domingo, julho 06, 2008

HOJE NO DN. A NÃO PERDER:

ELA ESTÁ COM BOM ASPECTO
Ferreira Fernandes

Está com bom aspecto, Ingrid Betancourt. Fico contente por a ver assim. Mas há também quem diga: "Está com bom aspecto, Ingrid Betancourt." Não é esta frase igual à minha? De regozijo? Não. É dita exactamente com sentido contrário, em forma de acusação: "Esta gaja, que ainda em Outubro do ano passado parecia uma tuberculosa olheirenta, aparece agora toda lampeira, de olhos brilhantes e até gorda, com duplo queixo…" Sim, há quem diga isso. E há quem responda: "Eh pá, também me dei conta! Isto é muito estranho…" São diálogos da blogosfera.A blogosfera é o inferno para Jean-Jacques Rousseau: atirou a mentira deste ("os homens são naturalmente bons") definitivamente para o caixote do lixo da História. Pelas formas tradicionais de comunicação - conversas, jornais, moções parlamentares do PCP - os homens aprenderam a não dizer o indizível. Se têm de engolir um sapo - o fim da prisão de Ingrid Betancourt é um sapo para muita gente -, metem uns "mas" no discurso mas engolem-no. Ninguém diz: "Estou chateado com a libertação dessa agente do imperialismo." Só na blogosfera essa sinceridade insana acontece. Enfim, talvez Miguel Urbano Rodrigues seja capaz de dizer o mesmo, mas Miguel Urbano Rodrigues não é exactamente uma forma tradicional de comunicação. É mais uma forma do Paleozóico.Já a blogosfera é moderníssima. Gosto dela porque nela muita gente escreve bem e também porque me garante: sim, os pulhas existem e até se exibem. A blogosfera acreditou para si uma tal forma de impunidade que chega a ser enternecedor ir lá para ver o que as pessoas dizem. Sobretudo nesse superlativo absoluto simples da blogosfera (onde já não se escreve tão bem mas a sinceridade é ainda mais crua) que são as caixas de comentários dos blogues. Como o anonimato é quase a regra, as pessoas expõem-se até ao mais recôndito bocado de si, sendo este, a mais das vezes, o intestino grosso.É aí que tenho encontrado "Luísa", em várias caixas de comentários, geralmente a defender a Cuba de Castro e os narcotraficantes das colombianas FARC. Foi ela quem me alertou, agora, para a célebre fotografia de Ingrid Betancourt, de Outubro de 2007, magríssima e olhos desalentados, e a comparou com a esfuziante mulher destes dias. Desde Outubro, sabe-se, houve várias possibilidades de entrega da prisioneira e é natural que a engordassem para as FARC não ficarem muito mal na fotografia (delas, as FARC). Mas "Luísa" prefere sugerir: a prisão de Ingrid Betancourt foi uma farsa e a prova é que ela aparece como quem vem de um spa. Não vou insultar ninguém lembrando o que Ingrid Betancourt perdeu nestes seis anos - quem quer, sabe. E fico muito agradecido à blogosfera por me lembrar que há gente como "Luísa".

Sublinhe-se este excerto:

Já a blogosfera é moderníssima. Gosto dela porque nela muita gente escreve bem e também porque me garante: sim, os pulhas existem e até se exibem. A blogosfera acreditou para si uma tal forma de impunidade que chega a ser enternecedor ir lá para ver o que as pessoas dizem. Sobretudo nesse superlativo absoluto simples da blogosfera (onde já não se escreve tão bem mas a sinceridade é ainda mais crua) que são as caixas de comentários dos blogues. Como o anonimato é quase a regra, as pessoas expõem-se até ao mais recôndito bocado de si, sendo este, a mais das vezes, o intestino grosso.

sábado, julho 05, 2008

NO BRASIL, II

NO RIO, NA CINELÂNDIA
No Rio de Janeiro, a Cinelândia é um mundo. Um fascinante mundo com passado. Foi durante muitas décadas o centro nevrálgico da cidade, com teatros, cinemas, hotéis, cafés, restaurantes, comércio do mais fino e alguns edifícios institucionais. Cinelândia não é nome oficial, é cognome, mas toda a gente conhece o local por esse epíteto. Trata-se de uma zona central do Rio, que tem na base a bela Praça Floriano, e que engloba, segundo os roteiros turísticos, a área que vai desde a Avenida Rio Branco até a Rua Senador Dantas, e da Evaristo da Veiga até a Praça Mahatma Gandhi. Antigamente, no século XVIII, existia por ali o Convento da Ajuda, demolido no início do século XX. Ainda permanecem, lá no alto, resto de um convento de Santo António.

