sábado, janeiro 04, 2014

CINEMA: 12 ANOS ESCRAVO


12 ANOS ESCRAVO

Arrisco-me a escrever que “12 Anos Escravo” é o melhor filme sobre a questão da escravatura que eu alguma vez vi. E vi muitos, e alguns muito bons. Mas esta obra de Steve McQueen (autor anterior de filmes magníficos, como “Fome” e “A Vergonha”) ultrapassa-os a todos. Vamos ver se consigo explicar o porquê desta minha conclusão, e o que me terá levado a ela.
Antes de tudo o mais, o argumento é de uma inteligência extrema, adaptando uma obra autobiográfica, “Twelve Years a Slave”, de Solomon Northup, obra surgida em 1853. A história, muito resumidamente, relata as desventuras de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), um negro livre que vive desafogadamente em Nova Iorque, corre o ano de 1841. Solomon é homem instruído, culto, violoncelista, casado e pai de dois filhos. Um dia é aliciado para se juntar, durante algumas semanas, a dois artistas circenses, e parte pensando arrecadar alguns dólares extra com a tournée. Sem que nada o faça prever, é raptado em Washington e levado prisoneiro para os Estados do Sul, onde a escravatura era a base da economia rural, que tinha na apanha do algodão o seu maior tesouro e na mão-de-obra escrava a razão principal do seu excessivo lucro. Aí vai passando de dono em dono, até se ver instalado na propriedade de Edwin Epps (Michael Fassbender), um latifundiário sem escrúpulos, que o trata selvaticamente, tal como a todos os outros, incluindo a sua negra “protegida”, Patsey (Lupita Nyong'o). O pesadelo de Solomon Northup estende-se por uns longos doze anos, até que consegue ser resgatado por amigos do Norte que formalizam com documentos, junto às autoridades do Sul, a sua condição de homem livre.

Há desde logo um aspecto que torna este filme diferente da grande maioria de outros títulos onde a escravatura é abordada. Antes de ser escravo, Solomon Northup é um homem livre, gozando de todos os direitos e deveres de um cidadão como qualquer outro que, em 2013, está a ver o filme. Esta identificação é decisiva para o impacto da obra. Ela mostra o absurdo da escravatura, o arbitrário de alguém ser livre agora e escravo no momento seguinte, por um simples acto de pirataria, criminoso num Estado, legalizado num outro. (É conveniente ter-se em conta que o filme se passa num período anterior à Guerra da Secessão norte-americana, que se irá prolongar entre 1861 e 1865, opondo precisamente os Estados do Norte industrializado aos do Sul rural). Depois, existe um inquietante sentido de normalidade ao longo de todo o filme, a realidade presente de uma actividade consentida e instituída, onde o Mal impera sem necessidade de disfarces ou desculpas. Estamos no domínio do terrível absurdo, mas de um absurdo banalizado, normalizado.
Deve ainda sublinhar-se uma outra questão que julgo essencial na obra: Solomon Northup é um herói na forma como consegue sobreviver à sua tragédia pessoal, mas essa sobrevivência impõe-lhe regras e sujeições que o transformam não num herói, mas num anti-herói. Ele tem de esconder a sua cultura e a sua condição, não confessa aos seus “donos” que sabe ler, aceita ver açoitar uma mulher indefesa, vê morrer companheiros de desdita, atravessa quase sempre calado um calvário de brutalidade sem nome. Numa situação limite, ele é apenas humano: quer viver. Sobreviver. A 12 anos de escravatura.

Este aspecto liga-se ao que me parece o mais importante no filme de Steve McQueen, que é a forma escolhida pelo realizador para narrar a sua história. Não há qualquer transigência com o melodramático ou a demagogia emocional. A escrita é dura e enxuta, sem rodriguinhos, a câmara enquadra de forma justa e directa, num estilo seco e objectivo. A violência existe e explode mas o olhar é distante, não por desinteresse mas por respeito. O resultado é mais grave para o espectador que se confronta ele próprio com as imagens. Por vezes, a montagem acelera, aqui e ali há um efeito certo e eficaz (o barco que leva os escravos, trajecto que é visto através das rodas que fazem avançar a embarcação, por exemplo, ou o travelling vertical que sobe da cave onde se encontram os prisioneiro, até se descobrir o outro lado de Washington). Mas o essencial de “12 Anos Escravo” é “mostrar” para o espectador ter a liberdade de perceber por si próprio, tirar as conclusões sem dirigismos constrangedores.
Produzido entre outros por Steve McQueen e Brad Pitt, tudo em “12 Years a Slave” parece perfeito, imaginado e concretizado como não pudesse ser de outra forma. Adam Stockhausen, David Stein, Alice Baker e Patricia Norris assinam direcção artística, decoração e guarda-roupa com um requinte e cuidado extremos; a fotografia de Sean Bobbitt é notável, assim como a brilhante montagem de Joe Walker e a inspirada partitura musical de Hans Zimmer. Na interpretação, raras vezes se encontra um elenco com tamanho talento, sobriedade e fulgor. Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch, Paul Dano, Paul Giamatti, Lupita Nyong'o, Sarah Paulson ou Brad Pitt são simplesmente brilhantes, fazendo de “12 Anos Escravo” uma obra-prima que certamente ira brilhar na noite nos Oscars.

12 ANOS ESCRAVO
Título original: 12 Years a Slave

Realização: Steve McQueen (EUA, 2013); Argumento: John Ridley, segundo obra de Solomon Northup ("Twelve Years a Slave"); Produção:  Dede Gardner, Anthony Katagas, Jeremy Kleiner, Steve McQueen, Arnon Milchan, Brad Pitt, Bill Pohlad, John Ridley, Tessa Ross; Música: Hans Zimmer; Fotografia (cor): Sean Bobbitt; Montagem: Joe Walker; Casting: Francine Maisler; Design de produção: Adam Stockhausen; Direcção artística:  David Stein; Decoração:  Alice Baker; Guarda-roupa: Patricia Norris; Maquilhagem: Ma Kalaadevi Ananda, Nana Fischer, Adruitha Lee; Direcção de Produção:  Alissa M. Kantrow, Alissa M. Kantrow; Assistentes de realização: Doug Torres, Mark Carter, Nathan Parker, James Roque, Ann C. Salzer, Sherman Shelton Jr.; Departamento de arte: Carl Counts, Matthew Gatlin, David Rotondo, Walter Schneider, Jim Wallis; Som: Ryan Collins, Jesse Ehredt, Kirk Francis, Robert Jackson, Robert Jackson, Tim Limer, Jordan O'Neill; Efeitos especiais: David Nash; Efeitos visuais: Elbert Irving IV, Chris LeDoux, Katie McCall, Dottie Starling; Companhias de produção: Regency Enterprises, River Road Entertainment, Plan B Entertainment, New Regency Pictures, Film4, Regency Enterprises; Intérpretes: Chiwetel Ejiofor (Solomon Northup), Michael Fassbender (Edwin Epps), Benedict Cumberbatch (William Ford), Paul Dano (John Tibeats), Paul Giamatti (Theophilus Freeman), Lupita Nyong'o (Patsey), Brad Pitt (Samuel Bass), Alfre Woodard (Harriet Shaw), Sarah Paulson (Mary Epps), Quvenzhané Wallis (Margaret Northup), Dwight Henry (Tio Abram), Michael K. Williams (Robert), Garret Dillahunt (Armsby), Scoot McNairy (Brown), Ruth Negga (Celeste), Adepero Oduye (Eliza), Chris Chalk (Clemens Ray), Christopher Berry (James Burch), Taran Killam (Hamilton), Dickie Gravois, Bryan Batt, Ashley Dyke, Kelsey Scott, Cameron Zeigler, Tony Bentley, Bill Camp, Mister Mackey Jr., Craig Tate, Storm Reid, Tom Proctor, Marc Macaulay, Vivian Fleming-Alvarez, Douglas M. Griffin, John McConnell, Marcus Lyle Brown, Richard Holden, Rob Steinberg, Anwan Glover, James C. Victor, Liza J. Bennett, Nicole Collins, J.D. Evermore, Andy Dylan, Deneen Tyler, Mustafa Harris, Gregory Bright, Austin Purnell, Thomas Francis Murphy, Andre De'Sean Shanks, Kelvin Harrison, Scott Michael Jefferson, Alfre Woodard, Isaiah Jackson, Garret Dillahunt, Topsy Chapman, Devin Maurice Evans, Jay Huguley, Devyn A. Tyler, Willo Jean-Baptiste, etc. Duração: 134 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 16 anos; Data de estreia em Portugal: 2 de Janeiro de 2014.

