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quinta-feira, janeiro 13, 2011

CINEMA: JOSÉ E PILAR

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JOSÉ E PILAR


Na aldeia de Azinhaga, terra natal de José Saramago, existem duas ruas que se cruzam: uma com o nome do próprio José Saramago, outra com o de Pilar del Rio, segunda mulher do escritor, a quem ele dedica algumas palavras em “As Pequenas Memórias”, que o dístico que indica a rua eterniza, “A Pilar que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar.”
“José e Pilar”, filme de Miguel Gonçalves Mendes, pode caracterizar-se bem por esse cruzamento de duas vidas que a toponímia de Azinhaga guarda. Este documentário de pouco mais de duas horas que levou quatro anos a ser rodado, é isso mesmo, o cruzar e entrecruzar de pessoas, de emoções, de sentidos contrários que, em vez de se oporem, se completam.
O filme acompanha a vida do escritor entre 2006 e 2009 e passa por momentos decisivos. Saramago é já um escritor com o Nobel, reconhecido internacionalmente, prepara e escreve “A Viagem do Elefante”, interrompida por um período grave de doença. Assistimos a uma época de bem estar e equilíbrio na vida do casal, depois precipitamo-nos na doença, posteriormente na recuperação, e na feira das homenagens, das sessões de autógrafos, das viagens intercontinentais, até ao sopro final.
José Saramago, como qualquer outro homem, não é feito de uma peça só e o filme de Miguel Gonçalves Mendes tem essa virtude: consegue transmitir a imagem de um homem intelectualmente estimulante e arrogante, confrontado com a debilidade física, a doença, a fragilidade.  Consegue captar igualmente o duelo de personalidades que aproxima José e Pilar.
São universos diversos, ambos são forças da natureza, que podiam facilmente colidir, mas facilmente se moldam um ao outro. Pela força do amor, mas também pela mútua admiração. É Pilar quem explica: “Ele era um intelectual, e eu não. Eu organizava a agenda. Mas com a consciência de que o importante era o intelectual. Porque a vida, e a realização da vida, qualquer pessoa consegue. Mas as pessoas que nos enriquecem a todos são muito poucas. E Saramago era uma delas.” Pilar parece dissolver-se no universo de Saramago para o servir o melhor que sabe e pode (mas atenção que nunca perde a palavra, que não aceita a opinião de Saramago sobre Hilary Clinton, por exemplo), mas Saramago também se ajeita ao afago de Pilar. Ambos se encontram nesse cruzamento de Azinhaga, e ambos se dão bem em serem duas ruas diversas que se cruzam num abraço infinito que tem a sóbria paisagem de Lanzarote como cenário de eleição.
Mas há muitos outros contrários que o filme refere, do prazer da vida que se leva e da fama que se alcançou à desumanidade das longas sessões de autógrafos, das amenas cavaqueiras com amigos, aos enfadonhos congressos onde se irmana o bocejar de alguns escritores, onde se dormita sem má consciência, das longas viagens que atravessam oceanos às recatadas manhãs em pijama no seu escritório, escrevendo. Saramago é pessimista, cínico, terno, comovente, sarcástico, forte como um touro a subir à montanha, seco e quebradiço quando levado numa cadeira de rodas que o desloca na doença.
O segredo do filme de Miguel Gonçalves Mendes é a câmara estar lá, no sítio certo, na hora exacta, sem parecer que está. É o respeito do realizador para com o objecto do seu trabalho. É a transparência do olhar e o propósito aparentemente contemplativo: o realizador olha, regista, não interfere, deixa que aconteça, rouba esses momentos de intimidade sem no entanto os sublinhar. Por vezes mostra-nos que está lá, intencionalmente. Saramago fala-nos directamente, via câmara. Questiona-nos. Sabemos: isto é um filme. Saramago representa: “Encontramo-nos num outro sítio”.
Um abraço, um beijo, uma caminhada, uma conversa no interior de um carro ou de um avião, um fechar de olhos numa cerimónia pública, um assomo de aborrecimento por mais um acontecimento a que não se pode faltar, tudo isto a câmara regista, quase indiscreta, mas sempre discreta, serena, objectiva. Objectiva? Onde a objectividade se cruza com a subjectividade. Porque esta forma de não interferir é a forma que Miguel Gonçalves Mendes escolheu para mostrar a sua admiração, o seu apreço para com o casal José e Pilar.
É difícil não gostar deste filme límpido, de uma beleza austera e helénica. Mesmo quem não goste dos livros de Saramago ou não aprecie a postura do homem, mesmo quem não sinta especial simpatia por Pilar, não pode deixar de se render a esta homenagem onde se assiste a um escritor repensar a vida e a morte, embrenhar-se pelo processo criativo de gerar um novo romance, espreitar o desenrolar de um grande amor, e até assistir de janela à girândola quase assassina das imposições do mercado que não recua perante nada e suga os autores até ao tutano. Não deixa também de ser incómodo, (re)vermo-nos no papel de constrangedores leitores, entusiastas, disputando um autógrafo, numa nova esquina de rua.  
“José e Pilar” é um belíssimo retrato, esboçado com largueza, mas simultaneamente com rigor e precisão. Mais um que Miguel Gonçalves Mendes (Covilhã, 2 de Setembro de 1978) nos oferece de um escritor português, depois dessa sua outra aproximação de Mário Cesariny de Vasconcelos, em “Autofagia” (2004).
 