Foi nos anos 30 desse século que se pensou criar no Rio uma zona de lazer que fizesse concorrência à celebrada Times Square nova-iorquina. O mentor desta ideia foi um espanhol a viver no Brasil, Francisco Serrador, que aproveitou o nobilitado espaço da Praça Floriano, rodeado por edifícios magníficos, de estilos variegados, mas todos eles de sumptuosa inspiração. Há os ecléticos, como o Theatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes, o antigo Supremo Tribunal Federal (actualmente Centro Cultural da Justiça Federal) e a Câmara de Vereadores. Há os Neoclássicos, como a Biblioteca Nacional. Há os de Art Noveau e Art Deco, bem representados pelos edifícios Wolfgang Amadeus Mozart (conhecido como o “Amarelinho” e que, no rés-do-chão, tem uma conhecida cervejaria, ao lado de outras de cores diferentes, a “Vermelhinha” e a “Verdinha”) e o Odéon, agora cinema e café. Mas o idealizador do espaço não fica incógnito e possuiu igualmente nesta área um originalíssimo edifício circular construído em 1944, que ostenta o seu nome, Francisco Serrador.
No centro da Praça, vê-se o monumento erigido em homenagem ao Marechal Floriano, inaugurado em 1910. Por isso, manifestações políticas e culturais nunca trocaram esta praça por nenhuma outra. Aqui se cristalizou grande parte da História do Brasil. Numa das ruas laterais, de nome Luís de Camões, pode ver-se o Real Gabinete Português de Leitura.
Um dos edifícios que recordam a opulência majestática dos tempos do Império, o Centro Cultural da Justiça Federal é um espaço agora dedicado ao turismo e ao lazer, com exposições de grande qualidade, tendo ao lado outros prédios igualmente dedicados a exposições. Andando pelas ruas da Cinelândia, com a Eduarda, e com a amiga Ida Rebelo a fazer de cicerone, descobri uma curiosa exposição sobre a “a descoberta do Brasil” em 1958, quando ganhou o campeonato do mundo, na Suécia. Pelé era a descoberta, mas muitos preferiram Garrincha. E não esquecem o Vavá que cá pelo burgo até deu nome a café, ainda hoje de tertúlias. Mas a exposição aposta na fotografia e no vídeo, e vai apresentando o tema, escadaria acima, com fotografias recortadas dos génios da bola. Não resisti a um encontro mais aproximado. Também por aqueles lados a exposição de uma artista plástico que trabalha com restos de lixo, cartão, papel, lata, materiais deste jaez, que encontra em buscas pelas ruas e depósitos. É dele a favela que servia de genérico a uma telenovela brasileira que agora terminou na Sic, “Duas Faces”. O seu trabalho reabilita o desperdício e os resíduos, apresenta uma originalidade pura, uma ternura certa, uma ironia que rodeia os mais desprotegidos e os acarinha. Vale a pena ver.
Depois, antes de ir ao velho teatro Rival, agora adaptado a café concerto, por onde passa o melhor da MPB, ouvir o Grupo “Mulheres de Hollanda”, homenagear o grande Chico Buarque, entrámos do também modernizado Odéon, onde no ecrã passa o filme sobre o mundial de 58 (os brasileiros em termos de futebol vivem agora do passado: enquanto lá estive perderam com a Venezuela, a Colômbia e empataram com a Argentina, em jogos péssimos!) e na esquina se encontra um simpático e acolhedor café, muito parisiense. A Ida pediu para fotografar parcialmente o cardápio escrito na louça. E aproveitar para captar uma recordação do encontro.
Mas, fabulosa, inigualável, sem palavras para ser descrita é a “Confeitaria Colombo”, na rua Gonçalves Dias. Ainda dizem mal dos comerciantes. Há alguns com indiscutível alma de artista. Os portugueses Joaquim Borges de Meireles e Manuel José Lebrão, que mandaram construir este espaço no ano de 1894, obedecendo ao estilo da “belle époque”, e hoje “tombado” Património Histórico e Artístico do Estado do Rio de Janeiro, são exemplos perfeitos de comerciantes exigentes que apostaram no melhor e por isso ainda hoje são lembrados. O edifício é espantoso. A folhinha que o “maître” me disponibiliza face ao meu entusiasmo, afirma que “a decoração art nouveau de 1913, os amplos salões com descomunais espelhos belgas, as molduras e vitrinas em madeira de jacarandá, as bancadas de mármore italiano e o mobiliário compõem um ambiente de “sofisticada beleza”. Verdade. Compreende-se que príncipes e aristocratas, políticos e intelectuais, escritores, poetas, músicos, artistas plásticos por ali se tenham perdido ou encontrado em tardes e noites de tertúlias admiravelmente emolduradas pelo brilho e a luz dos candeeiros e o resplandecer dos espelhos. Quando se entra, e não se é um cliente já habitual da casa, a entrada é de patego a olhar em redor de si. Fiquei numa mesa no centro, junto da coxia por onde entravam os clientes, muitos turistas. O olhar era maravilhado, quando o empregado, de negro vestido, lhes estendia a carta para escolherem o que queriam tomar e os conduzia ao lugar estabelecido. As pessoas avançam intimidadas, receosas, penetram num mundo de que desconheciam a existência. Parecem recear que tudo lhes tombe na cabeça. A um canto um pianista toca. Sucessos românticos. Idosas de uma abastada burguesia, solicitam com um gesto e um sussurro, um tema especial que lhes recorde que ainda estão vivas. Sorriem agradecidas. Os empregados de camisa branca e de aventais laranja cirandam entre as mesas, trazem-nos um chá magnífico e exemplares sortidos de pastelaria fina. Os aventais são laranja e nas vitrinas das portas, varias fotografias da recente visita do nosso Presidente Cavaco Silva. Um olhar sorridente e satisfeito. As mesas são de tampo de mármore e as cadeiras de madeira com as costas de palhinha. Tudo impecável. Pela sala enorme, um pouco de tudo. Dos veteranos aos neófitos. Velhinhas amparadas por vetustas empregadas ou familiares, casais de namorados, grupos de jovens de sorrisos abertos, administrativos a sair do emprego, artistas sempre, escritores, estudantes, jovens leitores – a minha frente um lê “Os favoritos da Fortuna”, de Colleen McCullough. Lê e por vezes olha em redor, saboreando a leitura e o ambiente. Pensa cruzar-se com Olavo Bilac. Não lê definitivamente “A Balada do Café Triste”, de Carson McCullers, apesar da atmosfera ter o seu quê de decadentista.
Na rua, os milhões que habitam o Rio, no cair da noite, avançam como formigueiro para as suas casas. Numa televisão do “verdinho” a Itália batia a França. No intervalo, os golos sofridos por Portugal da Suiça. Chove, uma aragem húmida que cai do céu. Ninguém usa chapéu-de-chuva. Estamos no Rio. De Janeiro. Que continua lindo. Apaixonei-me pela cidade na primeira vez que bordeei, ao fim da tarde, a lagoa Rodrigues de Freitas. Tinha acabado de descer do avião, em 1981, e o táxi conduzia-me a mim (e ao Fonseca e Costa) para o hotel. Havia uma Semana de Cinema Português com filmes nossos que íamos apresentar. No Rio, em São Paulo, em Brasília. Fiquei no Rio. Fico no Rio. Para sempre.

