segunda-feira, dezembro 26, 2011

CINEMA: NOS IDOS DE MARÇO



 NOS IDOS DE MARÇO 
Há um aspecto curioso na crítica cinematográfica portuguesa que eu arrisco a chamar de mais “conservadora” e “direitista”, apesar de hoje em dia grande parte dela se poder integrar neste rótulo (ao contrário do que aconteceu nos tempos áureos da crítica, nos anos 50, 60 e 70, onde era maioritariamente “de esquerda” e dita “progressista”). Esse aspecto repete-se de filme para filme, quando estes tentam de alguma forma criticar, ou beliscar sequer, o sistema capitalista e as estruturas políticas norte-americanas ou de outros países de democracias ocidentais. Quando surge um filme destes, como o recente caso de “Nos Idos de Março”, a crítica mais insistente é que o título não traz nada de novo e se mostra uma repescagem do cinema “progressista” dos anos 70, de Sidney Lumet, de Martin Ritt, de Sidney Pollack ou Alan J. Pakula.
Curiosamente (e isto só é visível para quem já tenha uns anos destas lides e alguma memória, como é o meu caso), nos anos 70, não estes críticos, mas alguns outros idênticos a estes, diziam que os filmes de Sidney Lumet, de Martin Ritt, de Sidney Pollack ou Alan J. Pakula não traziam nada de novo e repescavam o cinema “progressista” dos anos 30 e 40, onde aí sim, havia John Ford, Frank Capra, William Wyller e quejandos. Ou seja, quando se problematizam questões sociais e poliíticas, o melhor é enxotar a obra e depreciá-la, sobretudo em função do passado, porque esse já parece não incomodar ninguém, encerrado em cinematecas para cinéfilos e curiosos, longe dos olhares do grande público.
Ora “Nos Idos de Março” não será uma obra-prima, mas é um grande filme. Um dos grandes filmes de 2011. George Clooney, depois do seu excelente “Good Night, and Good Luck” (2005) oferece-nos outra obra de profunda reflexão sobre o estado actual da actividade política nos EUA. Não, não é de maneira nenhuma uma “reprise” dos filmes de Sidney Lumet, de Martin Ritt, de Sidney Pollack ou Alan J. Pakula, agora empreendida por um aprendiz. É uma reflexão sobre a falta de integridade e de dignidade que campeia em todas as frentes, quer se trate de democratas ou republicanos, (quase) todos eles imbuídos de um mesmo fervor corruptor em defesas de causas que nada mais move do que o desejo de satisfazer clientelismos e interesses obscuros (ou não tanto obscuros, para quem tiver os olhos abertos).
A acção passa-se durante uma campanha eleitoral para as primárias dos democratas. Em Ohio. Claro que há filmes absolutamente irrecusáveis para comparar, a começar desde logo pela obra-prima de John Ford, “O Último Hurra” (1958), e continuando com “A Última Testemunha” (Paralax View, 1974), de Pakula, “O Candidato”, de Michael Ritchie (1972) ou “Bulworth - Candidato em Perigo” (1998), de Warren Beatty. Mas o filme de George Clooney vai noutra direcção, dispensando a acção exterior, os atentados e a violência física, para se centralizar na palavra e no silêncio, na conspiração e no segredo. Hoje as intrigas não culminam em cenas de tiros ou explosões, com a aniquilação física dos protagonistas. Entrou-se numa fase muito mais sofisticada, aproveitando os computadores e os telemóveis, as agências de “ratting” e os poderes invisíveis. Neste aspecto, relembra mais “O Mundo a Seus Pés” e a forma como se destrói um candidato na sombra dos bastidores. Mas em Orson Welles o candidato era destruído por um mau passo dado na penumbra da alcova de uma cantora de ópera sem talento. Aqui, o candidato salta a barreira de um caso amoroso mal resolvido, com aborto previsto e suicídio transformado em imprevidente acidente, e quem fica com o ónus do caso é um conselheiro, também ele não isento de culpas no cartório, pois neste caso não há anjos e demónios, apenas homens sem palavra nem dignidade. 