JOSÉ E PILAR
Título original: José e Pilar
Realização: Miguel Gonçalves Mendes (Portugal, Espanha, Brasil, 2010); Produção: Ana Jordão, Abel Ribeiro Chaves, Daniela Siragusa; Música: Adriana Calcanhoto, Camané, José Mário Branco, Luís Cilia, Bruno Palazzo, Noiserv, Pedro Gonçalves, Pedro Granato; Fotografia (cor): Daniel Neves; Montagem: Cláudia Rita Oliveira; Som: Barbara Alvarez, Hugo Alves, Olivier Blanc, Adriana Bolito; Companhias de produção: Jumpcut, El Deseo (Espanha), O2 Filmes (Brasil), Abel Ribeiro Chaves / OPTEC, Lda; SIC (Portugal), YLE (Finlândia), SVT (Suécia); Intérpretes: José Saramago, Pilar del Rio, etc. Duração: 125 minutos; Distribuição em Portugal: JumpCut; Classificação etária: M/ 6 anos; Estreia em Portugal: 18 de Novembro de 2010.

quinta-feira, janeiro 01, 2009

O ÚLTIMO ROMANCE DE 2008

A VIAGEM DO ELEFANTE
Já o disse por diversas vezes: Saramago não é autor cuja escrita me toque particularmente. Pois bem, acabei de ler “A Viagem do Elefante” e gostei muito. Trata-se de um romance muito bem construindo, com uma escrita desenvolta, elegante, divertida, mesclando realidade histórica e imaginação ficcionista com uma liberdade e habilidade notáveis. A base é, como se sabe, real: no século XVI, o nosso rei D. João III, querendo impressionar a Europa do seu tempo e em particular o seu primo, genro do imperador Carlos V, o arquiduque Maximiliano da Áustria, envia a este, em caravana, por terra, o presente mais exótico que imaginar se poderia por essa altura, Salomão, um elefante indiano que viajara de Goa, na Índia, dois anos atrás, e se encontrava em Belém. O romance acompanha o itinerário do elefante e do seu tratador, o cornaca Subhro (depois chamado Fritz, por vontade do arquiduque) de Lisboa a Valladolid, onde se encontravam, de férias, o arquiduque e a sua mulher, Maria. E depois, atravessando os Alpes, em pleno Inverno, de Espanha até Viena de Áustria, passando por Itália.
O livro abre com uma citação do “Livro dos Itinerários”: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”, citação sobre que se baseará a metáfora de toda a obra. Mas o que costuma ser por vezes pesadamente demagógico em Saramago é aqui aberto e saudavelmente livre, arejado por um humor comunicativo e uma ironia fina. Boa surpresa e seguramente um dos melhores trabalhos do nosso Prémio Nobel, que nem parece ter sido escrito em condições desvantajosas, com a doença a rondar.
E assim escreve José Saramago, lá pelos meios do romance:

“Não há vento, porém a névoa parece mover-se em lentos turbilhões como se o próprio bóreas, em pessoa, a estivesse soprando desde o mais recôndito norte e dos gelos eternos. O que não está bem, confessemo-lo, é que, em situação tão delicada como esta, alguém se tenha posto aqui a puxar o lustro à prosa para sacar alguns reflexos poéticos sem pinta de originalidade. A esta hora os companheiros da caravana já deram com certeza pela falta do ausente, dois deles declararam-se voluntários para voltar atrás e salvar o desditoso náufrago, e isso seria muito de agradecer se não fosse a fama de poltrão que o iria acompanhar para o resto da vida, Imaginem, diria a voz pública, o tipo ali sentado, à espera de que aparecesse alguém a salvá-lo, há gente que não tem vergonha nenhuma. É verdade que tinha estado sentado, mas agora já se levantou e deu corajosamente o primeiro passo, a perna direita adiante, para esconjurar os malefícios do destino e dos seus poderosos aliados, a sorte e o acaso, a perna esquerda de repente duvidosa, e o caso não era para menos, pois o chão deixara de poder ver-se, como se uma nova maré de nevoeiro tivesse começado a subir. Ao terceiro passo já não consegue nem sequer ver as suas próprias mãos estendidas à frente, como para proteger o nariz do choque contra uma porta inesperada. Foi então que uma outra ideia se lhe apresentou, a de que o caminho fizesse curvas para um lado ou para o outro, e que o rumo que tomara, uma linha que não queria apenas ser recta, uma linha que queria também manter-se constante nessa direcção, acabasse por conduzi-lo a páramos onde a perdição do seu ser, tanto da alma como do corpo, estaria assegurada, neste último caso com consequências imediatas. E tudo isto, ó sorte mofina, sem um cão para lhe enxugar as lágrimas quando o grande momento chegasse. Ainda pensou em voltar para trás, pedir abrigo na aldeia até que o banco de nevoeiro se desfizesse por si mesmo, mas, perdido o sentido de orientação, confundidos os pontos cardeais como se estivesse num qualquer espaço exterior de que nada soubesse, não achou melhor resposta que sentar-se outra vez no chão e esperar que o destino, a casualidade, a sorte, qualquer deles ou todos juntos, trouxessem os abnegados voluntários ao minúsculo palmo de terra em que se encontrava, como uma ilha no mar oceano, sem comunicações. Com mais propriedade, uma agulha em palheiro. Ao cabo de três minutos, dormia. Estranho animal é este bicho homem, tão capaz de tremendas insónias por causa de uma insignificância como de dormir à perna solta na véspera da batalha. Assim sucedeu. Ferrou no sono, e é de crer que ainda hoje estaria a dormir se salomão não tivesse soltado, de repente, em qualquer parte do nevoeiro, um barrito atroador cujos ecos deveriam ter chegado às distantes margens do ganges. Aturdido pelo brusco despertar, não conseguiu discernir em que direcção poderia estar o emissor sonoro que decidira salvá-lo de um enregelamento fatal, ou pior ainda, de ser devorado pelos lobos, porque isto é terra de lobos, e um homem sozinho e desarmado não tem salvação ante uma alcateia ou um simples exemplar da espécie. A segunda chamada de salomão foi mais potente ainda que a primeira, começou por uma espécie de gorgolejo surdo nos abismos da garganta, como um rufar de tambores, a que imediatamente se sucedeu o clangor sincopado que forma o grito deste animal. O homem já vai atravessando a bruma como um cavaleiro disparado à carga, de lança em riste, enquanto mentalmente implora, Outra vez, salomão, por favor, outra vez. E salomão fez-lhe a vontade, soltou novo barrito, menos forte, como de simples confirmação, porque o náufrago que era já deixara de o ser, já vem chegando, aqui está o carro da intendência da cavalaria, não se lhe podem distinguir os pormenores porque as coisas e as pessoas são como borrões indistintos, outra ideia se nos ocorreu agora, bastante mais incómoda, suponhamos que este nevoeiro é dos que corroem as peles, a da gente, a dos cavalos, a do próprio elefante, apesar de grossa, que não há tigre que lhe meta o dente, os nevoeiros não são todos iguais, um dia se gritará gás, e ai de quem não levar na cabeça uma celada bem ajustada. A um soldado que passa, levando o cavalo pela reata, o náufrago pergunta-lhe se os voluntários já regressaram da missão de salvamento e resgate, e ele respondeu à interpelação com um olhar desconfiado, como se estivesse diante de um provocador, que havê-los já os havia em abundância no século dezasseis, basta consultar os arquivos da