quinta-feira, julho 03, 2008

UM BLOGUE SUSPENSO

UM BLOGUE ANÓNIMO SUSPENSO: ALELUIA

No site da TVI, esta notícia:
“Um tribunal português obrigou a Google a suspender um blog na Internet. No entender do Tribunal Cível de Lisboa, o “Póvoa online” escrevia textos que atentam contra a honra do presidente e vice-presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim. O autor ou autores do blog não estão identificados, mas já arranjaram forma de dar a volta ao problema e criaram um novo blog com o título “Póvoa offline”.
A decisão é inédita em Portugal. A Google foi obrigada a remover o blog “Póvoa online”, criado não se sabe por quem e disponível na Net desde Maio de 2005. A partir de sexta-feira deixou de ser possível aceder ao blog de forma directa, mas por atalhos ainda se chega lá.
“Póvoa online” é um blog preenchido, quase na totalidade, por artigos que, no entender do Tribunal, atentam contra o direito à honra e credibilidade do presidente e vice-presidente da Câmara da Póvoa de Varzim. Macedo Vieira e Aires Pereira são as vítimas preferidas deste blog: “corruptos”, “parolos”, “fascistas” são apenas alguns nomes que lhes são atribuídos. “Críticas não construtivas”, lê-se na decisão judicial, que “extravasam o núcleo do direito à liberdade de expressão”. Por tudo isto, a Google teve mesmo de suspender o blog.
Curiosamente, não demorou muito até ser criado um substituto para o «Póvoa online». Desta vez chama-se «Póvoa offline» e é feito pela mesma ou mesmas pessoas. As críticas à actuação do presidente e vice-presidente da autarquia continuam, agora ainda com mais ironia. O novo blog disponibiliza ainda a decisão do Tribunal de acabar com o antecessor.
A TVI contactou os autarcas lesados, mas nem o presidente, nem o vice-presidente quiseram falar sobre o assunto.”
Finalmente começa a haver alguma coragem oficial, jurídica sobretudo, para se combater a cobardia do anonimato. A blogosfera não pode ser um covil de covardes a destilar ódio e injúrias de qualquer tipo. Quem se acha no dever de intervir socialmente, na imprensa ou num blogue, terá de o fazer de cara descoberta e identificado de forma verídica. Quem se acoberta no anonimato não merece nenhuma espécie de simpatia. Tudo se deve fazer para estripar este cancro.
A liberdade não tem nada a ver com esta prática rasteira de ajuste de contas entre meliantes sem nome. A liberdade impõe direitos e deveres. Impõe responsabilidade, o que estes irresponsáveis não sabem o que seja. Se não sabem a bem, terão que aprender à força. Mas a medida aplicada neste caso é só simbólica, como se percebe facilmente. De resto é anedótica. Não se consegue identificar o autor anónimo de um blogue? Por favor!
No Brasil, não há muito, um autor (identificado) de um blogue foi condenado a pagar uma importante multa por aceitar publicar um comentário insultuoso. Está certo: um blogue é como um jornal, quem aceita nas suas páginas (ou nas colunas dos seus comentários), textos insultuosos, deve arrostar com as consequências. A blogosfera para continuar a ser livre, a ser um meio de expressão democrático por excelência não pode pactuar com o crime. O anonimato e o insulto torpe são crimes. Logo…

quarta-feira, julho 02, 2008

FINALMENTE BOAS NOTICIAS LABORAIS

SÓCRATES FAZ MILAGRE

Há meses apareceu em toda a imprensa uma notícia bombástica que fez estremecer os corações mais sensíveis. Ana Maria, uma senhora do Minho, Ponte de Lima mais precisamente, de 44 anos, empregada numa junta de freguesia, estava de baixa há já algum tempo, e pretendia uma reforma antecipada, alegando uma dolorosa doença, cervicalgia degenerativa. Mas a nefanda Caixa Geral de Aposentações não lhe concedeu a reforma antecipada. Foi o bom e o bonito por essas terras além, a imprensa e as espontâneas “manifestações populares” floresceram por Portugal. Contra tudo e contra todos, mas sobretudo contra o governo e contra Sócrates. Enfim, a senhora foi avisada que seria dispensada do serviço se não aparecesse até fim do mês passado, e eis que resolve subir até ao Bom Jesus de Braga e regressar curada. O pai anunciou mesmo que fora “Milagre!”
Finalmente uma boa notícia para Sócrates, que assim descobre o seu poder milagreiro. Olha se têm concedido a reforma à senhora, o que ela não andaria ainda por aí a penar.
Todos aqueles que embandeiraram em arco e escreveram laudas infinitas, promoveram manifestações e outras iniciativas de repúdio pela sentença da CGA, estão agora a marcar lugar em autocarros de uma excursão que se dirige ao Bom Jesus de Braga, para agradecerem devidamente o "milagre" acontecido. E a oportunidade do mesmo: mais um dia e a funcionária ia para a rua.