quarta-feira, janeiro 01, 2014

CINEMA: O GRANDE MESTRE


O GRANDE MESTRE

“O Grande Mestre”, de Wong Kar-Wai, é um filme plasticamente por vezes deslumbrante, o que não será surpresa para quem conhece um pouco da obra deste cineasta. Revelado em Portugal em meados dos anos 90, com um surpreendente “Chungking Express”, não deixou de nos entusiasmar de então para cá com títulos como “As Cinzas do Tempo”,  “Anjos Caídos”, “Felizes Juntos”, “Disponível Para Amar”, “2046”, “Eros” (episódio "A Mão"), “My Blueberry Nights - O Sabor do Amor”, este último de 2007, rodado nos EUA. “Disponível Para Amar”,  “2046” e fabulosa curta que integra “Eros” são os meus preferidos, mas não há nenhum Wong Kar-Wai de que eu não goste.
“Yi dai zong shi” (O Grande Mestre) assinala assim o regresso de Wong Kar-Wai ao filme de fundo, seis anos depois da sua última longa-metragem, e refere ainda o regresso ao Oriente natal, à China e a Hong Kong,  às artes marciais, numa incursão que tem uma base biográfica (a vida de Ip Man, mestre de artes marciais, professor, entre muitos outros, de Bruce Lee), através da qual se estabelece igualmente um retrato da China, entre os anos 30 e o final da sua vida (Ip Man  viveu entre 1893 e 1972). Ip Man já justificara dois filmes de Wilson Yip, “Yip Man” e “Yip Man 2”, em 2008 e 2010, com Donnie Yen no protagonista, e ainda uma outra abordagem, em 2010, “Yip Man chinchyun”, de Herman Yau, com Yu-Hang To no papel principal. Desconhecemos qualquer destas obras, que sabemos bem cotadas pela crítica oriental, mas o súbito interesse por esta personagem deverá ter as suas razões profundas.

A dar crédito ao que o filme evoca, este mestre de artes marciais terá tido a sua importância na tentativa de unificação da China do Sul e do Norte, que, inclusive do ponto de vista das artes marciais, apresentava forte rivalidade e escolas diferentes e que Ip Man terá ajudado a reunir. Possuía uma filosofia da arte e da prática do kung fu muito própria, que resumia em duas palavras: “horizontal e vertical” e que definiam essencialmente estados de combate: na vertical ataca-se e defende-se, na horizontal está-se quase sempre à mercê do adversário. Para exemplificar esta e outras questões, o filme abre logo com um prodigioso combate, todo ele filmado à chuva, e que desde logo nos oferece o melhor que esta obra nos dá: a qualidade plástica da fotografia, os enquadramentos estudados, as cores utilizadas, o ritmo imposto, a coreografia do espectáculo, uma certa poética do choque e do entrelaçar dos corpos.
Depois Wong Kar-Wai vai mesclando a história pessoal de Ip Man com a história da China no século XX, passando pela guerra entre a China e o Japão, a ascensão ao poder de Mao Tse Tung e dos comunistas, o exílio em Hong Kong. Wong Kar-Wai não pretende, todavia, um filme “histórico”, mas antes oferecer uma visão da História, que perpassa em pano de fundo, filtrada através da vida de um homem. Para conseguir estes propósitos, o cineasta organiza o filme como um puzzle de flashbacks, interligando tempos e espaços diferentes. O resultado neste aspecto nem sempre funciona, tornando algo confuso e cansativo para o espectador. De resto, parecem surgir outros tipos de equívocos. Sendo aparentemente um filme de kung fu, nunca o é, mas também nunca se afirma como um legítimo herdeiro de outras obras deste cineasta. Quem vai à procura do intimista e sensual autor de “Disponível Para Amar”, de “2046”, do episódio de “Eros” ou de “My Blueberry Nights - O Sabor do Amor”, só nalguns momentos, sobretudo aqueles onde surge Gong Er (Zhang Ziyi), o vai encontrar; quem vai no engodo de um filme de kung fu arrisca-se a sair frustrado, muito embora surjam sequências admiráveis desta prática.

Tony Leung, Zhang Ziyi e Chang Chen, actores que vêm de Hong Kong, da China Continental e de Taiwan, são os protagonistas desta obra, e confirmam as já celebradas aptidões. A qualidade técnica desta mega produção chinesa que procura competir com o Ocidente é inquestionável. Mas falta muito do Wong Kar-Wai que conhecemos para nos convencer em definitivo. Um projecto que levou dez anos a concretizar, seis dos quais a rodar e pós-produzir, perdeu certamente frescura e ganhou um certo tom majestático que não se coaduna bem com a trajectória anterior deste cineasta. Não deslustra, mas desilude.

O GRANDE MESTRE
Título original: Yi dai zong ou Yi dai zong shi ou The Grandmaster
Realização: Wong Kar Wai (Hong Kong, China,2013); Argumento: Wong Kar Wai, Jingzhi Zou, Haofeng Xu; Produção:  Kar Wai Wong, Jacky Pang Yee Wah, Ye-cheng Chan, Hong Tat Cheung, Megan Ellison, See-Yuen Ng, Yue Ren, Dai Song, Michael J. Werner, Wai-Chung Chan; Música: Nathaniel Méchaly, Shigeru Umebayashi;  Fotografia (cor):  Philippe Le Sourd; Montagem:  William Chang; Design de produção:  William Chang, Wai Ming Alfred Yau; Direcção artística:  Tony Au, William Chang, Alfred Yau; Guarda-roupa:  William Chang; Maquilhagem:  Lee-na Kwan, Qi Wang, Kewei Xiao;  Direcção de Produção:  Wendy Chan, Kai Sui Hung; Assistentes de realização:  Janice Ho, Ronald Zee; Som: Robert Mackenzie; Efeitos visuais: Lerouge Alexandre, Serge Martin, Isabelle Perin-Leduc; Companhias de produção: Block 2 Pictures, Jet Tone Films, Sil-Metropole Organisation, Bona International Film Group; Intérpretes: Tony Leung Chiu Wai (Ip Man), Tony Leung Chiu-Wai as Ip Man (Ye Wen), Zhang Ziyi (Gong Er), Song Hye-kyo (Cheung Wing-sing), Chang Chen ("The Razor" Yixiantian), Zhao Benshan (Ding Lianshan), Wang Qingxiang (Gong Yutian), Zhang Jin (Ma San), Yuen Woo-ping (Chan Wah-shun), Xiaoshenyang (Sanjiangshui), Cung Le (Tiexieqi), Shang Tielong (Jiang), Lo Hoi-pang, Chin Shih-chieh, Wang Jue, Lau Ga-yung, Lau Shun, Zhou Xiaofei, Bruce Leung, Julian Cheung, Lo Mang, Berg Ng, etc. Duração: 130 minutos; Distribuição em Portugal: Leopardo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 12 de Dezembro de 2013.


domingo, dezembro 22, 2013

CINEMA: CAPITÃO PHILLIPS


CAPITÃO PHILLIPS

“Capitão Phillips” parte de um acontecimento real, posteriormente descrito em livro pelo principal protagonista desta história, o capitão Richard Phillips. A obra chama-se “A Captain's Duty: Somali Pirates, Navy SEALS, and Dangerous Days at Sea" e foi adaptada ao cinema pelo próprio, de colaboração com Billy Ray, e realizada por Paul Greengrass, um cineasta inglês adoptado pelos estúdios norte-americanos, e grande especialista em filmes de acção e suspense. Veja-se o caso de “Domingo Sangrento” (2002), “Supremacia” (2004), “Voo 93” (2006), “Ultimato” (2007), e “Green Zone: Combate pela Verdade” (2010), todos anteriores a este “Capitão Phillips”, bem colocado nas nomeações para os Globos de Ouro, a atribuir em Janeiro pela "Hollywood Foreign Press Association".
“Capitão Phillips” é um bom filme que deve, no entanto, ser visto sob diversos pontos de vista. Antes de mais, trata-se de um bom argumento de aventuras, bem desenvolvido dramaticamente, criando uma tensão intensa ao longo das suas mais de duas horas, que passam céleres para o espectador. Paul Greengrass sabe cozinhar como poucos este tipo de espectáculos, já dera boas provas e volta a confirmar créditos. Os actores são excelentes, Tom Hanks prepara-se para, pelo menos, mais uma nomeação para os Oscars, e o chefe dos piratas, Muse, interpretado por Barkhad Abdi também não deve andar longe de uma outra nomeação para actores secundários.