inquisição, e responde, secamente, Onde é que você foi buscar essas fantasias, aqui não houve nenhum pedido de voluntários, com um nevoeiro destes a única atitude sensata foi a que tomámos, manter-nos juntos até que ele decidisse por si mesmo levantar-se, aliás, pedir voluntários não é muito do estilo do comandante, em geral limita-se a apontar tu, tu e tu, vocês, em frente, marche, o comandante diz que, heróis, heróis, ou vamos sê-lo todos, ou ninguém. Para tornar mais clara a vontade de acabar a conversa, o soldado içou-se rapidamente para cima do cavalo, disse até logo e desapareceu no nevoeiro. Não ia satisfeito consigo mesmo. Tinha dado explicações que ninguém lhe havia pedido, feito comentários para que não estava autorizado. No entanto, tranquilizava-o o facto de que o homem, embora não parecesse ter o físico adequado, deveria pertencer, outra possibilidade não cabia, pelo menos, ao grupo daqueles que haviam sido contratados para ajudar a empurrar e puxar os carros de bois nos passos difíceis, gente de poucos falares e, em princípio, escassíssima imaginação. Em princípio, diga-se, porque ao homem perdido no nevoeiro imaginação foi o que pareceu não lhe ter faltado, haja vista a ligeireza com que tirou do nada, do não acontecido, os voluntários que deveriam ter ido salvá-lo. Felizmente para a sua credibilidade pública, o elefante é outra coisa. Grande, enorme, barrigudo, com uma voz de estarrecer os tímidos e uma tromba como não a tem nenhum outro animal da criação, o elefante nunca poderia ser produto de uma imaginação, por muito fértil e dada ao risco que fosse. O elefante, simplesmente, ou existiria, ou não existiria. É portanto hora de ir visitá-lo, hora de lhe agradecer a energia com que usou a salvadora trombeta que deus lhe deu, se este sítio fosse o vale de josafá teriam ressuscitado os mortos, mas sendo apenas o que é, um pedaço bruto de terra portuguesa afogado pela névoa onde alguém (quem) esteve a ponto de morrer de frio e abandono, diremos, para não perder de todo a trabalhosa comparação em que nos metemos, que há ressurreições tão bem administradas que chega a ser possível executá-las antes do passamento do próprio sujeito. Foi como se o elefante tivesse pensado, Aquele pobre diabo vai morrer, vou ressuscitá-lo. E aqui temos o pobre diabo desfazendo-se em agradecimentos, em juras de gratidão para toda a vida, até que o cornaca se decidiu a perguntar, Que foi que o elefante lhe fez para que você lhe esteja tão agradecido, Se não fosse ele, eu teria morrido de frio ou teria sido comido pelos lobos, E como conseguiu ele isso, se não saiu daqui desde que acordou, Não precisou de sair daqui, bastou-lhe soprar na sua trombeta, eu estava perdido no nevoeiro e foi a sua voz que me salvou, Se alguém pode falar das obras e feitos de salomão, sou eu, que para isso sou o seu cornaca, portanto não venha para cá com essa treta de ter ouvido um barrito, Um barrito, não, os barritos que estas orelhas que a terra há-de comer ouviram foram três. O cornaca pensou, Este fulano está doido varrido, variou-se-lhe a cabeça com a febre do nevoeiro, foi o mais certo, tem-se ouvido falar de casos assim, Depois, em voz alta, Para não estarmos aqui a discutir, barrito sim, barrito não, barrito talvez, pergunte você a esses homens que aí vêm se ouviram alguma coisa. Os homens, três vultos cujos difusos contornos pareciam oscilar e tremer a cada passo, davam imediata vontade de perguntar, Onde é que vocês querem ir com semelhante tempo. Sabemos que não era esta a pergunta que o maníaco dos barritos lhes fazia neste momento e sabemos a resposta que lhe estavam a dar. Também não sabemos se algumas destas coisas estão relacionadas umas com as outras, e quais, e como. O certo é que o sol, como uma imensa vassoura luminosa, rompeu de repente o nevoeiro e empurrou-o para longe. A paisagem fez-se visível no que sempre havia sido, pedras, árvores, barrancos, montanhas. Os três homens já não estão aqui. O cornaca abre a boca para falar, mas torna a fechá-la. O maníaco dos barritos começou a perder consistência e volume, a encolher-se, tornou-se meio redondo, transparente como uma bola de sabão, se é que os péssimos sabões que se fabricam neste tempo são capazes de formar aquele maravilhas cristalinas que alguém teve o génio de inventar, e de repente desapareceu da vista. Fez plof e sumiu-se. Há onomatopeias providenciais. Imagine-se que tínhamos de descrever o processo de sumição do sujeito com todos os pormenores. Seriam precisas, pelo menos, dez páginas. Plof.”