segunda-feira, junho 30, 2008

VAVADIANDO COM BAPTISTA BASTOS


CINEMA: O ACONTECIMENTO


O ACONTECIMENTO
Começam a avolumar-se os sintomas. Algo está a acontecer de estranho. A maioria do público de cinema está dominada por uma histeria de contornos perturbadores. Vamos ao cinema ver um filme que trate com um bocadinho mais de respeito actores e personagens, que procure ser um pouco mais inteligente e sensível, que dê tempo ao espectador para este pensar, e o digníssimo público não gosta, quer acção, quer ritmo rápido, quer que o cinema seja como a execranda televisão que coloca sobre um filme trepidante, violento e abrasivo, legendas em cima e em baixo a dar informações sobre o que aconteceu no dia e o programa que vem a seguir, e as horas, e o nome do canal que está a ver, sem qualquer tipo de respeito por nada do que está a apresentar, mas com a preocupação máxima de não perder o espectador, de não o deixar adormecer, de o entontecer, de o manipular de todas as formas e feitios. E o público, bem domesticado, está a aderir à onda, de olhos já vesgos, atordoado pelo ritmo, as cores, os sons. Um filme que tente ser um olhar mais respeitador sobre a realidade, é logo enxovalhado, injuriado, vilipendiado, acusado de isto e mais aquilo, mas sobretudo de ser uma chatice e de nele “não acontecer nada”. O público deixou de ter capacidade para sentir o que acontece quando parece que não acontece nada. No entanto há muitos filmes onde o que acontece parece não acontecer e aí está a sua magia.
Falemos do fantástico e do terror. Nos anos 30 (nos estúdios da Universal), mesmo até aos anos 60 (nos estúdios da Hammer), o fantástico alimentava-se de mitos maiores, como Frankenstein, Drácula, A Múmia, O Médico e o Monstro, O Homem Lobo, alguns mais. Havia castelos amaldiçoados, casas lúgubres, monstros psicológicos, duplas vidas, interpretações psicanalíticas, eros e tanatos, uma menina entregava uma flor a um monstro à beiro de um lago, um embuçado espetava os dentes num pescoço que deixava escorrer com voluptuosidade uma gota de sangue, um homem de bem em noites de lua cheia uivava como um animal com cio, um médico que salvava vidas de dia, de noite devotava-se às fantasias do seu subconsciente. E o público entregava-se ao deleite deste fantástico fecundo que puxava pelas meninges e, sobretudo, exigia sensibilidade e imaginação. Depois o fantástico transferiu-se para os matadores e os talhos e iniciou a época “gore” da facada funda e do esguicho de sangue contínuo. Não digo que não tenham aparecido obras interessantes, mas o conjunto é fraquinho. Mantiveram-se alguns cultores do género de qualidade, mas a média baixou. Acontece que sempre achei que o melhor fantástico, o melhor terror, o melhor “thriller” não precisa de mostrar tudo, mas sobretudo de sugerir muito. De inquietar, de criar “suspense” (como o mestre Hitchcock sabia fazer como poucos). Não é preciso ver-se a facada, e a outra facada e o sangue a jorrar, e a espirrar para o rosto dos espectadores das primeiras filas. Basta criar muito medo em quem o vê, levantar ondas de preocupação, mas para isso é preciso o filme ser muito bem construído narrativamente (o que raros sabem fazer), ter um sólido argumento, ser inteligente, e manter a inquietação com temas que preocupem o espectador, sem pactuar com os seus gostos mais baixos.
“O Acontecimento” (The Happening), de M. Night Shyamalan, pertence a este pequeno número de filmes que em lugar de manipular o horror causado pelo que se vê, procura explorar o medo e a inquietação provocados pelo desconhecido, o inexplicável, o inlocalizável, o não perceptível. Hitchcock já havia ido por esses terrenos muitas vezes. “Os Pássaros” é um caso exemplar. Uma revolta de pássaros, que se tornam assassinos e se precipitam sobre os transeuntes, põe em alvoroço uma pequena comunidade costeira. No novo filme de Shyamalan (que volta a ser muito criticado depois do excelente “A Senhora do Lago”, também ele injustamente mal recebido) parte de um “acontecimento” inexplicável: numa manhã como todas as outras em Central Parque, em Nova Iorque, o impensável acontece. Uma rabanada de vento, as pessoas imobilizam-se, têm reacções desconcertantes, emitem palavras e sons sem lógica, readquirem depois o movimento, mas para se precipitarem numa auto destruição colectiva. Operários saltam dos últimos andares de arranha-céus em construção e estatelam-se no cimento da avenida, transeuntes deixam-se atropelar, polícias suicidam-se com tiros de revólver, e tudo o mais que a imaginação possa sugerir. Inclusive um rural colocar-se à frente de um potente tractor ou cortador de relva ou um empregado do jardim zoológico imolar-se nas bocas dos leões. Mas nada disto é mais do que sugerido, levemente esboçado. O que fica no ar destes espantosos 40 minutos iniciais (mais ou menos cronometrados), é o clima criado desde as primeiras imagens.
Com meia dúzia de planos, uma banda sonora magnífica, enquadramentos soberbos, um ambiente de perfeito quotidiano onde parece imperar a felicidade de viver é transformado num pesadelo sem explicação e sem fim à vista. Anunciam-se terroristas os ataques (a psicose do 11 de Setembro sempre presente, e como não há-de estar?), mas depois já podem ser experiências governamentais mal sucedidas, um vírus, uma vingança da Natureza ameaçada pela depredação humana, e é por aqui, pela ameaça ambientalista que as motivações são mais fortes: as plantas, agredidas a toda a hora pela maligna convivência com a raça humana, explodem em fúria e libertam uma toxina que leva os humanos à auto-destruição programada. Tudo se resume a uma zona norte-americana, o noroeste, que vê a pandemia avançar dos grandes centros para as pequenas localidades, progredir pelas estradas, planar sobre os campos, até ser difícil encontrar sobreviventes. As autoridades não sabem como reagir, os cientistas não têm respostas, apenas sugestões. As cidades são despovoadas. Na fuga acompanhamos um grupo restrito com o qual nos vamos identificar e partilhar o sofrimento: Elliot Moore(Mark Wahlberg), professor de ciências, Alma (Zooey Deschanel), a mulher, Julian (John Leguizamo), um colega de escola de Elliot, e Jess (Ashlyn Sanchez), a filha de Julian. Partem de comboio de Nova Iorque para Filadélfia, mas são obrigados a parar na Pensilvânia, numa zona rural, sem saberem muito bem o que fazer. Assistem impotentes à morte de todos os que os rodeiam. Um cientista, uma mulher, uma criança – estão encontradas as vítimas do medo por excelência, aqueles com que mais facilmente se identificam as plateias.