Em “The Ides of March”, tal como em Shakespeare, o que impera é a traição: foi a 15 de Março do calendário romano que Júlio César foi apunhalado por Brutus. Traição que agora não se expressa por um apunhalamento sangrento, mas por algo mais subtil, possivelmente mais letal, e sem deixar marcas visíveis: a deslealdade, o volte face, o truque de baixa política que aniquila uma carreira. Resta saber quem é mais esperto e mais veloz no contra-ataque, quem possui as melhores armas e quem melhor as utiliza.
Em “Nos Idos de Março” há vítimas, mas estas são apenas os votantes que aclamam os seus ídolos sem se aperceberem dos seus pés de barro. Nesta campanha, como em qualquer outra rival, de democratas ou republicanos, o que vemos é ausência de valores. Ou como se diz, no final do filme, de integridade e de dignidade. Na verdade, olhando para qualquer lado para onde nos voltemos, a desilusão é mesma. Na América, na Europa, nos Árabes, unidos ou desunidos, na China ou na Coreia do Norte. 
O filme tem um naipe de actores absolutamente notável, digno de um prémio de elenco global, onde sobressaem Ryan Gosling, George Clooney, Philip Seymour Hoffman, Paul Giamatti, Marisa Tomei, Jeffrey Wright, todos excelentes, e uma Evan Rachel Wood, já vista num recente Woody Allen, e que aqui explode definitivamente. Mas para lá da tão elogiada interpretação conjunta, há que sublinhar a cuidadosa realização de Clooney, segura, austera, criando um clima de intriga ciciada que marca todo o filme e lhe confere uma originalidade absoluta, no que é muito bem acompanhada pela banda sonora, a fotografia e todos os demais elementos técnicos ao serviço da narrativa. A câmara de Clooney tão depressa é intimista, num campo / contra campo serrado (as conversas admiráveis de Gosling e Rachel Wood, por exemplo), como isola uma personagem num vasto cenário (com a bandeira dos EUA por pano de fundo) ou um grupo de conspiradores num “décor” que os ultrapassa. Excelente, eficaz, e de uma completa economia de meios.
Creio que este é um dos grandes candidatos aos Oscars que se aproximam.
NOS IDOS DE MARÇO
Título original: The Ides of March
Realização: George Clooney (EUA, 2011); Argumento: George Clooney, Grant Heslov, Beau Willimon, segundo peça teatral deste último ("Farragut North"); Produção: George Clooney, Leonardo DiCaprio, Guy East, Barbara A. Hall, Grant Heslov, Jennifer Davisson Killoran, Randy Manis, Brian Oliver, Stephen Pevner, Ari Daniel Pinchot, Jonathan Rubenstein, Matthew Salloway, Nigel Sinclair, Todd Thompson, Tyler Thompson, Nina Wolarsky; Música: Alexandre Desplat; Fotografia (cor): Phedon Papamichael; Montagem: Stephen Mirrione; Casting: Ellen Chenoweth; Design de produção: Sharon Seymour; Direcção artística: Chris Cornwell; Decoração: Maggie Martin; Guarda-roupa: Louise Frogley; Maquilhagem: Kevin J Edwards, Julie Hewett; Direcção de Produção: Barbara A. Hall, Michelle Lankwarden, Michael Tinger; Assistentes de realização: Ian Calip, John R. Saunders, David J. Webb; Departamento de arte: Benjamin Dell, Jody Gaber, Justin Noble Lang, George Lee; Som: Edward Tise, Elmo Weber; Efeitos especiais: Russell Tyrrell; Efeitos visuais: Jay Shindell; Companhias de produção: Cross Creek Pictures, Exclusive Media Group, Smoke House, Crystal City Entertainment; Intérpretes: Ryan Gosling (Stephen Meyers), George Clooney (Governador Mike Morris), Philip Seymour Hoffman (Paul Zara), Paul Giamatti (Tom Duffy), Evan Rachel Wood (Molly Stearns), Marisa Tomei (Ida Horowicz), Jeffrey Wright (Senador Thompson), Max Minghella (Ben Harpen), Jennifer Ehle, Gregory Itzin, Michael Mantell, Yuriy Sardarov, Bella Ivory, Hayley Meyers, Maya Sayre, Danny Mooney, John Manfredi, Robert Mervak, Fabio Polanco, Frank Jones Jr., Peter Harpen, Rohn Thomas, David McConnell, etc. Duração: 101 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 10 de Novembro de 2011.