A história é sabida e resume-se rapidamente sem retirar suspense ao que se irá ver. Os jornais já deram a notícia amplamente aquando da ocorrência, no ano de 2009. Um barco cargueiro norte-americano, o Maersk Alabama, ao passar pelo Corno de África, uma zona do Nordeste Africano onde se encontram países como a Somália e os seus temidos piratas, é feito refém por um grupo de modernos salteadores de barcos, interessados apenas em negócios, isto é, extorquir alguns milhões de dólares a troco da libertação dos reféns e do navio. A coisa começa por ser quase ridícula. Duas pequenas embarcações pesqueiras, cada uma delas com quatro ou cinco homens a bordo, conseguem fazer parar e aprisionar um cargueiro de porte impressionante, carregado com dezenas de tripulantes. É evidente que os piratas estão armados e os tripulantes desarmados, mas tudo parece demasiado filme de animação. Não se percebe muito bem como um navio daqueles sulca águas perigosas indo completamente desarmado, quando os casos de piratagem são extremamente frequentes por aquelas zonas. Se o que nos contam não se inspirasse em factos reais, dificilmente se acreditaria num tal argumento. Mas a verdade é que aconteceu e quatro ou cinco salteadores mal-encarados (e subnutridos), com armas muito nervosas nas mãos, conseguem manter em cativeiro o capitão e toda a tripulação do Maersk Alabama, que entretanto pedira auxílio às autoridades marítimas que para a zona deslocam barcos de guerra, porta-aviões e uma equipa das célebres forças especiais SEALS. A monstruosidade da diferença de forças em presença é absolutamente gritante, sobretudo quando o minúsculo salva-vidas do Maersk Alabama, onde se refugiam os piratas com o capitão Phillips, se encontra rodeado no mar alto pelo poderio militar dos EUA.
Virtudes do filme de Paul Greengrass? Primeiramente, tornar viável esta situação irrealista, que, no entanto, foi muito real para quem a viveu. O filme consegue mostrar como foi possível esta luta de um David contra Golias sem esbarrar no ridículo. Percebe-se como um gigante se torna vulnerável. Depois, manter esse clima de tensão constante e de crescente suspense. Paul Greengrass é mestre nestas situações e os excelentes actores ajudam muito.


Finalmente, o realizador ultrapassou igualmente um aspecto que poderia ser muito redutor para o filme. Estas personagens necessitavam de densidade psicológica, de força humana, de argumentos para fazerem o que fazem, tanto da parte dos reféns, como sobretudo dos piratas. Estes são apresentados obviamente como assaltantes criminosos, mas existe alguma complexidade psicológica nos seus retratos. No meio de tamanha tensão, consegue haver momentos de humor (“Capitão, você fala demais”, ao que o capitão responde: “Eu não falo demais, você é que não me ouve”) e sobretudo aspectos de irónica contradição (afinal o que Muse quer é “ir para a América”, “fazer negócio”, e ter “muitos milhões” para gastar).
Vulgar filme de aventura para entretenimento das massas? Ora bem, aqui há que referir um outro aspecto desta obra. “Capitão Phillips” é uma obra apologética dos valores americanos como há muito se não via. Não só o capitão Philips é o novo heróico self made man que sabe encontrar-se à altura das situações e defrontá-las a contento, qual velho xerife das planícies do Oeste, como ainda os EUA se mostram um país que não se intimida contra nenhuma ameaça externa, de terrorismo ou pirataria, e tudo faz mesmo que seja para salvar um seu cidadão.
“Capitão Phillips” não é, pois, só mais um filme de aventuras, mas um alerta lançado à escala mundial: não se metam connosco que nós respondemos à letra. O que é legítimo para qualquer país, mas era escusado de ser tão evidente.

CAPITÃO PHILLIPS
Título original: Captain Phillips

Realização: Paul Greengrass (EUA, 2013); Argumento: Billy Ray, Richard Phillips, segundo a obra “A Captain's Duty: Somali Pirates, Navy SEALS, and Dangerous Days at Sea" deste último; Produção: Dana Brunetti, Eli Bush, Michael De Luca, Gregory Goodman, Christopher Rouse, Scott Rudin, Kevin Spacey; Música: Henry Jackman; Fotografia (cor): Barry Ackroyd; Montagem: Christopher Rouse; Casting: Francine Maisler; Design de produção: Paul Kirby; Direcção artística: Charlo Dalli, Raymond Pumilia, Paul Richards, Su Whitaker;  Decoração: Dominic Capon, Larry Dias, Corey Hughes-Shaw; Guarda-roupa:  Mark Bridges; Maquilhagem: Frances Hannon, Emma Mash; Direcção de Produção: Sam Breckman, Ravi Dube, Todd Lewis, Katryna Samut-Tagliaferro, Samuel Sharpe, Michael Solinger, Scott Thaler; Assistentes de realização:Tarik Ait Ben Ali, Tom Brewster, Chris Carreras, Mark S. Constance, David Crabtree, Chris Forster; Departamento de arte: Joseph Kearney, Trey Shaffer, Andrew Tapper; Som: Michael Fentum; Efeitos especiais:  Matt Kutcher, Dominic Tuohy; Efeitos visuais:  Sara Emack, Judith Gericke, Richard Kidd, Charlie Noble, Zissis Papatzikis, Adam Rowland; Companhias de produção: Michael De Luca Productions, Scott Rudin Productions, Translux, Trigger Street Productions; Intérpretes: Tom Hanks (Captain Richard Phillips), Barkhad Abdi (Muse), Barkhad Abdirahman (Bilal), Faysal Ahmed (Najee), Mahat M. Ali (Elmi), Michael Chernus (Shane Murphy), Catherine Keener (Andrea Phillips), David Warshofsky (Mike Perry), Corey Johnson (Ken Quinn), Chris Mulkey (John Cronan), Yul Vazquez, Max Martini, Omar Berdouni, Mohamed Ali, Issak Farah Samatar, Thomas Grube, Mark Holden, San Shella, Terence Anderson, Marc Anwar, David Webber, Amr El-Bayoumi, Vincenzo Nicoli, Kapil Arun, Louis Mahoney, etc. Duração: 134 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia TriStar Warner Filmes de Portugal; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 24 de Outubro de 2013.

sábado, dezembro 14, 2013

TEATRO: ROBIN DOS BOSQUES


ROBIN DOS BOSQUES

Filipe La Féria continua a não descurar o seu público mais jovem e voltou a encenar uma peça baseada num herói mítico que tem acompanhado diversas gerações e cujo regresso a cena se saúda, numa altura em que muitos proclamam, pela Europa fora (e em Portugal, em particular), que fazia falta um (ou vários) Robins dos Bosques para imporem alguma justiça neste regabofe de impunidade contributiva que faz lembrar os tempos negros do Xerife de Nottingham e do famigerado Príncipe João.
Pois bem, o Robin Hood da floresta de Sherwood aí está numa divertida encenação com o toque mágico de Filipe La Féria (uma encenação que, dir-se-ia, possui um vestígio de teatro épico e didáctico de Brecht), com um equilibrado elenco e um bom aproveitamento das condições do Teatro Politeama. O enredo segue mais ou menos as tradicionais baladas medievais que exaltavam a figura do bandoleiro que roubava aos ricos para dar aos pobres, e introduz mesmo algumas variantes que fazem vibrar os mais novos, como a bruxa Camafeu e um terrível dragão.
Ricardo Soler é o Robin dos Bosques, “Príncipe dos Ladrões” e paladino da justiça social,  Sara Cabeleira é Lady Marian,  e Ana Sofia Cruz a Aia Briolanja. No bando de Robin dos Bosques surgem ainda João Pequeno (Bruno Xavier), Piolho (David Mesquita), Pitosga (Jonas Cardoso), Trovador (Pedro Bandeira) e Pastelão (Paulo Ferreira), todos eles em luta contra os roubos e os impostos mirabolantes decretados pelo Príncipe João (Sérgio Lucas) e brutalmente impostos pelo Xerife de Nottingham (Tiago Isidro). A Bruxa Camafeu (Vânia Naia) tem uma breve mas explosiva aparição.
O espectáculo tem sessões no Teatro Politeama, às 11h da manhã e às 14 horas de Terça a Sexta-feira e aos Sábados e Domingos, às 15 horas.