terça-feira, novembro 18, 2008

CINEMA: ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, II

UM FINAL, DOIS FINAIS
Tentemos explicitar melhor por que gosto mais do filme do que romance, por que acho o romance redundante e o filme não. Agarre-se no final do romance. O médico e a mulher estão na sua sala e falam. A mulher vai à janela.
Lê-se no livro: “Porque foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Sim, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que vendo, não vêem.
A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava.”
Este o final do livro. Depois de 300 páginas de uma parábola muito interessante, mas óbvia, o autor ainda sentiu a necessidade de sublinhar: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que vendo, não vêem.” Totalmente desnecessário, inútil, uma confissão de desconfiança nas capacidades dos leitores: será que todos perceberam, vamos lá dizê-lo outra vez.
No filme, o médico retoma a vista, outros se seguirão, a mulher do médico chega à janela, e olha uma paisagem de cores garridas (a única paisagem realista do filme, julgo que de São Paulo, com os jardins em primeiro plano e a paisagem urbana lá ao fundo) e afirma qualquer coisa como “Agora vou cegar eu!?”. Mas a paisagem continua lá. Admirável, de cor, de vida.
Este final é superiormente inteligente e abre para uma nova leitura da obra que nunca está contida no filme: imagine-se que o que o livro e o filme afirmam até aqui é que nesta terra de supostos cegos, a única que “vê”, mas em sentido simbólico, é esta mulher (isto é. ela é a única que “vê”, que sente os males do mundo e os procura ultrapassar, solidarizando, oferecendo-se para viver com os cegos, em constante iminência de contágio, perdoando actos de infidelidade, oferecendo o seu corpo á violência nas horas más, pegando em armas contra a tirania, quando tudo se torna insuportável, etc.). Mas agora podemos ir mais longe: todo o filme é o resultado da imaginação dela, tudo não passou de um pesadelo (por isso a fotografia é negra, irrealista, ao longo de todo o filme, até aqui). Ela chegou à janela, olhou a cidade e a paisagem, e pensou na brutalidade do dia a dia, na competição feroz, na desumanidade, no aviltamento de uns pelos outros, e imaginou este mundo de injustiças constantes levado a extremos, se as circunstancias o facilitassem, por exemplo, se todos fossem cegos. Por um momento (que para nós espectadores dura duas horas, o tempo de projecção do filme) imagina esse pesadelo. Lá dentro está o marido, que ela pensou ser o primeiro atingido. Regressada à realidade, olha a fabulosa paisagem que tem à sua frente, e coloca a questão angustiosa, “E se agora for eu?”, isto é, E se agora cegar eu, Deixar eu de sentir esta solidariedade e esta humanidade que me tem acompanhado até agora? Questão que dela passa para os espectadores, sem demagogia, nem constrangimento. Com subtileza e inteligência. Tanta ou tão pouca que vejo muitos críticos a acusar o filme de fraquezas que não deslumbro, mas não vi nenhum ainda abrir a obra a leituras novas.