quinta-feira, dezembro 22, 2011

CINEMA: AS SERVIÇAIS

AS SERVIÇAIS
Não me parece que “As Serviçais” seja um filme excepcional, mas também não julgo que deva ser levianamente menosprezado. Será um pouco convencional na escrita, mas não tanto na forma como aborda, não direi os conflitos rácicos no Sul dos EUA, durante a década de 60 do século passado, mas sobretudo a tensão existente entre comunidades brancas e negras, numa altura em que a luta pelos direitos civis assumia uma importância decisiva e Luther King se impunha.
Tudo parte de um romance de Kathryn Stockett, escrito há uns tempos e publicado em 2009, depois de ter sido recusado por mais de 60 editoras que não descortinaram o filão que tinham entre as mãos. Quem se atreveu a pegar-lhe ganhou 5 milhões de exemplares vendidos só no universo anglo-saxónico e cem semanas na “top list” do “The New York Times”. Agora, que passou a filme, e foi traduzido para muitos mais países, o sucesso editorial vai multiplicar-se. Ainda não li, dizem que o romance é muito bom, quero ler. Já está disponível nas livrarias  portuguesas, em tradução.
Tate Taylor, o realizador, é mais conhecido como actor, apareceu por exemplo nesse magnífico “Despojos de Inverno”, do ano passado. Como realizador tinha rodado uma comédia que nos dizem desinspirada, “Pretty Ugly People” (2008), e agora chegou com “The Help”, que explode em todas as listas de candidatos a prémios do ano, sobretudo através do elenco de luxo que reuniu e que confere a esta obra uma densidade psicológica e uma verdade ambiental notável. Diz-se por aí, sem confirmação segura, que Tate Taylor foi amigo e colega de infância da escritora, que conhece bem os locais e as personagens evocadas, que conseguiu agarrar os direitos de adaptação e que logrou com isso uma obra sem grandes rasgos narrativos, mas de evidente sinceridade, e um tom que, apesar de dramático e por vezes tenso, não ignora o humor e uma certa ironia que lhe fica bem e distancia o possível melodramatismo. 