A miudagem delira com mais este musical. Eu assisti e comprovo.  

TEATRO: OS JURAMENTOS INDISCRETOS


OS JURAMENTOS INDISCRETOS

O teatro de Marivaux atravessa toda a primeira metade do século XVIII numa toada de discreta comédia de costumes, onde o amor é o tema central, e os seus infortúnios a base da trama. Em “Os Juramentos Indiscretos”, escrito em 1732, não se foge à regra deste teatro que não direi de excepção, mas que está longe de ser negligenciado. Marivaux sabia construir e sustentar uma comédia de enganos e equívocos, que daria depois lugar à comédia de boulevard de inspiração francesa, e que terá tido como influência directa a commedia dell'arte italiana e de alguma forma Molière, ainda que este fosse bem mais demolidor na sua crítica social.
Em “Os Juramentos Indiscretos”, temos uma ténue intriga: Orgon e Ergaste são pais de Lucile e Phénice, o primeiro, e de  Damis, o segundo. Como era uso e costume na época, resolvem selar a amizade que os liga e os interesses que os unem organizando o casamento de Damis com Lucile. Mas os jovens não estão pelos ajustes e, antes mesmo de se conhecerem, resolvem impugnar a decisão paterna. Ela não quer casar, ele tem horror ao casamento. Até que se encontram, se apaixonam, mas resolvem estabelecer um pacto de nunca se casarem um com o outro. À falta de Lucile, salta para a cena Phénice, a irmã de Lucile, e afinal o casamento com Damis é marcado. Para lá desta intriga, lateralmente, surgem Lisette, e Frontin, criados de Lucile e de Damis, respectivamente, que assumem os desejos dos seus jovens patrões, inclusive por calculismo, para manterem os bons empregos. Mas Lucile torna-se uma obsessão para Damis, e este um secreto desgosto para Lucile. Mas, como estamos no domínio da comédia de sentimentos em que o amor triunfa sempre, lá chegará a altura de tudo se compor. Afinal triunfa o amor e a estabilidade social e os pais até tinham razão.
Mas a peça é bem construída, os cordelinhos bem oleados, a graça é discreta e sensível, a elegância mantém-se de princípio até ao fim, e serve perfeitamente para um bom exercício de encenação e representação pelo Teatro dos Aloés. O cenário é muito bonito e engenhoso, a encenação de José Peixoto é delicada e inteligente, um verdadeiro trabalho de miniaturista, atenta a todos os pormenores, movimentando com alegria e vivacidade as personagens no espaço cénico, e trabalhando com eficácia cada frase, cada gesto. O elenco (Adriana Moniz, Carla Chambel, Carlos Malvarez, Jorge Silva, José Peixoto, Nuno Nunes e Sara Cipriano) é globalmente bastante competente e deixa-se contaminar pela graça festiva do texto, a iluminação é excelente, tirando bom partido do cenário, e o acompanhamento musical inspirado.
Se a peça não arrasa, o divertimento que provoca é salutar e demonstra o bom momento do Teatro dos Aloés, que se saúda. (Até domingo, 15, no Teatro D. Maria II).


OS JURAMENTOS INDISCRETOS (Les Serments Indiscrets), de Marivaux; tradução Maria João Brilhante; encenação José Peixoto; cenografia Marta Carreiras; conceito de figurinos Marta Carreiras a partir dos figurinos do espólio do TNDM II de Abílio Matos e Silva, Catarina Amaro, Nuno Carinhas, Octávio Clérigo, Ruy de Matos; desenho de luz Jochen Pasternacki; música Luís Cília; Assistência de encenação Anna Eremin; Intérpretes:  Adriana Moniz, Carla Chambel, Carlos Malvarez, Jorge Silva, José Peixoto, Nuno Nunes, Sara Cipriano; coprodução Teatro dos Aloés, TNSJ. M/12 anos. 

sexta-feira, novembro 29, 2013

TEATRO: EM DIRECÇÃO AOS CÉUS


EM DIRECÇÃO AOS CÉUS
“Em Direcção aos Céus”, escrita por Ödön von Horváth (1901–1938), é, no entender do autor, “uma comédia sem truques de magia: dado o momento que vivemos, creio que este tipo de teatro pode ser bastante útil, uma vez que nos permite abordar temas de que não nos seria possível falar de outra forma”. Datada de 1934, a peça ressente-se já do ambiente vivido na Alemanha (e na Áustria, onde seria estreada). Edmund Josef von Horváth nascera em Sušak, Rijeka, no então Império Austro-húngaro (hoje Croácia) e viria a falecer novo, com 37 anos, em Paris. Para assinar os seus trabalhos teatrais e literários assumiu o seu nome húngaro, Ödön von Horváth, dado que habitou Budapeste durante alguns anos da sua juventude. Com um pai diplomata, viajou muito, passando por Belgrado (1902-1908), Budapeste (1908–1913), Munique (1913-1916), Bratislava (1916-1918), Viena (1919) e de novo Munique, onde começou os estudos literários na Universidade. Começou a escrever cedo, raros romances e um número avultado de peças de teatro, que os seus estudiosos dividem em duas fases: uma até 1933, altura em que foge da Alemanha em crescente nazificação, outra a partir dai, com obras escritas quer em Viena de Áustria, quer em Paris. Inicialmente, dir-se-ia um autor mais directamente politizado e crítico, depois seria lido como um dramaturgo metafórico e algo metafísico. Terá sido a forma por si encontrada para “abordar temas de que não nos seria possível falar de outra forma”. Mas permanece popular e crítico, efabulador e satírico.
Da primeira fase são as obras mais conhecidas do público português: "Casimiro e Carolina", encenada por Luís Miguel Cintra, Cristina Reis e Jorge Silva Melo, na Cornucópia, em 1977, "A Noite Italiana", dirigida por Mário Barradas, em Évora, em 1995, ou "Histórias do Bosque de Viena", prémio Kleist, da República de Weimar, em 1931, encenada pelo colectivo Truta.
“Em Direcção aos Céus” fala de teatro, de uma jovem cantora que permanece várias semanas à porta de um teatro, à espera de uma audição, quando a mãe morre e vai para o Céu, e o pai morre e vai para o Inferno. O palco divide-se em três zonas, no centro o teatro (exterior), na direita a entrada do Céu, na esquerda a descida ao Inferno. De um lado, São Pedro, do outro, o Diabo, ambos transaccionando almas. Para ser uma grande diva, Luísa Steinthaler aceita vender a alma ao director da companhia, que por sua vez a revende ao Diabo, para ter uma vida de sucesso. O resto decorre daqui, é divertido e instrutivo, tendo as canções da época e as áreas das óperas cantadas por Luísa como banda sonora.
A escolha da peça para o reportório do Teatro Municipal Joaquim Benite, de Almada, parece-me feliz, por ser uma obra simultaneamente popular e exigente, e conta com uma encenação segura, sóbria e inventiva de Rodrigo Francisco. A cenografia de Jean-Guy Lecat é particularmente feliz, e os figurinos de Ana Paula Rocha muito sugestivos. Globalmente, a representação é toda ela muito homogénea, mas há que sublinhar o trabalho de Ana Cris, André Alves, André Gomes, Joana Francampos, Luís Vicente, Marques d'Arede ou Teresa Gafeira.