segunda-feira, novembro 17, 2008

CINEMA: ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
A história da literatura, a do cinema, enfim toda a história da arte está repleta de utopias e de antecipações catastróficas do futuro. Umas e outras querem no fundo significar o mesmo: que o presente que se vive não é exemplar e que, de uma forma ou outra, urge modificar as coisas para que a vida do Homem na Terra possa ser melhor (o que anunciam as utopias, pelo lado positivo) ou para que a vida na Terra não seja um pesadelo (o que as antecipações catastróficas prevêem). O romance de José Saramago, “Ensaio sobre a Cegueira” é do segundo tipo, podendo colocar-se ao lado de outras obras de antecipação como “O ÚIltimo Homem sobre a Terra” ou alguns romances e filmes de “mortos-vivos”, de “Metrópolis” ou de “Blade Runner”. Com algumas características a diferenciá-lo, certamente. Enquanto quase todos os outros partem de antecipações catastrofistas de cunho popular, esta assume o seu lugar erudito. Todas querem dizer mais ou menos a mesma coisa: que, se não se arrepiar caminho, o futuro do Homem é sombrio, mas em Saramago não há simbologias associadas a vampiros ou mortos-vivos. Há cegos, com tudo o que a palavra comporta igualmente de simbólico (cegos = os que não vêem, os que ignoram o que os rodeia). Imagine-se que, um certo dia, uma epidemia de cegueira grassava entre os humanos. Não numa cidade particular ou país em especial, mas na Terra, na Humanidade. Por isso o filme de Fernando Meirelles, rodado entre São Paulo (Brasil) e Montevideu (Uruguai), não precisa nunca qual a cidade em que estamos, e procura reunir um pouco de todas as raças, dos brancos aos negros, dos latino-americanos aos japoneses. A parábola diz respeito à Terra na sua globalidade, e à Humanidade. Se atentarmos melhor no discurso, percebe-se que se dirige a aspectos que constituem a essência do ser humano, no que este tem de pior: a necessidade de poder, a avidez, a tendência endémica para a maldade, a perversidade, a cupidez. Quando todos ficam cegos, há logo quem se imponha, se auto nomeie “Rei” e submeta pela força os restantes, ou procurando roubar-lhes as riquezas (a propriedade privada) ou impondo-lhes a indignidade (as mulheres são obrigadas a entregarem-se aos senhores da camarata que detêm o poder, o revólver, por um lado, e a sabedoria, o cego de nascença que sabe como ninguém conviver com a desgraça da escuridão, ou da luz branca). A parábola é óbvia, basta acompanhar com alguma atenção o percurso do livro ou o do filme: o homem tem de ser solidário para sobreviver, e, se for caso disso, os lobos têm de ser abatidos para que os cordeiros se salvem.
De uma crueldade invulgar, com cenas que psicologicamente roçam o insuportável, o filme de Fernando Meirelles (que nos dera “”O Fiel Jardineiro” e “Cidade de Deus”, entre outros) assume-se como um exercício de escrita coerente e compacto, sem grandes deslizes e uma progressão dramática tensa e obsessiva. A parábola da cegueira mexe com os espectadores, tal como mexe com os leitores (mas no cinema a cegueira é mais “visível”), pois continua a ser uma das ameaças mais temidas. Por isso livro e filme adquirem tamanho impacto e desespero. Depois, o significado torna-se muito claro. Os propósitos do livro eram demasiados evidentes, os do filme são-no igualmente. Não é preciso pensar muito para se chegar onde os autores querem chegar.
Neste aspecto, acho José Saramago um óptimo e fortíssimo inventor de boas histórias com moralidades sociais mais ou menos evidentes. Depois, dependendo dos títulos, a sua escrita tem pouco de subtil, não deixa grande lugar ao leitor, manipula-o deliberadamente com um maniqueísmo óbvio, esgrimindo “lições” compulsivas, que o tornam por vezes demasiado demagógico. É uma opinião pessoal, obviamente. Devo dizer que é um autor que não perco, mas que nem sempre chego ao fim. O livro retirado deste seu romance é, porém, uma adaptação fiel ao espírito da obra, mas algo que me quadra melhor. Não será uma obra-prima perfeita, longe disso, mas é um filme que consegue marcar os espectadores de forma indelével. Os monólogos do velho negro são escusados, mas as personagens são muito bem trabalhadas, os