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quinta-feira, junho 26, 2014

TEATRO: FERNÃO MENTES?


FERNÃO, MENTES?


Foi em 1981, ainda na velha sala de “A Barraca”, ali quase ao lado do Largo do Rato, que subiu pela primeira vez a cena “Fernão, Mentes?”, um texto de Hélder Costa adaptando excertos da “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, obra mítica do imaginário literário português, que nos fala dos descobrimentos e da colonização portuguesa pelo mundo, versão nacional e pitoresca de um Marco Polo que viaja incessantemente pelo Oriente e tenta desenvencilhar-se o melhor que pode das embrulhadas em que vai caindo e também das que vai provocando. O espectáculo foi um sucesso em Portugal e por vários países por onde foi passando, servindo para consolidar o lugar de uma companhia teatral na altura recentemente formada.
Trinta e três anos depois, e aproveitando as comemorações dos 400 anos do aparecimento de “A Peregrinação”, o espectáculo é reposto pela mesma companhia, conservando a mesma estrutura e estética, mas com novo elenco, no Teatro da Trindade, em Lisboa. O êxito volta a repetir-se, perante um certo espanto das gerações mais jovens. É que se pode fazer excelente teatro com muito poucos meios e muita imaginação. Num palco quase deserto, com uma vela enfunada por pano de fundo, onde se desenha um mapa mundo, uma dúzia de actores, de camisa e calças de linho bege, um barrete vermelho que indica o protagonista, e que vai evoluindo de cabaça em cabeça (Fernão Mendes somos todos, não é?), uma guitarra e meia dúzia de adereços e vestuário improvisado que vai indicando as mudanças de usos e costumes orientais, e o essencial está lá. Um bela história de um português desenrascado (e muitas vezes enrascado) em peregrinação por outras terras e outras gentes.
No texto de apresentação do espectáculo original, Hélder Costa escrevia: “A Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, verdadeiro monumento da literatura universal que ainda poucos portugueses conhecem, relata a personalidade e a vivência do seu autor (...) As peripécias porque passou esse “pobre” português têm pouco de grandiloquência, glórias guerreiras ou santidade exemplar. Mas têm tudo de verdade, têm tudo da vida. Os medos, as riquezas súbitas, a astúcia, a miséria, a desgraça, a audácia, o “safar a pele”, a inteligência, a solidariedade, e acima de tudo, um final de vida tranquilo que permite olhar para trás sem remorsos nem arrependimentos e transforma Fernão Mendes Pinto no arquétipo do homem do povo da grande gesta dos Descobrimentos, da arraia miúda, que construiu o país que somos, que foi colonialista e racista, sensível e humilde, gloriosa e rasteira.
O homem dividido é um homem de olhos abertos perante a vida. O homem que tem capacidade para se interrogar, que se confronta com as suas fraquezas e se orgulha das coisas boas que faz. Um pouco como nós todos, não é?”
Pode dizer-se que este é um exemplo magnífico de uma certa estética de “teatro pobre” que vive sobretudo da discussão de ideias, da imaginação da sua encenação, da energia e da alegria do seu elenco e do talento de um grupo que vai do texto às canções, do guarda-roupa às marcações, e se estende do palco à plateia. Injusto seria destacar nomes. É o conjunto que faz a força e torna obrigatória esta revisão (para uns) e esta descoberta (para tantos outros).  

FERNÃO MENTES?

Encenação e Adaptação: Hélder Costa; Música; Zeca Afonso | Fausto | Orlando Costa; Direcção de Arte: Maria do Céu Guerra; Direcção musical: João Maria Pinto; Direcção técnica: Paulo Vargues; Adereços: Marta Fernandes da Silva, Miguel Figueiredo; Costureira: Zélia Santos: Intérpretes: João Maria Pinto, Adérito Lopes, Ruben Garcia, Rui Sá, Sérgio Moras, Susana Cacela, Tiago Barbosa; Estagiários: Teresa Mello Sampayo, João Parreira, Inês Fragata;  Participação especial: Maria do Céu Guerra; Sonoplastia: Ricardo Santos, Iluminação: Paulo Vargues; Relações públicas / secretariado: Inês Costa | Paula Coelho; Cartaz / design gráfico: Arnaldo Costeira | Mónica Lameiro; Fotografias: Pedro Soares; Produção: A Barraca. Teatro da Trindade: de quarta a sábado (21,30h), domingo (18,00h), até 29 de Junho de 2014. 

sábado, janeiro 07, 2012

TEATRO: DUAS PEÇAS NA "BARRACA"