M. Night Shyamalan, ao apresentar o seu filme, falou das séries B dos anos 50, de ficção científica, e não perdeu oportunidade para citar “A Terra em Perigo” (Invasion of the Body Snatchers), um clássico assinado por Donald Siegel, em 1956. Com toda a razão. Tanto mais que ambas as obras se identificam com dois períodos da história americana muito semelhantes: os anos 50 atormentados pela guerra-fria e o perigo que viria do ar, discos voadores, extra terrestres, aliens, ameaças sem rosto, e estes anos pós-11 de Setembro de 2001 que remetem para idênticos terrores e ameaças pressentidas de forma semelhante. Mas há ainda um outro factor a acrescentar a este terror que paralisa os humanos: a ameaça ambientalista que é hoje um alarmante sintoma de mal-estar para muita gente.
No caso de “The Happening” tudo se passa sem que apareça uma explicação cabal, como a maioria do público gosta de sentir, antes de sair da sala. O “acontecimento”, como veio, assim se vai, mas volta. Noutro ponto do mundo à sua escolha. A ideia é levar o espectador a pensar que à saída da projecção de “The Happening” pode deparar-se com “o acontecimento”. Ontem, à saída do Monumental, em Lisboa, imaginei uma revolta dos carros, que de um momento para o outro, sem explicação plausível, em lugar de correrem no asfalto das avenidas e ruas, começassem a ter vida própria, atirarem-se uns aos outros e subirem os passeios em perseguição dos peões. Que aconteceria?
É esta inquietação que filmes como este provocam e esta inquietação é saudável, ajuda a prevenir “acontecimentos” inexplicáveis. Liberta a imaginação do espectador, não o leva apaziguado até casa. Mas o público quer a papinha feita e regressar à normalidade do dia a dia sem novas preocupações. Por isso, o irrita filmes que não o tranquilizem, mas o perturbem.
De resto há um percurso muito curioso nesta obra: Shyamalan abre o filme com planos gerais e de conjunto, de Central Parque, de avenidas, e, sem que nunca feche o campo das suas personagens (a não ser nas cenas finais numa casa de campo), todo o filme se passa em campo aberto, e todavia tudo parece caminhar para um beco sem saída, um gueto, uma prisão irremediável, o que pode bem dar o sinal para a compreensão integral deste projecto. O homem está a conduzir-se a si e a todo o planeta para um “huis-clos” donde não haverá fuga possível.
Mas se o filme me parece particularmente interessante e estimulante, o mesmo não quererá dizer que o encontre isento de falhas. Parece-me que arranca muito bem, de forma excepcional, mas quando as personagens centrais se encontram numa encruzilhada de estradas, sem saberem muito bem que fazer, acho que o filme começa a partir daí a pecar pela mesma indefinição. A relação entre Elliot e Alma com algumas justificações sentimentais excessivas não funciona bem, assim como uma desnecessária conversa da televisão com um cientista que procura explicar demasiado o inexplicável. A sensação é a de que Shyamalan se perdeu um pouco na segunda metade da obra e que esta, globalmente, não tem a quase perfeição de alguns outros filmes seus, desde o surpreendente “O Sexto Sentido” (The Sixth Sense, 1999) que levaria, da noite para o dia, o autor à glória, o fabuloso “O Protegido” (Unbreakable, 2000), “Sinais” (Signs, 2002) e os por vezes incompreendidos “A Vila” (The Village, 2004) e “Senhora da Água” (Lady in the Water, 2006).
Como sempre M. Night Shyamalan faz a sua aparição nesta obra. Desta feita ele é a voz de Joey, o amigo de Alma.
O ACONTECIMENTO
Título original: The Happening
Realização: M. Night Shyamalan (EUA, União indiana, 2008); Argumento: M. Night Shyamalan; Música: James Newton Howard; Fotografia (cor): Tak Fujimoto; Montagem: Conrad Buff; Casting: Douglas Aibel, Stephanie Holbrook; Design de produção: Jeannine Claudia Oppewall; Direcção artística: Anthony Dunne; Decoração: Jay Hart; Guarda-roupa: Betsy Heimann; Maquilhagem: Qodi Armstrong, Tom Denier Jr., Diane Dixon, Diane Heller, Craig Lyman, Clayton Martinez, Donald Mowat; Direcção de produção: Sam Mercer, Gerald Scaife, Lauren Scott; Assistentes de realização: Matthieu Charter, Ali Cherkaoui, Chris DeAngelis, Jeff Habberstad, Tudor Jones, William Lebeda, Marjorie Marramaque, Paviel Raymont, John Rusk; Departamento de arte: John DeMeo, Claire Kirk, Thomas D. Krausz; Som: Tod A. Maitland, Wyatt Sprague, Steven Visscher; Efeitos especiais: Steve Cremin; Efeitos visuais: Amit Dhawal, David Ebner, Katherine Farrar, Grzegorz Jonkajtys, Justine Whitehead; Produção: Barry Mendel, Sam Mercer, Jose L. Rodriguez, John Rusk, M. Night Shyamalan; Companhias de produção: Barry Mendel Productions, Blinding Edge Pictures, Spyglass Entertainment, Twentieth Century-Fox Film Corporation, UTV Motion Pictures, UTV.
Intérpretes: Mark Wahlberg (Elliot Moore), Zooey Deschanel (Alma Moore), John Leguizamo (Julian), Ashlyn Sanchez (Jess), Betty Buckley (Mrs. Jones), Spencer Breslin (Josh), Robert Bailey Jr. (Jared), Frank Collison, Jeremy Strong, Alan Ruck, Victoria Clark, M. Night Shyamalan (Joey), Alison Folland, Kristen Connolly, Cornell Womack, Curtis McClarin, Robert Lenzi, Derege Harding, Kerry O'Malley, Shayna Levine, Stéphane Debac, Cyrille Thouvenin, Babita Hariani, Alicia Taylor, Edward James Hyland, Armand Schultz, Stephen Singer, Sophie Burke, Alex Van Kooy, Charlie Saxton, Kathy Lee Hart, Lisa Furst, Rick Foster, Marc H. Glick, Don Castro, Bill Chemerka, Jann Ellis, Whitney Sugarman, Mary Ellen Driscoll, Greg Wood, Peter Appel, Eoin O'Shea, Michael Quinlan, Lyman Chen, Brian O'Halloran, Megan Mazaika, Rich Chew, Keith Bullard, Joel de la Fuente, Ashley Brimfield, Mara Hobel, James Breen, Carmen Bitonti, Brian Anthony Wilson, Greg Smith, Ukee Washington, John Ottavino, Sid Doherty, Wes Heywood, Nancy Sokerka, Julia Yorks, Bill Shusta, Kirk Penberthy, Alex Craft, Allie Habberstad, Michael Biscardi, Chelsea Connell, Michael Den Dekker, Tony Devon, Robert Fazio, Mark Jacobson, Steven J. Klaszky, Chris McMullin, Susan Moses, Mauricio Ovalle, Eugene Smith, Robert Bizik, Anthony C. Brown, Lee Burkett, Richard Graves, Thomas M. Hagen, Michael J. Kraycik, Roberto Lombardi, Art Lyle, Charles Pendelton, Mark Pricskett, Vincent Riviezzo, Sam Rocco, Christina Sampson, Chuck Schanamann, Jennifer Wiener, etc.
Duração: 91 minutos; Classificação etária: M/ 16 anos; Distribuição em Portugal: Filmes Castello Lopes: Estreia em Portugal: 12 de Junho de 2008; Locais de filmagem: 100 W 18th St, New York City, New York; 30th Street Station - 3001 Market Street, Philadelphia, Pennsylvania; G-Lodge Diner - 1371 Valley Forge Road, Phoenixville, Pennsylvania; Julia Masterman High School - 1699 Spring Garden Street, Philadelphia, Pennsylvania; Literary Walk, Central Park, Manhattan, New York City, New York; Philadelphia, Pennsylvania; Ridley Creek State Park - 1023 Sycamore Mills Road, Media, Pennsylvania; Rittenhouse Square - 18th and S. Walnut Streets, Philadelphia, Pennsylvania; Route 23/Country Club Road, Phoenixville, Pennsylvania; Unionville, Pennsylvania; Wynnewood, Pennsylvania, todos nos EUA; Paris, França.