actores bons, Julianne Moore brilhante (fico a aguardar pelas nomeações para a ver incluída na lista e é bem capaz de haver mais umas quantas surpresas, argumento adaptado, por exemplo). Há cenas magníficas, a violação colectiva, a mulher morta a ser lavada, a insurreição da camarata 1, a cena de amor entre o médico e a mulher dos óculos escuros, logo a cena inicial do primeiro anúncio de cegueira, que nos introduz num ambiente de cortar à faca, e algumas mais. A segurança de Meireles a segurar a tensão num plano altíssimo é de assinalar. A fotografia colabora enormemente para este clima, não só de cegueira colectiva, como de morbidez e viscosidade contagiante. No que a direcção artística funciona bem, igualmente. As cenas de ruas, com os amontoados de carros e lixo, o cenário desolador de porcaria acumulada nos corredores das camaratas, e no interior das mesmas, os supermercados esventrados, tudo contribui para restituir um ambiente de fim de mundo convincente e brutal.
Normalmente a imagem é mais demagógica que a palavra, porque mais evidente, porque mostra em vez de sugerir. Neste caso, porém, o cuidado de Fernando Meirelles e da sua equipa em manter o filme num nível de grande plausibilidade consegue tornar uma aposta difícil e perigosa numa aposta ganha.
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
Título original: Blindness ou Ensaio Sobre a Cegueira
Realização: Fernando Meirelles (Canadá, Brasil, Japão, 2008); Argumento: Don McKellar, segundo romance de José Saramago (“Ensaio sobre a Cegueira”); Produção: Andrea Barata Ribeiro, Niv Fichman, Sonoko Sakai, Bel Berlinck, Sari Friedland, Simon Channing Williams, Gail Egan, Akira Ishii, Victor Loewy, Tom Yoda, Claudia Büschel, Aeschylus Poulos, Chris Romano, Austin Wong, Nicolas Aznarez; Música: Marco Antônio Guimarães; Fotografia (cor): César Charlone; Montagem: Daniel Rezende; Casting: Deirdre Bowen, Susie Figgis; Design de Produção: Matthew Davies, Tulé Peak; Direcção artística: Joshu de Cartier; Decoração: Erica Milo; Guarda-roupa: Renée April; Maquilhagem: Debra Johnson, Janie MacKay, Susan Reilly LeHane, Micheline Trépanier, Anna Van Steen, Catherine Viot; Direcção de produção: Marcelo Cotrim, Andrezza de Faria, Ivan Teixeira; Assistentes de realização: Adam Bocknek, Penny Charter, Joana Cooper, Tyler Delben, Walter Gasparovic, Tomas Portella, Flavia Zanini; Departamento de arte: Mary Arthurs, Daniel Fernandez, Steve Stack; Som: Guilherme Ayrosa, Alessandro Laroca, Eduardo Virmond Lima; Efeitos visuais: Martin Cobelo, Madhava Reddy, Andre Waller, Andre Waller; Companhias de Producção: Rhombus Media, O2 Filmes, Bee Vine Pictures, Alliance Films, Ancine, Asmik Ace Entertainment, BNDES, Corus Entertainment, Fox Filmes do Brasil, GAGA Communications, IFF/CINV, Movie Central Network, Téléfilm Canada;
Intérpretes: Julianne Moore (mulher do médico), Mark Ruffalo (médico), Alice Braga (mulher dos óculos escuros), Yusuke Iseya (primeiro cego), Yoshino Kimura (mulher do primeiro cego), Don McKellar (ladrão), Jason Bermingham, Maury Chaykin, Mitchell Nye (rapaz), Eduardo Semerjian, Danny Glover (negro com olho tapado), Gael García Bernal (o “rei”), Joe Pingue, Susan Coyne, Fabiana Guglielmetti, Antônio Fragoso, Lilian Blanc, Douglas Silva, Joe Cobden, Daniel Zettel, Mpho Koaho, Tom Melissis, Tracy Wright, Amanda Hiebert, Jorge Molina, Patrick Garrow, Gerry Mendicino, Matt Gordon, Sandra Oh, Anthero Montenegro, Fernando Patau, Otávio Martins, João Velho, Marvin Karon, Joseph Motiki, Johnny Goltz, Robert Bidaman, Niv Fichman, Oscar Hsu, Martha Burns, Scott Anderson, Michael Mahonen, Joris Jarsky, Billy Otis, Linlyn Lue, Toni Ellwand, Mariah Inger, Nadia Litz, Isai Rivera Blas, Rick Demas, Kelly Fiddick, Matt Fitzgerald, Mike G. Yohannes, Norman Owen, Jackie Brown, Victoria Fodor, Agi Gallus, Bathsheba Garnett, Alice Poon, Plínio Soares, Rodrigo Arijon, Mel Ciocolato, Heraldo Firmino, Carol Hubner, Fernando Macário, Eduardo Parisi, Rodrigo Pessin, Domingos Antonio, Ciça Meirelles, Katherine East, Katia Kieling, etc.
Duração: 120 min; Classificação etária: M/16 anos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Data de estreia: 13 de Novembro de 2008 (Portugal).