TEATRO “A BARRACA”
“D. MARIA, A LOUCA”
No Teatro “A Barraca” duas peças em cena com motivos mais do que suficientes para despertarem o interesse dos espectadores. Por razões diferentes, é certo.
Estreada em Junho, para uma curtíssima série de espectáculos, mas reposta em Novembro para a sua carreira regular, “D. Maria, A Louca”, um original do brasileiro António Cunha, fala da rainha portuguesa D. Maria I, a primeira mulher a reinar de facto no trono de Portugal, e que teve, desde sempre, uma valoração muito diversa e contraditória até em relação aos seus reais atributos. Por um lado, há que lhe dar o crédito de uma série de iniciativas altamente meritórias, como a criação da Casa Pia, da Academia das Ciências, da Fábrica das Sedas, da valorização do ensino feminino, impondo-se por um humanismo não muito vulgar na época. Por outro lado, esta filha de D. José I, herdeira de um dos mais invulgares legados da nossa História, assinado em larga medida pelo Marquês de Pombal, que vai dos Távoras ao Terramoto de 1755, passando pela epidemia de varíola que dizimou a população de Portugal e a sua própria família, pelos conflitos com a aristocracia e a igreja, pelos ventos da mudança que advinham da França revolucionária, acabaria louca, refugiada no Brasil, após o exílio da família real portuguesa, que ali procurou refúgio, perante a ameaça das invasões francesas.
D. Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana de Bragança, que nascera em Lisboa, a 17 de Dezembro de 1734, viria a falecer a 20 de Março de 1816, suicidando-se, atirando-se ao mar no cais da Praça XV, na cidade do Rio de Janeiro. Oscilando entre”A Piedosa” e “A Louca”, D. Maria I é uma personagem certamente fascinante para historiadores, romancistas, dramaturgos ou mesmo cinéfilos. Joaquim Benite já havia encenado uma ópera sobre a mesma figura, no Festival de Almada de 2011.
É no barco que a conduziu a Terras de Vera Cruz que o autor a coloca, por entre momentos de loucura e lucidez, percorrendo mentalmente parte da sua vida e das suas resoluções, habitada por fantasmas e atormentada pelo fervor religioso. A peça não convence muito, é demasiado “poética” e algo arrevesada na sua linguagem, mas permite a Maria do Céu Guerra uma excelente interpretação trágica, mas com os seus laicos de trágica-cómica, sempre comedida e sensível. A encenação da mesma Maria do Céu Guerra é igualmente bastante interessante, económica num cenário bem imaginado por José Costa Reis. Se a peça não me convence muito, tudo o resto é merecedor da melhor atenção.
“D. Maria, a Louca”
Intérpretes: Maria do Céu Guerra, Adérito Lopes; Texto: António Cunha; Encenação: Maria do Céu Guerra; Direcção Plástica, Cenografia e Figurinos: José Costa Reis; Assistência de encenação: Marta Soares; Adereços: Nuno Elias; Desenho de Luz: Luís Viegas; Operação de Luz: Fernando Belo; Sonoplastia e operação: Ricardo Santos; Montagem: Mário Dias; Estreia a 20 de Julho, Teatro Cinearte; De Quinta-feira a Sábado às 21h30; Domingo às 16h30; Na Sala 1 do Teatro Cinearte; M/12.

