o significado ou o efeito.
Que leva Nevers a ali desembarcar, recordando Irene, o amor perdio ou deixado além? Que está por detrás desta viagem que prenuncia algo de trágico? Existirá realmente aquela ilha? Que “plano de evasão” prepara o director da prisão para os seus prisioneiros, e para si próprio? Onde começa a loucura e termina a lucidez? Quem somos nós, perdidos nessa paisagem que relembra de novo “A Ilha do Doutor Moreau”?
Adolfo Bioy Casares, depois de “A Invenção de Morel”, continua no plano maior dos génios da literatura. Para quem gosta do fantástico, de um realismo fantástico que nos arranha levemente a pele a cada nova página, este é um autor a não perder.


ADOLFO BIOY CASARES

Adolfo Bioy Casares, considerado um dos maiores escritores argentinos de sempre, nasceu a 15 de Setembro de 1914 em Buenos Aires. Continuo a seguir uma pequena nota encontrada na Internet: aos 11 anos escreve o primeiro romance, “Iris y Margarita”, que plagiava "Petit Bob" de Gyp, para com ela seduzir a sua paixão, uma prima de quem estava perdidamente enamorado. Aos 14, surge “Vanidad o Una Aventura Terrorífica”, entrando abertamente pelo fantástico e o policial. Em 1932 conhece, em casa de Victoria Ocampo, o que virá a ser o seu maior amigo e colaborador, Jorge Luis Borges. Este e Silvina Ocampo convencem-no a dedicar-se inteiramente à escrita. Casa com Victoria Ocampo em 1940 e publica “La Invención de Morel”, sua obra mais famosa, hoje um clássico de culto da literatura contemporânea. Bioy e Borges formam durante alguns anos um duo criativo, escrevendo e publicando obras a duo, como “Un Modelo para la Muerte”, “Libro del Cielo y del Infierno” e “Crónicas de Bustos Domecq”, a maioria das quais assinadas com pseudónimo, H. Bustos Domecq. Em 1954, publica “El Sueño de los Héroes”, e nasce a sua única filha, Marta. Em 1969 aparece “Diario de la Guerra del Cerdo”, adaptada depois ao cinema por Leopoldo Torre Nilsson. Entre outros prémios, recebe em 1975 o Gran Premio de Honor de la SADE, é nomeado Membro da Legião de Honra de Francia 1981, e em 1990 recebe o Prémio Cervantes. Considerado por Jorge L. Borges como um dos maiores escritores argentinos de ficção, Bioy Casares tem uma escrita muito pessoal, fundindo realidade e fantasia, onde a elegância do estilo e a fulgurância da imaginação são essenciais. Adolfo Bioy Casares morreu em Buenos Aires a 8 de Março de 1999.


Na sua obra há a destacar:
Romances:
La Invención de Morel (1940)
Plan de Evasión (1945)
El sueño de los héroes (1954)
Diario de la Guerra del Cerdo (1969)
Dormir al Sol (1973)
La Aventura de un Fotógrafo en La Plata (1985)
Un Campeón Desparejo (1993)
De un Mundo a Otro (1997)
Contos:
Prólogo (1929)
17 disparos contra lo porvenir (1933)
La estatua casera (1936)
Luis Greve, muerto (1937)
La trama celeste (1948)
En memoria de Paulina
Las vísperas de Fausto (1949)
Historia prodigiosa (1956)
Guirnalda con amores (1959)
El lado de la sombra (1962)
El gran serafín (1967)
El héroe de las mujeres (1978)
Historia desaforadas (1986)
En viaje (1996) cartas a Silvina
Obras em colaboração:
Seis problemas para don Isidro Parodi (1942), con J.L.Borges
Dos Fantasías memorables (1946), con J.L.Borges
Los que aman, odian (1946), con Silvina Ocampo
Un modelo para la muerte (1946), con J.L.Borges
Crónicas de Bustos Domecq (1967), con J.L.Borges
Nuevos cuentos de Bustos Domecq (1977), con J.L.Borges

Sobre Bioy Casares:

"En una época de escritores caóticos que se vanaglorian de serlo, Bioy es un hombre clásico. No ha cesado aún el debate de los antiguos y de los modernos; Bioy es ajeno a los dos bandos. Es el menos supersticioso de los lectores." - Jorge Luis Borges

"Quisiéramos ser Bioy ... porque nos gustaría tanto escribir sobre Bioy como lo hubiera hecho él... y ... a nosotros nos va a ser imposible." - Julio Cortazar

"El amor - en Bioy Casares - es una percepción privilegiada, la más total y lúcida, no sólo de la irrealidad del mundo, sino de la nuestra." - Octavio Paz

Citações de Bioy Casares:

Resultado:
“Conócete a ti mismo; conviértete en egoísta y en enfermo.”

Pauta:
Que tu vida se asemeje a una descripción de tu vida

Nadie es totalmente fuerte.

El mismo lobo tiene momentos de debilidad, en que se pone del lado del cordero, y piensa: Ojalá que huya.

Ao meu próximo:
Tu alma didáctica no debe halagarse con la suposición de que te irrito porque tengo defectos. Te irrito porque existo.

Escrever:
Cada frase es un problema que la próxima frase plantea nuevamente.

Espelhos:
La disciplina en que somos eruditos nos agrada. En ella asistimos al diestro ejercicio de nuestra inteligencia. En ella nos agradamos.

Última reunião:
Reunirse con los otros: morir. Quieran los dioses prolongar mi soledad.

Divisão de Trabalho:
El domingo los trabajadores están por fin con sus mujeres; los ociosos, por fin, sin ellas.
Justo castigo
Los demonios me contaron que hay un infierno para los sentimentales y los pedantes. Ahí los abandonan en un interminable palacio, más vacío que lleno, y sin ventanas. Los condenados lo recorren como si buscaran algo y, ya se sabe, al rato empiezan a decir que el mayor tormento consiste en no participar de la visión de Dios, que el dolor moral es más vivo que el físico, etcétera. Entonces los demonios los echan al mar de fuego, de donde nadie los sacará nunca.