EM DIRECÇÃO AOS CÉUS

Texto de Ödön von Horváth; Tradução Maria Gabriela Fragoso; Encenação: Rodrigo Francisco; Cenografia Jean-Guy Lecat; Figurinos Ana Paula Rocha; Luz Guilherme Frazão; Voz e elocução Luís Madureira; Som Miguel Laureano; Movimento Catarina Câmara; Intérpretes Ana Cris, André Alves, André Gomes, Carlos Pereira, Catarina Reis, Celestino Silva, Duarte Guimarães, Joana Francampos, João Farraia, Luís Vicente, Manuel Mendonça, Marques D’Arede, Miguel Martins, Paulo Guerreiro, Pedro Walter e Teresa Gafeira e os estagiários Alexandre Silva, Ana Rita Trino e Rute Guerreiro; Sala Principal, de 2 a 30 de Novembro; de quarta a sábado, às 21H30, domingo, às 16H00; Duração: 2H00 com Intervalo; M/12 anos. 

quarta-feira, novembro 06, 2013

POLÍTICA E FOME


UM ANO SEM COMER PARA PAGAR A DÍVIDA
No “Público” de ontem podia ler-se:  - O ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, que na noite desta segunda-feira esteve em Ovar numa sessão de esclarecimento sobre o Orçamento do Estado para 2014, garante que não é através da injecção de dinheiro na economia que o país cresce. "A pura injecção de dinheiro na economia provoca distorção no sistema produtivo. A economia recupera quando há trabalho bem orientado e quando se consegue ser competitivo".
E continuava: - Para Nuno Crato, os sinais "ténues" de crescimento não podem ser ignorados. "Portugal entrou numa espiral responsável", refere. Mas antes, o governante lembrou que, neste momento, os portugueses teriam de "trabalhar mais de um ano sem comer e sem utilizar transportes só para pagar a dívida". "Estamos no sistema monetário do euro, não temos uma máquina de imprimir dinheiro", avisa o ministro, que faz questão de lembrar os sinais positivos.
Muito bem. Devo dizer que tinha a maior consideração por Nuno Crato, antes dele assumir a pasta de Ministro. Devo acrescentar que compreendo a frase e o significado da metáfora "trabalhar mais de um ano sem comer e sem utilizar transportes só para pagar a dívida". Mas também acho que se poderiam criar outras comparações, de belo recorte literário, para se chegar ao mesmo efeito dramático: “quantos lucros de grandes empresas seria necessário reduzir para pagar a dívida?” ou, numa outra direcção: “quantos portugueses reformados seria necessário exterminar para se pagar a dívida?”. Estilo “solução final” para endireitar as finanças. Ou então “quantos políticos, empresários, gerentes e equivalentes, corruptos, incompetentes, desnecessários, tapa buracos seria necessário despachar para pagar a dívida?” Reparem que só estou  a falar em “corruptos, incompetentes, desnecessários, tapa buracos”, porque acho que há muito boa gente que se salvava em todos esses cargos e a generalização só agrada a quem pretende desacreditar a democracia, para a substituir por algo da sua maior simpatia.
Voltado à metáfora do Senhor Ministro. Eu até não a levaria a mal. Mas a verdade é que  os portugueses que trabalham (ou querem trabalhar e estão no desemprego!), alguns já estão há mais de um ano sem comer e sem utilizar transportes, outros já só comem metade e viajam muito menos do que deviam e a dívida continua a crescer. O que quer dizer que ou o governo é incompetente, ou então há alguns portugueses, quer trabalhem ou não, que estão a “comer” muito mais do que deviam. Porque, na verdade, a fome de alguns milhares não tem pesado na balança de todos.
Mas já percebi onde nos querem fazer chegar: “um ano sem comer para pagar a dívida”. “Coragem, portugueses!, mais um esforço e os nossos esqueletos chegarão lá!”.


quinta-feira, outubro 31, 2013

CINEMA: FUGA

FUGA

Jeff Nichols realizou até hoje três longas metragens e pode dizer-se que cada uma delas foi um tiro no porta-aviões, de tão certeiras, o que não deixa de ser surpreendente para um autor ainda jovem (nasceu a 7 de Dezembro de 1978, em Little Rock, Arkansas, nos EUA). Na verdade, “Histórias de Caçadeiras” (2007), “Procurem Abrigo” (2011) e agora este “Fuga” (no original “Mud”), de 2012, mostram-nos, desde início, um autor na plena posse das suas faculdades e senhor de um universo muito pessoal, que passa de filme para filme com uma coerência e uma qualidade plástica e narrativa evidente. Arkansas, Ohio, de novo Arkansas, estes foram os cenários naturais escolhidos por Jeff Nichols para os seus três filmes. Todos eles longe das grandes metrópoles, próximos do seu Arkansas natal, este último tendo o rio Mississippi como referência maior e Mark Twain como inspiração óbvia.
Esta é a história de dois adolescentes amigos, que vivem em casas lacustres nas margens do Mississippi e que resolvem viajar pelo rio até uma ilha perdida, onde descobrem um barco pousado no cimo de uma árvore. Estranha descoberta que logo é superada pelo facto de o barco estar habitado: alguém ali vive, esse alguém é Mud, uma personagem misteriosa, daquelas de quem se ignora o passado e pouco se sabe do presente. Mas percebe-se que anda fugido, que tenta recuperar o barco para nele se escapar, e que para tanto precisa da ajuda de Ellis e Neckbone, os dois jovens idealistas, a meio caminho entre a meninice e a idade adulta, presos por imagens de amor perdido (os pais que se separam, a namorada que se julga ser e não é, o grande amor que se persegue, por quem se mata e, todavia, não irá concretizar o happy end idealizado) e por aspirações a uma pureza de intenções e de emoções que não se afigura tão fácil de alcançar como os seus sonhos o prediziam.
Um hesita, o outro confia, vê em Mud o grande herói das aventuras não vividas, mas ambos acabam por ajudar o acossado a perseguir o seu desejo de amor e de liberdade.
História de amizade e cumplicidade, aprendizagem da vida, das ilusões às decepções, da ternura à violência, “Mud” é um retrato de uma ternura modelar de dois jovens e um foragido aprisionados pela carcaça de um barco voador que um dia poderá sulcar as águas do rio.
Metáfora das contingências da vida? Um barco preso nos ramos de uma árvore é apenas imagem idealizada de um desejo, é preciso pô-lo a navegar nas habituais águas do rio, para o que se necessita do pragmatismo das ferramentas necessárias. Sem o sonho não se foge da dura realidade, é bem verdade, mas sem a adaptação às necessidades da existência não se sobrevive. Filme iniciático, portanto, escrito com uma tocante delicadeza, um pudor indesmentível, que nem as explosões de violência conseguem toldar. Violência que é física, violência que é também psicológica, em ambos os casos brutais, como diria Jeff Nichols algures “um conto de Mark Twain adaptado por Sam Peckinpah”.
Num universo em que se acredita na beleza da paisagem circundante e na harmonia dos homens, Ellis e Neckbone vão descobrir as asperezas que se escondem por detrás do retrato da falsa felicidade no lar, na sociedade, nas relações humanas, nas cobras venenosas que circulam nos charcos. O mundo de Jeff Nichols está povoado de irmãos desavindos, de neuróticos que se sentem ameaçados pelo fim do mundo, e por adolescentes em confronto com terríveis realidades que vão descobrindo subitamente. Há neste universo rural uma visceral verdade que torna cada um dos seus filmes uma espécie de docudrama, todo ele ficcionado, mas de uma tal plausibilidade que arrebata. Os seus protagonistas são personagens psicologicamente torturadas, envoltas num clima de uma intensidade traumatizante. Essa violência entranhada na paisagem não está, porém, isenta de um intenso lirismo que redime e transfigura. Não temos dúvidas ao afirmar que Jeff Nichols é uma das grandes certezas do actual cinema norte-americano, na esteira de um cineasta maior como Terrence Malick.

Em “Mud”, há ainda que sublinhar o extraordinário trabalhos dos dois actores jovens, Tye Sheridan (Ellis), e particularmente Jacob Lofland (Neckbone), que tudo indica vir a tornar-se uma nova coqueluche, ao lado de um notável Matthew McConaughey, na figura de Mud, bem acompanhados por Reese Witherspoon (Juniper), Sam Shepard (Tom), Ray McKinnon (Senior), Sarah Paulson (Mary Lee), Michael Shannon (Galen) e do velho Joe Don Baker, a recordar as suas antigas criações de gangster desapiedado.