 “RUMOR”
“Rumor”, de Mário de Carvalho, começa por ser um excelente texto, muito bem escrito, com uma muito boa utilização da palavra como elemento plástico e cénico, o que não é vulgar em textos portugueses. Posso mesmo dizer que “Rumor” é, para mim, um dos melhores textos dramáticos nacionais dos últimos anos.
A forma como Mário de Carvalho aborda o tema é de uma ironia fina que permite ao elenco um trabalho saboroso e divertido, o que beneficia todo o espectáculo. Estamos num terraço de uma cidade abstracta, certamente durante o Império Romano. Várias personagens, bem instaladas na vida, o que ficam a dever ao governador da cidade que os favorece em troca da sua lealdade e de algumas outras cortesias que se preferem não nomear (como as visitas da bela mulher de um comerciante que regularmente passa a noite nos aposentos daquele que não se sabe se está ou não acima ou abaixo dos deuses!), conversam. Descontraidamente, bebem vinho, não tão bom como o que se bebe no palácio, cuja luz irradia pela cidade, e orienta os barcos no mar, mas ainda assim muito bom, muito melhor que a zurrapa que se bebe nas tabernas do povinho, e elogiam a grandeza do governador, homem de muitas virtudes e de uma largueza de vistas excepcionais. Apenas uma nota dissonante: um jovem, cujo pai, prestigiado general, havia sido assassinado às ordens desse mesmo governador.
Mas a harmonia parece grande entre os convivas, até que a luz do palácio esmorece e de todo se apaga. Corre o rumor que o governador morreu. Como? Quem será o sucessor? Alguém amigo do velho general assassinado? Então será melhor dosear as palavras, refrear os elogios, virar o tom da conversa, enfim o governador sempre tinha os seus aspectos menos virtuosos e quem sabe se quem virá aí não será muito melhor. Pode até ser alguém da confiança do filho do general que afinal passa a ser uma personagem muito querida, “vai minha filha, e abraça-o”.
Peça deliciosamente cínica sobre os vira casacas e aqueles que se alapam ao poder para dele retirar dividendos, “Rumor” é um exercício de teatro inteligente, divertido, e contundente. A encenação de Maria do Céu Guerra é muito boa, discreta, subtil, servindo muito bem o texto, o que todo o elenco acompanha com galhardia. Sente-se que os actores, João D’Ávila, Jorge Gomes Ribeiro, Paula Guedes, Rita Fernandes, Ruben Garcia, Sérgio Moras e Vânia Naia, se divertem neste jogo de tapa / destapa e isso acaba por beneficiar o espectáculo.
Vão à “Barraca” ver teatro. O talento e a persistência da Céu Guerra, bem acompanhada pelos cúmplices de aventura, merece-o.
RUMOR
Texto: Mário de Carvalho; Encenação: Maria do Céu Guerra; Direcção Plástica: José Costa Reis; Intérpretes: João D’Ávila, Jorge Gomes Ribeiro, Paula Guedes, Rita Fernandes, Ruben Garcia, Sérgio Moras, Vânia Naia; Assistência de Encenação: Sérgio Moras; Apoio de movimento: Catarina Santana; Apoio musical: Ana Isabel Dias; Aderecista e assistente de cenografia e figurinos: Marta Fernandes da Silva; Desenho de luz: Maria do Céu Guerra / Fernando Belo; Operação de luz e som: Paulo Vargues; Montagem e Carpintaria: Mário Dias: De 5ª a Sábado às 21h30; Domingo às 16h00; Na Sala 2 do Teatro Cinearte; M/12.