domingo, junho 29, 2008

TERTÚLIAS DO FADO E DA INQUIETAÇÃO



Ontem, dia 27 de Junho, aconteceu mais um jantar da associação “Tertúlia do Fado e da Inquietação.” Reúnem-se no Centro de Congressos, ali para os lados de Belém, são jantares que oscilam entre os 70 e os 100 convivas, a intenção é confraternizar, ouvir e cantar uns fados, e convidar para cada repasto (cerca de 4 ou 5 por ano) alguém que fale da sua relação com o fado e o mais que adiante acontecer. Ontem o “convidado especial” fui eu, apresentado pela Mary com entusiasmo de amiga. Lá confessei a minha paixão pelo fado que vem desde os tempos de menino (os meus pais eram apreciadores, ouvia-se muito na telefonia, depois em discos de 78 rotações), citei Amália e Hermínia, falei do fado no cinema português e fui obsequiado, no final, com dois fados da minha predilecção cantados por uma médica de bela voz e emotiva postura, Anabela Paixão, que, se não fosse o facto de ser uma ilustre e indispensável pediatra, eu diria que tinha errado a profissão. Depois cantaram-se fados de Coimbra, nas vozes de Pedro Ramalho, Fernando Coelho Rosa, Manuel Relvas, acompanhados à viola e à guitarra por João Gomes e Alexandre Bateiras, e mais uma vez percebi como é bonito ver despretensiosos amadores exercerem uma arte que amam, e exercitarem-na pelo simples prazer de cantar. É o gosto da fama, segredam alguns. Nada disso. Claro que há o prazer de se fazerem ouvir, mas aqueles não precisam de fama para nada, são médicos, engenheiros, bancários, gestores, delegados de propagando médica, e muito mais, têm ou tiveram carreiras que os satisfizeram e encontram-se para cantar pelo prazer de cantar. Outros espontâneos apareceram antes do caldo verde da uma da manhã.
Numa sociedade cada vez menos solidária, egoísta, fechando-se cada um em si e em sua casas, sabe bem descobrir comunidades que procuram a comunicação pela comunicação, o diálogo, que falam e ouvem, que procuram a companhia e ainda se ofertam fados uns aos outros, depois do jantar, na medida das suas possibilidades, com vozes cristalinas ou roufenhas. Inscrevi-me como sócio. Lá estarei em próximas tertúlias, a ouvir "convidados especiais".

sábado, junho 28, 2008

NO BRASIL, I


SANTIAGO, de João Moreira Salles

Na última noite do festival de Goiás, durante o jantar no “Da Vinci”, perguntei a Jean Claude Bernardet, um dos mais lendários críticos e realizadores brasileiros, e a Lizandro Nogueira, consultor do FICA, quais os filmes brasileiros, recentemente estreados, que valia a pena ver, nos dias que iria passar no Rio. Ambos concordaram em dois títulos: “Jogo de Cena”, de Eduardo Coutinho, e “Santiago”, de João Moreira Salles.
Quando cheguei ao Rio e consultei o roteiro dos cinemas, só estava em exibição “Santiago”, que me apressei a ir ver. Por um capricho da sorte, estava em exibição no auditório da Instituto Moreira Salles, na Gávea. Só à saída da exibição do filme percebi quanto importante era este facto.
Para compreender o filme é preciso enquadrá-lo. Por exemplo: João Moreira Salles é irmão de Walter Salles, Jr. (autor de “Central do Brasil”, por exemplo), Pedro Moreira Salles (actual presidente do Unibanco), e ainda de Fernando Moreira Salles, o mais velho do grupo (editor e ultimamente também cineasta - tem para estreia nos ecrãs do Brasil uma nova longa metragem). Todos são filhos de Walther Moreira Salles, importante empresário, banqueiro e diplomata brasileiro, que foi ministro da Fazenda do Brasil, no governo João Goulart e fundou em 1975 um dos maiores conglomerados financeiros, que passou a chamar-se Unibanco. Mas foi sobretudo como embaixador que se notabilizou, duas vezes em Washington, na década de 1950, onde ganhou a admiração do presidente Juscelino Kubitschek, tendo sido um dos negociadores da dívida externa brasileira, em três ocasiões, nos governos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros. Falecido em 2001, tinha antes criado o Instituto Moreira Salles, uma entidade de assistência à cultura do país. Vivia na casa da Gávea, onde hoje está instalado o Instituto com o seu nome. Foi nessa casa apalaçada que viveram Fernando, Pedro, Walter e João, todos servidos por um mordomo argentino de nome Santiago Badariotti Merlo, homem de uma vivência riquíssima, um verdadeiro aristocrata pelos gostos, pela cultura, pela ambição de estilo de vida, pela sensibilidade.
Durante mais de 50 anos foi escrevendo 30.000 páginas de biografias das grandes famílias aristocratas, desde a Antiguidade Clássica até à actualidade. Páginas que coleccionava religiosamente num armário, agrupadas por temas e devidamente atadas por delicadas fitas. Olhava-as e dizia com um misto de comoção e algum fascínio, “Todos mortos!”
Santiago, mordomo, vivia mergulhado num mundo de sonho, por entre reis e imperadores, opulência e elegância, ia à ópera e ouvia música clássica (vestia smoking em casa para tocar Beethoven ao piano), frequentava exposições, conhecia a melhor literatura, cantava e tocava castanholas nas noites mais calmas do adormecido casarão e tinha o cinema como obsessão e Fred Astaire como figura máxima. Não é de estranhar que João Moreira Salles, e demais ninhada do senhor embaixador, tivesse uma admiração indisfarçável pelo mordomo que os viu crescer. Por isso se compreende também que João, sobretudo ele, o mais documentarista, se tenha lembrado de Santiago, em 1992, para sobre ele fazer um filme. Entrevistou-o, já não na Gávea, mas no pequeno apartamento para onde se mudara quando reformado e, durante cinco dias, recolheu nove horas de depoimento, que deixou adormecer em latas, até que descobriu o que fazer com ele. Muitos anos depois. As entrevistas tinham sido conduzidas por uma amiga, o fotógrafo tinha sido um mestre brasileiro, Walter Carvalho, e a voz off era a do irmão Fernando. Santiago estava perto de completar 80 anos, era frágil e dócil, deixando-se levar pelo antigo patrão (e actual realizador: como são parecidas certas funções!) que lhe perguntava o que queria e o orientava na forma de responder, de colocar a cabeça, de estender as mãos, de desenhar gestos no espaço. Num plano de conjunto, sempre rodeado dos seus objectos, na cozinha, na sala, sentado, em pé, quase sempre de corpo inteiro, a uma distância significativa da câmara, esta junto ao chão a relembrar Ozu, nunca a proximidade do grande plano, do rosto, mas quase sempre o plano de conjunto, Santiago fazendo parte de um cenário, um corpo inteiro, a recuperação de uma memória de menino. João Salles julgava estar a fazer um filme sobre Santiago, seu mordomo, mas estava a fazer um filme sobre ele, João, e a sua relação com Santiago, o mordomo. Só percebeu isso muitos anos depois e então abriu as caixas e regressou ao filme, acabando-o segundo um novo projecto. “Até hoje, foi o único filme que comecei e não terminei”, disse João Salles. Com o apoio dos montadores Eduardo Escorel (um dos mais criativos do Brasil) e Lívia Serpa reorganizou o material, e apresentou-nos uma obra-prima do moderno documentarismo.
Um filme sobre o fascínio de um mordomo pela aristocracia, um filme sobre o deslumbramento de um aristocrata pelo seu mordomo. Um filme de apaziguamento social, de demonstração de como se podem conciliar as classes? Afinal nada disso. João Moreira Salles dá-se conta de que filma o mordomo à distância, que o trata como seu empregado, e isso a câmara regista e disso fala o filme de forma muito discreta, secreta, insidiosa. Tão discreta que o realizador só dá por ela treze anos depois, e resolve tornar visível o invisível, tornar significativo o (aparentemente) insignificante. É o próprio realizador quem o confirma: “Não tinha a noção de que, na verdade, não fiz um filme sobre Santiago, mas sobre a minha relação com ele. Não havia ali uma relação de documentarista e de documentado. Havia uma relação de patrão e mordomo, de, em última instância, chefe e criado. (…) Nas entrevistas, não queria ouvir o que Santiago tinha a me dizer. Queria que ele dissesse o que eu queria ouvir, que ele se parecesse com o Santiago da minha infância, com o meu Santiago. Daí as ordens, os planos repetidos. Essa relação de patrão e empregado é também uma alegoria do que acontece em todo filme, entre o documentarista e o seu objecto. É preciso ter consciência disso, mesmo quando se filma o presidente, a palavra final sempre será de quem está com a câmara na mão.”
O filme transforma-se assim num ensaio sobre a relação de forças, entre chefe e criado, ao mesmo tempo que o é igualmente entre cineasta e intérprete. João Moreira Salles “encena” o seu intérprete, explica-lhe o que pode e não pode fazer (vai ao ponto de Santiago, obviamente homossexual, ir confessar a sua “maldição” e de o realizador, por interposta voz, negar-lhe a palavra, “Isso não Santiago, agora não, isso não interessa!”). Se o realizador não expusesse a metodologia, o filme seria eticamente reprovável. Expondo-a, torna-o um documento sobre a ética do olhar e do filmar.
Mas há muito mais a celebrar neste belíssimo filme, de uma austeridade rigorosa, rodado num preto e branco macerado, interrompido por uma ou outra sequência a cores que o transfiguram. Imagens de felicidade, em família, João, irmãos, pai e mãe na piscina da casa, “home vídeo” dos anos 50, mais adiante uma sequência de um bailado de Fred Astaire e Cyd Charisse, em "A Roda da Fortuna", onde um passeio em Central Park evolui tão naturalmente para a dança como se de um passe de magia se tratasse. Momentos de felicidade e plenitude, de um passado que é somente recordação, mas que o cineasta trata com uma mestria perfeita.
Assim evoluiu o filme, por entre registos sincopados, intercalados por “negros”, durante os quais se ouvem unicamente vozes off, marcado por avanços e retrocessos, por repetições, numa toada que nunca abandona a interrogação, colocando continuamente questões ao espectador e aos próprios responsáveis pelas filmagens. Ao próprio cinema. Um filme que avança, questionando-se, que se distancia do que foca, mesmo quando, como nas imagens iniciais, a câmara se vai aproximando de fotografias de Santiago, iniciando um “outro filme”, que logo se suspende para principiar um outro, que afinal é o mesmo, questionando-se a si mesmo. "Reflexão sobre o material bruto", afirma o cineasta, mas também reflexão sobre o acto de filmar, o acto de montar, o acto de mostrar ou ocultar, o acto de ver o tempo passar (“Se 13 anos se passam, você tem de incorporar a passagem do tempo. Na verdade, o que deu liga para o filme foram os 13 anos que ele ficou parado. Estranho seria se eu fizesse o mesmo filme que queria realizar em 1992. O que mudou no tempo? Mudei eu.”).
Há durante o filme uma outra frase que explica algo do processo criativo desta obra que mostra o outro lado da criação, em cinema, o que fica não dito, não visto, num filme tradicional. ), É uma citação de Werner Herzog: "O mais bonito é o que acontece depois do plano terminar". Quer dizer, o mais bonito é o não visto, o não mostrado, o não ouvido. João Moreira Salles procura ultrapassar o obstáculo, e mostrar algo do que é uso cortar antes do público ter acesso à obra. As hesitações, as repetições, a insatisfação, a insegurança (ficou bem?), o silêncio, os gestos imperfeitos.
Ao sair da sala de projecção, descobrimos que estamos no interior da casa onde tudo se passou, e a magia é completa, o circulo fecha-se, ouve-se Santiago passar e Beethoven ao longe, olham-se as exposições abertas ao público (“A Bahia de Jorge Amado”, magnifica) e sentem-se os fantasmas nos corredores, as castanholas e os gestos, a “maldição” a sobrevoar os espaços, a chegada dos embaixadores, as grandes noites de recepção, e, à beira da piscina, as gargalhadas dos miúdos, o sorriso da mãe, os braços fortes do pai… a memória de Fred Astaire dando a mão a Cyd Charice e ambos a voarem, planando sobre Central Park. Naquele tempo, tudo era perfeito, até ao dia que o Paraíso se perdeu, porque o homem começou a pensar.