FUGA
Título original: Mud

Realização: Jeff Nichols (EUA, 2012); Argumento: Jeff Nichols; Produção: Glen Basner, Lisa Maria Falcone, Michael Flynn, Dan Glass, Sarah Green, Tom Heller, Morgan Pollitt, Aaron Ryder, Gareth Smith; Música: David Wingo; Fotografia (cor): Adam Stone; Montagem: Julie Monroe; Casting: Francine Maisler; Design bdeprodução: Richard A. Wright; Direcção artística: Elliott Glick; Decoração: Fontaine Beauchamp Hebb; Guarda-roupa: Kari Perkins; Maquilhagem: Carla Brenholtz, Matthew W. Mungle, Kelly Nelson, Clinton Wayne; Direcção de produção: Michael Flynn, Sarah Green, Nancy Kirhoffer, Christopher H. Warner; Assistentes de realização: Cas Donovan, Hope Garrison, Phil Hardage; Departamento de arte: Lizzy Faulkner Chandler, Daniel Coe, Mark Moore; Som: Will Files; Efeitos especiais: Everett Byrom III; Efeitos visuais: Method Studios; Companhias de produção: Brace Cove Productions, FilmNation Entertainment; Intérpretes: Matthew McConaughey (Mud), Reese Witherspoon (Juniper), Tye Sheridan (Ellis), Jacob Lofland (Neckbone), Sam Shepard (Tom), Ray McKinnon (Senior), Sarah Paulson (Mary Lee), Michael Shannon (Galen), Joe Don Baker (King), Paul Sparks (Carver), Bonnie Sturdivant (May Pearl), Stuart Greer (Miller), John Ward Jr., Kristy Barrington, Johnny Cheek, Kenneth Hill, Michael Abbott Jr., Earnest McCoy, Allie Wade, Douglas Ligon, Matt Newcomb, Mary Alice Jones, Tate Smalley, Jimmy Dinwiddie, Ryan Jacks, etc. Duração: 130 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: ZON Audiovisuais; Data de estreia em Portugal: 24 de Outubro de 2013.

segunda-feira, outubro 21, 2013

CINEMA: GRAVIDADE


GRAVIDADE

“Gravidade” é o típico projecto cinematográfico que ou resulta em grande ou ameaça a catástrofe. Colocar dois actores no espaço, primeiro dentro de uma estação espacial, depois literalmente no espaço, envoltos nos fatos espaciais que quase os eliminam como figuras físicas, é um ponto de partida dramático. Se falhar, será mesmo um ponto de partida e de chegada trágico. No caso do filme de Alfonso Cuarón que agora surgiu nas salas internacionais, com Sandra Bullock e George Clooney nos papéis de protagonistas, o sucesso é evidente e estamos na presença de um dos mais sensacionais filmes de ficção científica vistos nos últimos tempos. Não se trata de uma obra de acção, nada a ver com “Stars War” ou “Star Trek”. Poderá relacionar-se com “2001- Odisseia no Espaço”, mas a um nível mais intimista, o que tendo o espaço infinito como cenário único, não deixa de ser perceptível, por um lado, e angustiante pelo outro. É aliás desse confronto entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno que ressalta uma grande parte do interesse do filme, em simultâneo profundamente pessoal e metafisico.
Há especialistas do espaço que protestam por haver erros ou imprecisões científicas aqui e ali. Que importa? Em arte não se chega muitas vezes ao essencial com a verdade dos factos, mas com o sonho e a intuição. “Gravidade” não é um documentário sobre como sobreviver no espaço, em determinadas circunstâncias adversas. “Gravidade” é um filme de ficção que coloca questões existenciais: como o homem deve enfrentar as adversidades, e também como sucumbir com dignidade perante elas.


Matt Kowalsky (George Clooney) e Ryan Stone (Sandra Bullock) são dois astronautas que se encontram no espaço, em missão. Ele viaja por espírito aventureiro, o seu sonho é bater o record de permanência livre no espaço, ela refugiou-se nesta exploração em grande parte para esquecer a morte de uma filha. Ele sabe como agradar às mulheres e fala continuamente, sem parar, sabe tudo sobre técnica e tem um espírito despegado e generoso, que terá oportunidade de por à prova; ela é médica, discreta, nada a diferencia de uma vulgar dona de casa, um pouco insegura, mas resoluta quando chega a altura de mostrar o que vale. À partida, ele é um poço de vida, ela alguém que procura a morte. O futuro se encarregará de baralhar os dados.
Andam pelo espaço presos à nave por um cordão umbilical, quando uma saraivada de meteoritos se abate sobre eles. Duas outras naves chocaram no espaço, a milhares de quilómetros, e os estilhaços provocados, lançados a alta velocidade, mostram-se demolidores. Rapidamente Matt Kowalsky e Ryan Stone se descobrem sozinhos no espaço, destruída a sua estação orbital e mortos todos os restantes companheiros de expedição. É neste ponto que começa a odisseia individual de “Gravidade”. Como resistir, se é que há possibilidade de sobreviver.


É um milagre de inteligência e sensibilidade o que Alfonso Cuarón e o seu filho Jonas Cuarón conseguem como argumentistas e um novo feito o que o cineasta alcança como realizador. Sustentar durante hora e meia esta viagem peregrina mantendo o suspense e criando um clima simultaneamente onírico e de fim do mundo, mesclando a beleza das paisagens e o terror do desconhecido. Os actores mostram-se à altura do empreendimento, muito bem escolhidos em função dos papéis que desempenham e das características emocionais de cada uma das personagens. Sozinha com as estrelas por companhia e um passado trágico a recordar, Ryan Stone fará das tripas coração para sobreviver e regressar à Terra numa demonstração de apego à vida que ela própria ignorava. Lição para cada espectador, como lição fora a entrega de Matt Kowalsky quando mais nada havia a fazer e o seu sacrifício podia ser benéfico para outros.
Um blockbuster de Verão pode ser algo de surpreendente? Aí está a prova. Que as 3D confirmam. Plasticamente com imagens de um lirismo discreto e rigoroso, de uma sufocante claustrofobia (da responsabilidade do director de fotografia Emmanuel Lubezki), “Gravidade” é indiscutivelmente um dos grandes filmes de 2013, mostrando que, se tudo já foi feito e dito, há sempre maneira de inovar e surpreender o espectador. Basta um lampejo de talento, inteligência e sensibilidade. 

GRAVIDADE
Título original: Gravity

Realização: Alfonso Cuarón (EUA, Inglaterra, 2013); Argumento: Alfonso Cuarón, Jonás Cuarón; Produção: Alfonso Cuarón, Christopher DeFaris, David Heyman, Stephen Jones, Nikki Penny, Gabriela Rodriguez; Música: Steven Price; Fotografia (cor): Emmanuel Lubezki; Montagem: Alfonso Cuarón, Mark Sanger; Casting:  Richard Hicks, David Rubin; Design de produção: Andy Nicholson; Direcção artística: Mark Scruton; Decoração: Rosie Goodwin; Guarda-roupa: Jany Temime; Maquilhagem: Janine Rath, Waldo Sanchez, Pamela S. Westmore; Direcção de produção: Jennifer Corey, Marianne Jenkins; Assistentes de realização: Edward Brett, Ben Howard, Josh Robertson; Departamento de arte: Jon Bunker; Som: Glenn Freemantle; Efeitos Especiais: Neil Corbould, Manex Efrem; Efeitos Visuais: Fiona Carruthers, Emma Lian Cooper, Claire Galpin, Alessandro Gobbetti, Eoin Hegan, Adam Holmes, Alexander Kubinyi, Bonnie Lin, Sarah Lister, Nidhi Seth, Chris Watts; Companhias de produção: Warner Bros., Esperanto Filmoj, Heyday Films; Intérpretes: Sandra Bullock (Ryan Stone), George Clooney (Matt Kowalski), Ed Harris (voz), Orto Ignatiussen (voz), Paul Sharma (voz), Amy Warren (voz), Basher Savage (voz), etc. Duração: 91 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia Tristar WarnerZON Audiovisuais; Classificação etária: M / 12 anos; Data de estreia em Portugal: 10 de Outubro de 2013.