domingo, janeiro 23, 2011

TEATRO: ANGEL CITY

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ANGEL CITY
“Angel City”, do norte-americano Sam Shepard (nascido em 1943), tinha tudo para ser uma peça para me agradar a cem por cento. O universo de Hollywood e do seu cinema, um argumentista, dois produtores, um técnico de som, uma secretária com aspirações a vedeta, um saxofonista, uma discussão em “huis clos” sobre a indústria, a febre do lucro que atraiçoa a criação artística, e uma metafórica poluição que invade o “lá fora”, Los Angeles, ou Culver City, e começa a corroer a pele dos que por lá se aventuram.
Sam Shepard escreveu dezenas de peças (entre elas uma muito conhecida, “Fools for Love”, que passou ao cinema pela mão de Robert Altman, “Loucos por Amor”), colaborou no argumento de filmes como “Paris Texas”, de Wim Wenders, ou “Zabriskie Point”, de Antonioni, e interpretou ainda dezenas de filmes onde deixou a marca do seu talento de actor, austero e nervoso.
Falando da sua obra de autor teatral, esta não costuma ter uma narrativa realista, preferindo invadir terrenos experimentalistas, passando pelo absurdo, a vanguarda e o simbolismo. É o caso de “Angel City” (1976) que, optando por uma aproximação metafórica, de um humor negro que joga com a mitologia norte-americana, ataca com violência e sarcasmo o espírito voraz de quem apenas pensa no lucro e na rentabilidade imediata do “produto”. Tudo certo e assunto que Sam Shepard deve conhecer e dominar como poucos, ele que, apesar disso, ou por causa disso, raramente entrou abertamente no campo da indústria e preferiu sempre trabalhar em obras onde prevaleceram os aspectos artísticos e culturais.
Mas a verdade é que “Angel City”, apesar das muitas qualidades, se me afigura obra não totalmente conseguida e algo desequilibrada. Por exemplo, a segunda parte parece-me muito mais lograda do que a primeira, para o que também deve ter contribuído em muito a montagem a que se pode assistir em “A Barraca”, com encenação de Rita Lello. Acontece que, como não conheço o original, difícil se torna uma avaliação em termos absolutos. Posso então apenas falar do espectáculo visto.
Num palco quase vazio e descarnado, uma larga janela/ecrã delimitada por néons, é a referência que imediatamente se impõe. Acrescente-se-lhe uma mesa, uma ou duas cadeiras que vão mudando de lugar e seis actores. Dois são produtores, têm entre mãos um hipotético filme que querem “de catástrofe”, e falta-lhes personagens e situações, para o que convidam um argumentista, dito “artista”, para iluminar essa ausência. O argumentista vem do Oeste de carroça, com indumentária de Buffalo Bill e muitos amuletos de índios presos ao cinto. Julgo que esta caricatura é o lado menos conseguido do espectáculo, não representa uma alternativa, mas apenas um continuar do caos que pré-existia e apenas se avoluma com a sua chegada. Depois, assistimos a uma dança da morte grotesca, com o fim que se adivinha.
Se o arranque da peça pressagia um desastre, a verdade é que no decorrer da representação o clima vai-se entrosando, e a segunda parte é mesmo bastante boa, com actores a imporem-se em personagens que vão adquirindo força e consistência no seu recorte caricatural. A encenação de Rita Lello, que tem excelentes apontamentos, cresce com o andamento, ou vai fazendo crescer o curso dos acontecimentos, e torna-se particularmente sugestiva na segunda metade. O palco divide-se em dois planos, com a janela/ecrã a adquirir uma importância e um significado cada vez mais preponderante, estabelecendo um contraponto entre a realidade do palco e a ficção da representação.
Os actores também ganham com o avançar da peça, sobressaindo os excelentes Ruben Garcia e Pedro Borges, muito bem acompanhados por Vânia Naia. Menos certos me parecem Sérgio Moras e Sérgio Moura Afonso (sobretudo pela excessiva gritaria que imprimem na primeira parte e que torna difícil perceber o texto). Boa a composição do saxofonista Paulo Curado, que é igualmente um dos autores da música original (de colaboração com Ricardo Santos e Pedro Freixo). 

A Barraca,
Quintas, sextas e sábados, às 21,30 horas, domingos, às 16,00 horas.