O filme surge escorreito e limpo, aborda o tema sem facilidades demagógicas, recorda um pouco o clima de “E Tudo o Vento Levou”, de Fleming, sem o tom épico, preferindo-lhe um banal quotidiano, relembra também “Hurry Sundown”, de Preminger, ou “A Cor Púrpura”, de Splielberg, sem a monumentalidade. É um filme de trazer por casa, que observa a existência de todos os dias, os pequenos conflitos que se interiorizam, as humilhações que se sentem em segredo, as prepotências que, de tão banais, quase passam despercebidas até a quem as pratica. Os olhos de uma criança branca vai vendo e registando, para mais tarde reproduzir em livro. Esta a génese.
Como já referi, a representação é excelente (Emma Stone, Viola Davis , Bryce Dallas Howard, Octavia Spencer, Jessica Chastain, Sissy Spacek, Mary Steenburgen, entre outros) e o ambiente sulista dos anos 60 é muito bem recriado, tendo a obra sido filmada nos cenários naturais (Jackson, no Mississippi), o que acaba sempre por trazer alguma autenticidade. 
AS SERVIÇAIS
Título original: The Help
Realização: Tate Taylor (EUA, Índia, Emiratos Árabes Unidos, 2011); Argumento: Tate Taylor, segundo romance de Kathryn Stockett; Produção: Mohamed Khalaf Al-Mazrouei, Michael Barnathan, Nate Berkus, Jennifer Blum, Chris Columbus, Brunson Green, L. Dean Jones Jr., Sonya Lunsford, John Norris, Mark Radcliffe, Jeff Skoll, Tate Taylor; Música: Thomas Montagem: Hughes Winborne; Casting: Kerry Barden, Paul Schnee; Design de produção: Mark Ricker; Direcção artística: Curt Beech; Decoração: Rena DeAngelo; Guarda-roupa: Sharen Davis; Maquilhagem: Camille Friend, Denise Paulson, Roxanne Wightman, Brad Wilder; Direcção de Produção: Mark Graziano, L. Dean Jones Jr., Brian McNulty, Robin Sweet; Assistentes de realização: Karen Davis, Donald Sparks, Tessa Lyn Stephenson; Departamento de arte: Cindy Ichikawa, Ellen Lampl, Paul Sonski; Som: Kim Drummond, Will Riley, D. Chris Smith, Gary A. Theard; Efeitos especiais: Robert Cole, David Fletcher; Efeitos visuais: Christine Cobb, Steven Lloyd, Ray McIntyre Jr., Doug Spilatro: Companhias de produção: DreamWorks SKG, Reliance Entertainment, Participant Media, Imagenation Abu Dhabi FZ, 1492 Pictures, Harbinger Pictures; Intérpretes: Emma Stone (Skeeter Phelan), Viola Davis (Aibileen Clark), Bryce Dallas Howard (Hilly Holbrook), Octavia Spencer (Minny Jackson), Jessica Chastain (Celia Foote), Ahna O'Reilly (Elizabeth Leefolt), Sissy Spacek (Missus Walters), Mary Steenburgen (Elain Stein), Allison Janney (Charlotte Phelan), Anna Camp (Jolene French), Eleanor Henry, Emma Henry, Chris Lowell, Cicely Tyson, Mike Vogel, Brian Kerwin, Wes Chatham, Aunjanue Ellis, Ted Welch, Shane McRae, Roslyn Ruff, Tarra Riggs, Leslie Jordan, Tiffany Brouwer, Carol Sutton, Millicent Bolton, Ashley Johnson, Ritchie Montgomery, Don Brock; Duração: 146 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 5 de Outubro de 2011.