sábado, outubro 19, 2013

CINEMA: COMO UM TROVÃO

















COMO UM TROVÃO

Derek Cianfrance tinha-nos dado há pouco (2010) um filme belíssimo, “Só Tu e Eu” (Blue Valentine), com Ryan Gosling no protagonista (na companhia da magnífica Michelle Williams). Era uma história de amor desencantado, tensa, alternando momentos de aparente felicidade com outros de solidão desesperante. Merecia andar debaixo de olho, e o seu novo filme não desmerece. Derek Cianfrance é realmente um “autor” com um universo muito próprio, obsessões e fantasmas que cultiva com inegável talento. “Como um Trovão” (The Place Beyond the Pines), de 2012, reafirma as qualidades reconhecidas no filme anterior e confirma-o como um dos grandes valores do mais recente cinema norte-americano.
Ryan Gosling volta a ocupar destacado lugar nesta obra ainda que, desta feita, o filme surja como uma tragédia em três actos, cada um deles protagonizado por personagens diferentes. Gosling é um corredor de motos que se notabiliza em arriscadas peripécias num poço da morte. Depois descobre que uma antiga namorada tem um filho seu, e resolve apostar numa actividade mais rentável: assaltar bancos. Mas usando as suas credenciais pessoais. Foge na sua moto jogando com a sua perícia.
Há um fait divers curioso acerca desta personagem. Quando Derek Cianfrance chamou Ryan Gosling para lhe falar de um novo projecto, contam as crónicas que terá perguntado ao actor “o que é que ele gostaria de fazer em cinema e que nunca tivesse feito”, ao que Gosling lhe terá respondido: “Assaltar bancos e fugir numa moto”. “Pois é esse mesmo o argumento em que estou a trabalhar”, respondeu Cianfrance, e assim se fechou o contrato entre ambos.


A sua carreira como assaltante de bancos é curta, é apanhado por um polícia, Avery Cross (Bradley Cooper, magnífico, numa interpretação bastante afastada das “Ressacas” onde se tornou notado) e com esta troca de tiros acaba o primeiro acto e inicia-se o segundo, que tem como figura central o polícia, a instituição, a corrupção, os jogos de poder, o arrivismo carreirista e etc. Fechado este acto, passam-se quinze anos e vamos encontrar, lado a lado, numa mesma escola, os filhos do assaltante Luke e do polícia Avery, primeiramente sem saberem a sua ascendência, depois conhecendo-a e agindo em conformidade. Três actos, cada um com os seus protagonistas, numa progressão dramática entrecortada por hiatos, com uma atmosfera violenta, a roçar o desespero, pressagiando sempre a tragédia e oferecendo um excelente retrato da sociedade norte-americana, com uma atmosfera local (um subúrbio de Nova Iorque) magnificamente reconstituído, densamente povoado por cores espessas como as emoções que ali se vivem.
Um belíssimo filme que assegura as qualidades de actores como Ryan Gosling, Bradley Cooper ou Eva Mendes e o talento inequívoco de Derek Cianfrance para impor climas e personagens sem futuro num mundo sem esperança.


COMO UM TROVÃO
Título original: The Place Beyond the Pines

Realização: Derek Cianfrance (EUA, 2012); Argumento: Derek Cianfrance, Ben Coccio, Darius Marder; Produção: Matt Berenson, Lynette Howell, Sidney Kimmel, Katie McNeill, Alex Orlovsky, Jamie Patricof, Crystal Powell, Jim Tauber, Bruce Toll; Música: Mike Patton; Fotografia (cor): Sean Bobbitt; Montagem: Jim Helton, Ron Patane; Casting: Cindy Tolan; Design de produção: Inbal Weinberg; Direcção artística: Michael Ahern; Decoração: Jasmine E. Ballou; Guarda-roupa: Erin Benach; Maquilhagem: Patricia Grande, Michael Marino, David Presto, Leo Won; Direcção de produção: Carrie Fix, Marcelo Gandola, Samantha Housman, Louise Runge, Nicola Westermann; Assistentes de realização: Mariela Comitini, Alex Finch, Brad Robinson; Departamento de arte: Richard Hebrank, Arthur Jongewaard; Som: Dan Flosdorf; Efeitos Especiais: Drew Jiritano; Efeitos Visuais: Alice Kahn Studios, Jim Rider, Raven Sia; Companhias de produção: Focus Features, Sidney Kimmel Entertainment, Electric City Entertainment, Verisimilitude, Hunting Lane Films, Pines Productions, Silverwood Films; Intérpretes: Ryan Gosling (Luke), Bradley Cooper (Avery Cross), Eva Mendes (Romina), Rose Byrne (Jennifer), Ray Liotta (Deluca), Dane DeHaan (Jason), Ben Mendelsohn (Robin Van Der Zee), Harris Yulin (Al Cross), Bill Killcullen (Bruce Greenwood), Anthony Pizza, Craig Van Hook, Mahershala, Olga Merediz, Rev. John Facci, Thomas Mattice, Adam Nowichi, Mark J. Caruso, G. Douglas Griset, Vanessa Thorpe, Brian Smyj, Paul Steele, Gabe Fazio, Rose Byrne, Jan Libertucci, Robert Clohessy, Bruce Greenwood, Heather Chestnut, Greta Seacat, Luca Pierucci, Emory Cohen, Joe B. McCarthy, Ephraim Benton, Kevin Green, Alex Pulling, Dante Shafer, Kayla Smalls, Leah Bliven, Whitney Hudson, Breanna Dolen, Hugh T. Farley, Michael Cullen, etc. Duração: 140 minutos; Distribuição em Portugal: Classificação etária: M / 12 anos; Data de estreia em Portugal: 19 de Setembro de 2013.

TEATRO: O ALDRABÃO

O ALDRABÃO
Antes de mais uma pequena anotação pessoal que vale o que vale. Julgo que muitas das peças, nomeadamente as comédias, da dramaturgia clássica greco-latina, estão demasiado datadas para hoje surtirem o efeito desejado. Não deixam de ser clássicos, mas só grandes encenações servidas por actores de eleição as tornam particularmente interessantes. De resto, estas comédias de senhores e escravos, de jovem suspirando por amores correspondidos ou não, neste caso de escravas sexuais que se pretendem libertar, já nem são muito divertidas nem muito críticas, por muito inteligentes e actualizadas que possam ser as encenações. Soam a questões de um passado remoto.
“O Aldrabão”, de Plauto, chama-se no original “Pseudolus” e é considerada uma das melhores comédias do autor, para alguns a sua obra-prima. Seja. O autor é um dramaturgo latino, da Roma Clássica, a peça decorre numa rua de Atenas, na Grécia antiga, e a encenação de João Mota, não sei se consciente ou inconscientemente, relembra nalguns aspectos a “commedia dell'arte”, quer pela representação frontal, diante de uma parede e porta de casa, quer pela forma caricatural como se apresentam as personagens.
O resultado não é desinteressante, e não sei se não vou dizer uma heresia, mas tomo-o como um elogio: o todo assemelha-se a um divertido espectáculo popular de troupe, com o seu quê de tropelia burlesca, satírica e mesmo brejeira. Neste aspecto, a actualização da tradução e o engenho da encenação funcionam bem, num belo cenário, e com alguns desempenhos a salientar, nomeadamente os de Rui Mendes e João Ricardo, num elenco onde surgem ainda Virgílio Castelo, Fernando Gomes, Carlos Vieira de Almeida, Rui Neto, Miguel Costa e  Miguel Raposo. Muito divertida a introdução protagonizada por João Mota, e que ajuda a enquadrar a obra no seu tempo e espaço. 