domingo, março 08, 2009

TEATRO: O INSPECTOR GERAL

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O INSPECTOR GERAL
Estreou na Barraca um novo espectáculo, “O Inspector Geral”, segundo obra de Nikolai Vasilievich Gogol, escritor ucraniano, nascido em Velyki Sorochyntsi, Poltava, Ucrânia, a 20 de Março de 1809, e falecido em Moscovo, a 21 de Fevereiro de 1852. Apesar de nascido na Ucrânia, escreveu toda a sua obra em russo, pelo que é considerado um dos grandes autores da literatura russa. Filho de um oficial cossaco dado às letras, e de uma mãe de inquebrantável fé religiosa, de ambos recebe influência directa. Inicialmente empregado num modesto escritório em São Petersburgo, num qualquer ministério, colhe dessa experiência inspiração que deixa inscrita nalgumas das suas principais obras, como “O Capote” (1843), “O Inspector Geral” (1836) ou “Almas Mortas”. Amigo de Alexander Pushkin, com ele estabelece curiosas afinidades. Será Puskin quem o defende perante as críticas e a incompreensão da sua obra muito cáustica para com a condição humana e a sua prática na Rússia czarista. Professor na Universidade de São Petersburgo (1831 - 1835), publica inúmeras novelas e romances de grande sucesso. Viaja pela Europa, Itália, França, Alemanha, e em 1848 faz uma peregrinação a Jerusalém. A saúde precária e uma certa tendência para a hipocondria levam-no a um misticismo exacerbado e ao delírio (segundo consta, num desses momentos queima grande parte da sua obra). Companheiro de uma geração de escritores notáveis, como Pushkin, Liermontov ou Turgeniev, Gogol morre. É enterrado no meio das maiores honras nacionais, ficando sepultado no cemitério de Novodevitchi, em Moscovo.
Entre as suas obras mais conhecidas, e para lá das já citadas, contam-se “Taras Bulba”, “O Nariz”, “O Retrato”, “O Diário de um Louco”, “Arabescos”, “Noites na Granja ao Pé de Dikanka”, “Uma Terrível Vingança” ou “Mírgorod”. Em 1965, Raul Solnado estreia o seu Teatro Villaret com uma, na altura, muito polémica versão de “O Inspector Geral”, de bela recordação. Jacinto Ramos também nos deixou na memória uma encenação e interpretação de “O Diário de um Louco”. No cinema, as adaptações de obras de Gogol atingem a centena. De “O Inspector Geral” Danny Kaye deu-nos uma inspirada comédia (realizada por Henry Koster, em 1949), mas outras versões se conhecem: uma checoslovaca, “Revizor” (1933), dirigida por Martin Fric, outra egípcia, “Al Mufattish al-amm” (1956), de Helmy Rafla, e, finalmente, uma para televisão, americana, com realização de Arvin Brown (2000). Na “Barraca”, a versão é actualizada e aportuguesada. A encenação é de Maria do Céu Guerra e a música original é de autoria de António Victorino D’Almeida, sendo executada ao vivo. Diga-se desde já que é uma re-interpretação da comédia de Gogol que, mantendo-se fiel ao espírito do texto, o torna mais “legível” num contexto nacional. O que, bem vistas as coisas, tem todo o cabimento, ainda que o mesmo texto se possa referenciar a qualquer país e qualquer tempo. Presidentes da Câmara populistas, corruptos e ridículos é o que há mais por esse mundo fora e Gogol, num rasgo de génio, mostra-o bem nesta sátira corrosiva, onde um autarca com pesos vários na consciência, recebe a notícia de que dentro em breve será visitado por um inspector geral que virá da capital inspeccionar o burgo. Obviamente que procura ornar a terra com o que de melhor nela sobrevive, e tenta sobretudo, por todos os meios, descobrir o temido visitante antes de este o perceber, para assim o mimar com regalias, e mesmo algumas notas extras, para lhe adoçar a boca e o relatório final. Acontece que, na ânsia de localizar o desconhecido, se engana na personagem. Honrarias, jantares, notas de banco e mesmo o excessivo afecto da mulher da filha vão direitinhos para quem não os merece, e o imbróglio fica feio no final.
É a própria Maria do Céu Guerra quem escreve: “Durante quase duzentos anos debateram-se opiniões sobre esta obra de Gogol. “Estamos diante de uma sátira de costumes”, disse-se. “De uma obra política?”. Outros defenderam “é uma obra de dimensão metafísica”, uma obra moral, um exercício de fantástico e de absurdo onde o sonho, o medo e o remorso dominam.” E conclui: “Felizmente vivemos um tempo que entrelaçou Brecht com Stanislasvki e Marx com Freud. Estamos livres para olhar para este impostor, estrangeiro, diabo, nada, com a liberdade de não querermos saber o que foi ele para Gogol, mas o que pode ser para nós hoje. Para mim, se querem saber, estamos diante de tudo isso e de um escritor/artista a jogar às escondidas com o seu pânico. Mas sobretudo estamos num Baile de Máscaras onde ninguém é quem mostra ou, sequer, quem julga ser. No coração das trevas, lá mesmo onde o teatro acendeu uma luz. Uma obra que permite a actores e directores a realização de grandes trabalhos e ao público um arraial de gargalhada.” A encenação “cruza Brecht com Stanislasvki”, é certo, mas muitas vezes avizinha-se da “Commedia dell'arte”, pela caracterização de personagens, pelo uso da música e de máscaras, pelas próprias movimentações dos actores. Começa morna, definindo personagens e situações, e vai crescendo até um final apoteótico. Tem magníficos achados, anotações de um humor inteligente e eficaz (que o cenário e os seus volumes habilmente dispersos pelo espaço muito beneficiam, como nas cenas das notas acenadas, ou das manifestações apenas adivinhadas).
A interpretação é globalmente boa na sua vertente de paródia moral, com especial destaque para Céu Guerra e João de Ávila. Mas os restantes situam-se a bom nível: Adérito Lopes, Carla Alves, Jorge Gomes, Pedro Borges, Rita Fernandes, Sérgio Moras, Sérgio Moura Afonso, Susana Costa, António Rodrigues e, ao piano, Madalena Garcia Reis. A partitura musical de António Victorino d’ Almeida é inspirada e inspiradora de bons momentos. O cenário de Maria do Céu Guerra, realizado por Mário Dias, volumetricamente permite circulações e efeitos excelentes, mas creio que poderia ter sido beneficiado com um outro colorido, menos sombrio, mas igualmente acabrunhante.