domingo, dezembro 18, 2011

NO NATAL DE 2011



NATAL 2012
para amigos e conhecidos, com afecto

Depois de uns dias bastante desagradáveis em que não pude ler, voltei ao contacto com a autobiografia de Agatha Christie. Refiro este pormenor porque a determinada altura das suas recordações, ela lembra o pai como uma pessoa afável e conclui que hoje em dia é difícil encontrar pessoas afáveis. Mais adiante, esta mestre do policial e da investigação dedutiva do crime violento, bem ao estilo britânico, fala da sua infância e de afectividade.
Duas palavras que me tocaram particularmente: afável e afectuoso. Não são palavras que refiram grandes amores ou amizades indestrutíveis. Apenas sensibilidade e, quase me apetece dizer, bom senso.
Nesta época do ano fala-se muito de amor ao próximo e de fraternidade. Seria bom que não fosse só nesta quadra natalícia que isso acontece. Para muitos, esta jubilação do amor e da caridadezinha não passa de pura hipocrisia, que se renega durante todos os restantes dias do ano. É muito mau que assim aconteça, o mundo seria muito melhor se esse clima de paz e concórdia vingasse sempre e não a espaços. Ia a escrever que o mundo seria muito mais “humano”, mas arrependi-me da utilização da palavra. Humano, sejamos realistas, tanto se refere ao abnegado salvador de vidas e de afectos, como ao finlandês que chacinou uma ilha, o belga que atirou a matar sobre uma praça repleta de pessoas indefesas, ou o usurário banqueiro que só olha para os números e esquece os seus semelhantes no momento de cobrar dividendos.
Todos eles são humanos, e é bom não esquecer que a Humanidade é isso mesmo, essa variedade extrema de comportamentos e de opções. Não podemos mesmo exigir, sejamos realistas, que todos sejam santos, porque como sabemos pelas canções, há santos e pecadores para todos os gostos. Mas pode-se exigir, ou pelo menos desejar, que sejamos afáveis e afectuosos sempre que pudermos e bom seria que o pudéssemos ser sempre.
Não o sendo sempre, já não é mau que o sejamos de vez em quando como, por exemplo, no Natal. Por mim, sempre senti o Natal de forma muito especial. Na infância fui acarinhado pela família, em tempo de aulas havia as férias, era altura de colher musgo, fazer o presépio, erguer a arvore de Natal, receber as prendas, mas sobretudo de sentir um certo calor humano que me rodeava e que me soube sempre muito bem. Nuns casos era amor puro de pai e mãe, era amizade sincera de amigos que não se esquecem nem traem, noutros casos era apenas afabilidade e afecto de conhecidos, e até de desconhecidos, que eram capazes de um gesto ou de uma palavra que calava bem. Sempre me senti “quente” por dentro e por fora nesta quadra, com maiores ou menores ligações religiosas. O Natal está ligado a uma mística cristã, é certo, mas sempre o senti muito mais global, o que fica bem retratado na frase “Paz na Terra aos homens de boa vontade.” Diria Agatha Cristie aos que sabem ser afáveis e afectuosos.
É isso que, julgo, nos reúne aqui hoje. Num período de extrema crise, em que somos empurrados para um egoísmo feroz, para sacrifícios tremendos, que não são desumanos porque são infelizmente provocados por homens, é importante resistir. Resistir com indignação por vezes, mas sobretudo resistir mostrando que continuamos a amar e a cultivar as amizades e que, sobretudo, para amigos e conhecidos conseguimos ser afáveis e afectuosos, Pela simples razão de necessitarmos dessa afabilidade e desse afecto. Não tanto para o receber, o que é sempre gratificante, mas fundamentalmente para percebermos que ainda somos capazes de o sentir e de o extravasar para os outros.
Hoje, aqui, estão familiares que amo, amigos que muito prezo, e conhecidos por quem sinto um profundo afecto. Essa uma das grandes virtudes destas tertúlias que aproximaram pessoas que eram desconhecidas e se tornaram “conhecidas” ou mesmo amigos, e que provocaram em nós uma exaltação afável. Afectuosa.
Cada vez menos acredito em utopias. Cada vez mais quero ser realista e aceitar o possível, em lugar de pedir o impossível. Não acredito num mundo de amor universal, mas creio possível um mundo afável, onde apeteça viver. E conviver.
Acho mesmo que essa é a resposta certa aos que nos querem fazer desacreditar no que quer que seja.
Com a crise à perna, a penúria a galopar, os impostos a subir, as penhoras a avançarem, os euros a desaparecerem (não falo do euro moeda europeia, falo de euro do bolso e da carteira, que cada vez é mais raro), neste triste panorama que dia a dia cresce em ameaça, este ano não me apeteceu sequer engalanar a casa com os presépios e a árvore da praxe. A casa estava sorumbática como os dias invernosos. Depois, atacado pelas cataratas, não via nada. Para uma pessoa como eu, não ver, não conseguir sequer ler um livro ou jornal, transformou-me os dias e as noites num pesadelo. Já sonhava com Camilo Castelo Branco. Não com os livros, mas com a cadeira de balouço onde acabou os seus dias.
Na quinta-feira fui operado, saí para a rua e percebi que, apesar dos cortes nas iluminações municipais, eu descobria uma cidade transfigurada. A pupila dilatada transformava a iluminação pública e as luzes dos carros numa miríade de estrelas refractadas que se assemelhavam em muito a uma enorme árvore de Natal. E não resisti: regressei a casa, desarmei os caixotes dos enfeites de Natal e repus as ornamentações pela sala e pelos corredores. À noite, na cama, abri a autobiografia de Agatha Cristie e li, com os óculos novos que custaram 22 euros.
Não foi ainda neste Natal que me venceram. Consegui mesmo trazer alguns enfeites para esta sala. Com afecto. Esperemos que com afabilidade. Para os amigos e os conhecidos que aqui estão, e para todos os que não estão também aqui.
A Humanidade nunca deixará de estar dividida entre os que tudo fazem para que o mundo seja um bom local para viver e os que só pensam em como transformar o mundo num cemitério para enterrar os outros. Sou realista e acredito que com afabilidade e afecto os primeiros podem multiplicar-se e, infelizmente, sem anular os outros, que continuarão sempre a existir, os podem restringir a um campo cada vez mais exíguo.
Todos os anos tenho citado neste jantar um poema de David Mourão Ferreira que julgo admirável: 
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