sexta-feira, junho 27, 2008

SEGUNDO ANIVERSÁRIO JÁ PASSOU!

Parece que foi a 2 de Junho de 2006 que iniciei este blogue. Fez dois anos há dias, mas nem dei por isso. Lembrei-me ontem, durante uma conversa com amigas e amigos igualmente blogueiras. Foram dois anos de alguma escrita, e muita experiência blogueira, alguma da qual bem dispensava. Mexeriquices, má-língua, dor de cotovelo, invejas, cobardias encapotadas, comentários a torto e a direito até esvaziarem por completo o sentido e a dignidade das palavras, que passam a não querer dizer nada, mediocridade a armar aos cucos, enfim de tudo um pouco por aqui vi e li. Alguns e algumas esquecem a vida para se enterrarem neste terreno da convivência virtual e do falso elogio mútuo, onde se sentem muito bem. Rapapés e água de rosas, galanteios e doces mentiras, quem não gosta. E aqui distribuem-se sem receita médica. É ao gosto do freguês (sobretudo das freguesas que se colocam a jeito, à janela do blogue, vendo-os passar, parar e comentar).
Fiz amizades e desfiz conhecimentos, as amizades, as boas, as que mereceram a pena ficaram, mas fui também descobrindo muitas e excelentes vozes de pessoas que desconhecia e que me passaram a que merecer respeito, amizade e carinho. Há muita gente para quem os blogues são um veículo magnífico para democratizar a opinião. Nunca pensei que fosse diferente. Afinal, os blogues não são mais do que o prolongamento da vida. Aqui se cristaliza o que há de melhor e de pior na vida de todos os dias. Com a vantagem de quem tem cara e coragem escrever o que muito bem quer e entende e responsabilizar-se por isso. O que é muito bom. Os outros, os vermezinhos que atacam escondidos merecem aqui o que merecem lá fora: um completo desprezo.
De resto devo dizer que não perdi a vontade de continuar, apenas às vezes o tempo não permite escrever sobre tudo o que se queria abordar. O blogue funciona como uma espécie de diário pessoal, que se torna público, e através do qual se dialoga com os
outros e connosco próprio.