“A Barraca” (Largo de Santos, 2, Lisboa) - Teatro Cinearte, Sala 1, Qui a Sáb: 21h45 Dom: 17h; Maiores 12 anos; bilhetes: 12,50€ (público em geral) e 10€ (menores 25 anos, maiores 65 anos, profissionais do espectáculo, estudantes, reformados e grupos mais 15 pessoas). Telefone: 213 965 360/275; Internet:
www.abarraca.com; E-Mail: barraca@mail.telepac.pt; bilheteira@abarraca.com.

TEATRO: PEÇA PARA DOIS

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“PEÇA PARA DOIS”
Tennessee Williams, pseudónimo de Thomas Lanier Williams (nascido em Columbus, 26 de Março de 1911, em Nova Iorque, e falecido a 25 de Fevereiro de 1983), é um dos mais célebres e prolíferos dramaturgos dos EUA. Quase uma centena de obras, muitas delas adaptadas ao cinema, e algumas peças das mais carismáticas do século XX, transformam o legado deste autor num invulgar olhar sobre a condição humana e sobre a sociedade norte americana do seu tempo, numa perspectiva muito pessoal e quase intransmissível. A influência de Freud é inequívoca e assimilada de forma muito original.
Entre as suas obras mais célebres contam-se “Beauty Is the Word” (1930), “Candles to the Sun” (1936), “Fugitive Kind” (1937), “Not about Nightingales” (1938), “Adam and Eve on a Ferry” (1939), “Battle of Angels” (1940), “The Long Goodbye” (1940), “The Glass Menagerie” (1944), “This Property is Condemned” (1946), “A Streetcar named Desire” (1947), “The Rose Tattoo” (1951), “Camino Real” (1953), “Cat on a Hot Tin Roof “(1955), “Orpheus descending” (1957), “Suddenly, Last Summer” (1958), “Sweet Bird of Youth” (1959), “Period of Adjustment” (1960), “The Night of the Iguana” (1961), “The Milk Train Doesn't Stop Here Anymore” (1963), “In the Bar of a Tokyo Hotel” (1969), “Will Mr. Merriweather Return from Memphis?” (1969), “Clothes for a Summer Hotel” (1980) ou “The One Exception” (1983). “The Two-Character Play”, data de 1973, e não é das suas peças mais conhecidas, correspondendo mesmo a um tipo de teatro não muito habitual no autor, se bem que seja marcadamente definida pelos seus temas obsessivos. É precisamente esta “Peça para Dois” que “A Barraca” tem em cena, numa encenação e interpretação de Rita Lello, acompanhada no palco por Pedro Giestas.
Trata-se de um esquema que surge por vezes nos palcos mais alternativos, o “teatro dentro do teatro”, as relações entre o teatro e a vida. Dois actores, dois irmãos, Felice e Clare, andam em “tournée”, e são abandonados pela sua companhia, num decadente “teatro de província de uma província que ninguém sabe onde fica.” Como não têm nem elenco nem peça, tentam “improvisar” um diálogo dramatizado, que de certa forma prolonga, em cena, o drama que ambos vivem, entre a ficção, a ilusão e a verdade, uma verdade que tanto pode ser os irmãos serem vítimas da prepotência dos pais, como serem os seus próprios carrascos. O certo é que essa “verdade” os impede de sair do quarto e enfrentar a realidade. O que justifica um “jeu de massacre” de que ninguém sai incólume, com insinuações de um incesto latente, temas todos eles muito caros a Tennessee Williams: amor, sexo, crime, família, violência psicológica, solidão.
Curiosamente foi uma peça escrita e re-escrita ao longo dos anos pelo autor. “Penso que é a minha mais bela peça desde “Um Eléctrico Chamado Desejo”, disse Tennessee Williams, “e nunca parei de trabalhar nela... é um “cri de coeur”, mas, em certo sentido, todo o trabalho criativo, toda a vida, é um cri de coeur.” Um belo texto, denso, forte, enigmático por vezes, poético sempre, a que os dois actores emprestam uma interpretação a conduzir. Rita Lello é uma actriz que cresce a olhos vistos, e Pedro Giestas uma excelente confirmação. A encenação é sóbria e eficaz.
“A Barraca” (Largo de Santos, 2, Lisboa) - Teatro Cinearte, Sala 2, Qui a Sáb: 20h Dom: 15h; Maiores 12 anos; bilhetes: 12,50€ (público em geral) e 10€ (menores 25 anos, maiores 65 anos, profissionais do espectáculo, estudantes, reformados e grupos mais 15 pessoas). Telefone: 213 965 360/275; Internet: www.abarraca.com; E-Mail: barraca@mail.telepac.pt; bilheteira@abarraca.com.