O Aldrabão, de Plauto; tradução Luís Vasco, adaptada a partir da tradução francesa de Édouard Sommer; versão cénica e encenação João Mota; cenografia João Mota e Eric da Costa; figurinos Carlos Paulo; desenho de luz José Carlos Nascimento; música original, direção musical e sonoplastia Hugo Franco; movimento Jean-Paul Bucchieri; Intérpretes: Virgílio Castelo, Rui Mendes, João Ricardo, Fernando Gomes, Carlos Vieira de Almeida, Rui Neto, Miguel Costa, Miguel Raposo e ainda figurantes: Diogo Tormenta, Guilherme Gomes, João Dantas, João Ventura, José Leite, Nuno Rodrigues, Rafael Gomes, Ricardo Teixeira, Sérgio Coragem e Simão Biernat; músicos Luís Bastos (sopros), Rini Luyks (acordéon e teclados) e Gonçalo Santuns (percussão); pintura de telão Silveira Cabral e Teresa Varela; confeção de adereços Teresa Varela; produção TNDM II; M/12 anos. 

quinta-feira, outubro 10, 2013

CINEMA: POR DETRÁS DO CANDELABRO


POR DETRÁS DO CANDELABRO
Michael Douglas (em cima) e o verdadeiro Liberace (em baixo)

Devo dizer que nunca fui tocado pela arte e o virtuosismo de Liberace. Quando eu era miúdo e ele um ídolo, a sua excentricidade afastava-me desse pianista showman que tinha programa de televisão e tudo e era um dos homens mais ricos do showbiz norte-americano.
Wladziu Valentino Liberace nasceu West Allis, a 16 de Maio de 1919 e viria a falecer, em Palm Springs, a 4 de Fevereiro de 1987, vítima de SIDA. Vinha de uma família de músicos e tudo indicava que se tornaria num pianista clássico. Mas um dia, durante um dos seus primeiros recitais, quando chegou aos encores, em vez de um trecho clássico, optou por algo mais ligeiro e esta escolha iria mudar a sua carreira.
Liberace era um pianista extraordinariamente treinado sob o ponto de vista da escola tradicional do piano, mas que ousou o inesperado: usar toda a sua arte não apenas num repertório clássico, mas também na música popular. Além de tocar, ele cantava e dançava. A sua celebridade cresceu e rapidamente se tornaria o "Liszt de Las Vegas". Nunca interpretava Chopin ou Berlin (ou quem quer que fosse) sem lhes dar um cunho muito pessoal. Aparecia de Rolls Royce em cena, com aparatosas capas, rodeado de corpo de baile, cantava e dançava e era o mais bem pago de todos. A sua fortuna pessoal permitia-lhe coleccionar automóveis de marcas de topo, pianos históricos e mobiliário, além de possuir um guarda-roupa que fazia inveja a qualquer teatro de vaudeville. Tinha um programa de televisão a nível nacional, orgulhava-se dos seus “protegidos” e ostentava trejeitos que denunciavam homossexualidade de que alguns meios de comunicação o acusavam. Ele negou sempre e processou os acusadores. No seu período áureo recebeu mais de cinco milhões de dólares anualmente, o que lhe permitia ter cinco luxuosas mansões. A última aparição pública de Liberace foi em Novembro de 1986, no Radio City Music Hall, em Nova Iorque. Três meses após esta despedida, morria, com 67 anos, por complicações causadas pelo vírus da SIDA, na residência de Palm Springs, na Califórnia.


Um dos seus últimos “protegidos”, Scott Thorson, escreveu uma autobiografia (de colaboração com Alex Thorleifson), a que deu o título “Behind the Candelabra: My Life With Liberace”. Foi esta obra que deu origem ao filme de Steven Soderbergh, tendo sido adaptada a cinema pelo argumentista Richard LaGravenese. Aborda os últimos anos da vida de Liberace e a relação amorosa e sexual que durou seis anos entre Liberace e Scott Thorson. As memórias são evidentemente pessoais e vistas sob a perspectiva de Scott Thorson e o filme assume esta óptica sem nunca a por em causa.
O elenco escolhido é magnífico, sobretudo os protagonistas, Matt Damon na figura algo cinzenta de Scott Thorson, que se confessa bissexual e oscila entre o amante incondicional e o arrivista à procura de riqueza fácil, e Michael Douglas, numa composição absolutamente fabulosa de Liberace, de uma subtileza notável, mesmo nos momentos de maior exuberância. Este ano os Oscars de actores principais não parecem suscitar nenhum suspense. Cate Blanchett, em “Blue Jasmine” e Michael Douglas, em “Por Detrás do Candelabro” arrumam as contam à priori.


Mas, para lá do virtuosismo da interpretação, o filme é ainda magnificamente realizado por um inspirado Steven Soderbergh que encena com brilho esta vida de excessos, recriando a vida íntima de Liberace com pudor, mas não se furtando a cenas que facilmente poderiam cair no ridículo, e que ele segura com mão de mestre, ao mesmo tempo que nos oferece a féerie dos seus concertos e aparições públicas. Distante de início, com a câmara fixa, próximo e hesitante nas sequências finais, rodadas com a câmara à mão, pelo próprio realizador (que, além da realização, assina ainda fotografia e montagem), “Por Detrás do Candelabro” é uma lição de cinema. Curiosamente, este filme não foi produzido por nenhum dos grandes estúdios de cinema americanos, nunca foi estreado em salas nos EUA, tendo sido directamente lançado na televisão por cabo (quem o produziu foi a NBO, que assim permitiu ao realizador concretizar este projecto longamente amadurecido). De resto, Steven Soderbergh, um dos mais interessantes cineastas do actual cinema norte-americano, um homem que tem alternado ao longo da sua filmografia obras de grande público, como “Os Onze do Oceano” e sequelas, e outras de um certo experimentalismo, como “Sexo, Mentiras e Vídeo”, anunciou que o cinema para ele tinha acabado, dadas as condições de produção que existem hoje na América. Ele vai ficar-se pela televisão e pelo vídeo, que lhe oferecem maior liberdade.

POR DETRÁS DO CANDELABRO
Título original: Behind the Candelabra

Realização: Steven Soderbergh (EUA, 2013); Argumento: Richard LaGravenese, segundo obra de Scott Thorson e Alex Thorleifson; Produção: Susan Ekins, Gregory Jacobs, Michael Polaire, Jerry Weintraub; Música: Marvin Hamlisch; Fotografia (cor): Steven Soderbergh (como Peter Andrews); Montagem: Steven Soderbergh (como Mary Ann Bernard); Casting: Carmen Cuba; Design de produção: Howard Cummings; Direcção artística: Patrick M. Sullivan Jr.; Decoração: Barbara Munch; Guarda-roupa: Ellen Mirojnick; Maquilhagem: Christine Beveridge, Kate Biscoe, Stephen Kelley, Marie Larkin, Yvette Stone; Direcção de produção: Julie M. Anderson, David Kirchner, Michael Polaire; Assistentes de realização: Gregory Jacobs, Jody Spilkoman, Lynn Struiksma; Departamento de arte: Nicole Balzarini, Greg Berry, Karen Higgins, Jessica Ripka, Eric Sundahl, Karen Teneyck; Som: Larry Blake; Efeitos especiais:  Josh Hakian, David Waine; Efeitos visuais: Thomas J. Smith; Companhia de produção: HBO Films; Intérpretes: Michael Douglas (Liberace), Matt Damon (Scott Thorson), Dan Aykroyd (Seymour Heller), Rob Lowe (Dr. Jack Startz), Debbie Reynolds (Frances Liberace), Scott Bakula (Bob Black), Tom Papa (Ray Arnett), Nicky Katt (Mr. Y), Cheyenne Jackson (Billy Leatherwood), Paul Reiser (Mr. Felder), Boyd Holbrook (Cary James), David Koechner, Eddie Jemison, Randy Lowell, Tom Roach, Shamus Cooley, John Smutny, Eric Zuckerman,Jane Morris, Garrett M. Brown, Pat Asanti, Casey Kramer, James Kulick, Bruce Ramsay, Paul Witten, Deborah Lacey, Susan Todd, Nicky Katt, Austin Stowell, Francisco San Martin, Anthony Crivello, Mike O'Malley, Kiff VandenHeuvel, Nikea Gamby-Turner, Charlotte Crossley, Josh Meyers, Harvey J. Alperin, Jerry Clarke, Lisa Frantz, Shaun T. Benjamin, John Philip Kavcak, etc. Duração: 118 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Audiovisuais; Classificação etária: M / 16 anos; Data da estreia em Portugal: 19 de Setembro de 2013.