Feitas as contas, há muito mais de positivo do que de negativo na prática de blogar. Mesmo blogando contra a corrente, merece sempre a pena se nos dá prazer.


HOJE, JANTAR NA "TERTÚLIA DO FADO"



A presença aquii de Amália Rodrigues assinala um jantar, hoje, na "Tertúlia do Fado". Convidado, vamos falar do fado no cinema português, e em muito mais, claro. O jantar é, como sempre, na e-FIL, em Belém.

sábado, junho 21, 2008

ELEVADORES E JAZZ - MILES DAVIS

ADEUS AO EUROPEU



ERROS MEUS, MÁ FORTUNA!
Não sei se Portugal tem ou não melhor equipa que as que restam no Europeu. Sei que houve erros decisivos neste Europeu que não se podem desculpar. Um, obviamente que foi a confirmação que Luís Filipe Scolari irá para o Chelsea no fim do campeonato. A meio de uma prova decapitar-se o grupo, é suicídio puro.
A outra foi a igualmente infeliz decisão do mesmo Luís Filipe Scolari escalar uma equipa de reservas para jogar contra a Suíça. A dinâmica de vitória inverteu-se e o resultado está a vista. Venham-me dizer agora que era preciso fazer descansar a equipa. Pois, viu-se. A Alemanha não descansou nunca, foi crescendo de intensidade de jogo para jogo, teve um dia de folga a menos que Portugal, e foi o que se viu. A Turquia também. Quem joga sempre ao mais alto nível habitua-se. Quem se habitua à ronha, dá no que dá.
Nunca critiquei Scolari. Desagradaram-se quase sempre as críticas, quase sempre injustas, que lhe dirigiram. Até hoje. Na despedida, borrou a pintura. Infelizmente. Mas também não me quero associar aos que agora, que o vêem pelas costas, o enterram cobardemente. Fez coisas boas, outras menos boas, e partiu de forma infeliz. Com ele as esperanças de uma selecção e de um povo. Que mereciam mais.
ADENDA:
Depois de Portugal ter ido à vida, já foram também a Croácia e a Holanda. Todas selecções favoritas. Todas apuradas à segunda jornada. Todas a economizar esforças na terceira ronda. Todas a perderem competitividade. Todas a perceberam, tarde de demais, que todos os jogos são decisivos, até aqueles que parecem que não servem para nada.
ADENDA II:
Escreve F. Beckenbauer, no "Record" de 25 de Junho:
"Vamos aos factos. É tentador, quando já és seguramente o campeão do grupo, fazer o terceiro jogo da primeira fase com urna equipa reserva. Quando os portugueses o fizeram pela primeira vez este Europeu contra a Suíça adverti para que poderiam perder algum ritmo. O resultado é o conhecido. Portugal não encontrou contra a Alemanha a boa forma que havia exibido em jogos anteriores e acabou inesperadamente eliminado.
Adverti também quando a Croácia alinhou com as reservas frente à Polónia. O resultado é conhecido. Contra a Turquia nunca exibiu o mesmo bom futebol dos jogos anteriores e acabou eliminada nos penáltis. Curiosamente, o mesmo vale para a Holanda, que jogou com os suplentes contra a Roménia e caiu frente à Rússia.
Muitos viam já os holandeses como os novos campeões da Europa. £ o que é facto é que eles voltaram a valorizar-se neste Europeu. Exibiram um futebol esplêndido, com jogadas de fantasia e passes diagonais de precisão milimétrica. No entanto, os jovens russos têm ainda mais energia, ainda mais pressão ofensiva. Aliás, a verdadeira cara da Rússia viu-se a primeira vez no terceiro jogo, após cumprida a sanção de Arshavin."

segunda-feira, junho 09, 2008

FAIAL, IV

SOCIEDADE "AMOR DA PÁTRIA"

FAIAL, III

UMA ARQUITECTURA MUITO ESPECIAL
E A SOCIEDADE "AMOR DA PÁTRIA"

A arquitectura da cidade da Horta, no Faial, não será totalmente surpreendente (porque a influência, em diáspora, do português se nota um pouco por todo o lado), mas é muito característica e, sobretudo, belíssima. Andar simplesmente pelas ruas do Faial é um espectáculo. Cada casa encerra uma história, algumas um mistério, todas um encanto fortíssimo. Da mais humilde à mais trabalhada ou opulenta.A presença de portugueses de posses, que para ali foram por vontade própria ou exilados, ao lado de alemães, holandeses (ou os "flamengos"), ingleses e tantos outros oferecem à ilha, em especial à cidade da Horta, uma configuração admirável.Entre os vários edifícios, frente aos quais tive de parar e olhar com maior detença (e quase todos seriam, e quase todos mereceriam mais do que o olhar passageiro de quem descobre, ou redescobre, o prazer da cidade), um há que merece atenção muito especial.
Trata-se daquele que alberga a Sociedade “Amor da Pátria”, construído, ao que me informa um “Guia do Património Cultural”, entre 1931 e 1934, sob o traço do arquitecto Norte Júnior, obedecendo a toda uma simbologia maçónica que ali explode em magnificência. A Sociedade “Amor da Pátria” foi fundada em 1856, e veio a instalar-se neste edifício em finais da década de 30 do séc. XX. Encontra-se ao fundo da Rua D. Pedro IV, lado a lado com um Império ("Império dos Nobres" ou "Império de Reconhecimento e Beneficência”).A entrada da “Sociedade “Amor da Pátria” é fabulosa, com dois dragoeiros majestosos incrustados na recuada escadaria, existindo na fachada dois brasões em alto-relevo (um da “muy leal” cidade da Horta, outro o escudo de Portugal), aflorando ainda, a toda a volta do edifício, um friso, igualmente em relevo, de hortênsias que, não sendo flores autóctones dos Açores, agora funcionam como seu símbolo maior. O efeito é deslumbrante. No interior abundam os símbolos maçónicos, mas, infelizmente, espero vê-los numa outra oportunidade.
Ficam alguns exemplos desta visita, a merecer atenção redobrada numa próxima viagem:

afinal a "Fredonia", dos Irmãos Marx, existe: assim se chama este edificio

Secretaria Regional do Ambiente

escola primária

museu da cidade
teatro faialense
repartição de finanças