Esse Natal há-de surgir. Fatal como o destino. Mas acredito também que o afecto e a afabilidade dos que nos hão-de continuar trarão consigo a esperança de que o mundo não será perfeito, mas cada vez melhor. E mais apetecível para viver.
Um Feliz Natal e um Ano de 2012 afável e afectuoso. A lutar contra a crise.
*
Lauro António
Texto lido no Vavadiando de 17 de Dezembro de 2012.

quinta-feira, dezembro 15, 2011

TEATRO: QUEM TEM MEDO DE VIRGINIA WOOLF?

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 QUEM TEM MEDO DE VIRGINIA WOOLF?

NO CINEMA E NO TEATRO

As possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias têm aspectos muito positivos. Mal acabei de ver “Quem tem Medo de Virgínia Woolf’” no Teatro Nacional de D. Maria II, chegado a casa recordei o filme, com o simples gesto de introduzir o DVD no leitor. Algo impensável há anos atrás e que agora permite leituras quase simultâneas, comparações e revisões da matéria dada num ápice. Além de somar às duas horas e meia da peça os 125 minutos do filme. Juro que não foi masoquismo, mas um exercício muito interessante e proveitoso, para perceber estratégias e opções de encenação e realização. E de adaptação.
Claro que é difícil sustentar uma comparação entre a versão portuguesa e a que o filme nos oferece, mas, apesar disso, julgo meritório o esforço de actores e técnicos nacionais. Mas vamos por partes. 
“Who's Afraid of Virginia Woolf?”, a peça de Edward Albee, estreou no Billy Rose Theater, na Broadway, no dia 13 de Outubro de 1962, numa encenação de Alan Schneider, com um elenco constituído por Arthur Hill (George), Uta Hagen (Martha), Melinda Dillon (Honey) e George Grizzard (Nick). Esteve em cena durante dois anos, com 664 representações. Durante esse tempo, o elenco foi substituído. Entraram Henderson Forsythe, Eileen Fulton, Mercedes McCambridge e Elaine Stritch. E como a peça era muito longa, com uma duração que quase atingia as três horas, havia um elenco de substituição para algumas récitas, sobretudo matinées: Kate Reid (Martha), Shepperd Strudwick (George), Avra Petrides (Honey) e Bill Berger (Nick).
Um acontecimento para a época, dado que Albee não era um autor conhecido senão dos circuitos off-Broadway, onde já tinha estreado algumas peças em um acto, nomeadamente “The Zoo Story” (1958) ou “The Sandbox” (1959). Mas “Who's Afraid of Virginia Woolf?”, a princípio recebida com alguma relutância, em função sobretudo da sua linguagem desabrida e pouco habitual em palcos, haveria de recolher o Tony de 1963 para a melhor peça do ano e o Prémio do Círculo de Críticos Teatrais de Nova Iorque. Foi seleccionada para o Pulitzer de 63, mas a Universidade de Columbia, que patrocina o prémio, não permitiu que o mesmo fosse atribuído, com a justificação de que a obra continha alusões sexuais e obscenidades.
Como facilmente se percebe “Who's Afraid of Virginia Woolf?” é uma brincadeira que parte da canção do filme de animação de Walt Disney “The Three Little Pigs”, onde aparece a pergunta: "Who's Afraid of the Big Bad Wolf?". Dado que se trata de um peça que decorre em ambientes universitários, o trocadilho literário impunha-se sintoma de um certo snobismo intelectual.
Albee reúne dois casais na sala de estar da casa de um deles. A peça estrutura-se em três actos que o autor identifica: “Act One - "Fun and Games”, “Act Two - "Walpurgisnacht" e “Act Three - "The Exorcism".
A casa é a de George e Martha, que acabam de regressar de uma festa e que convidam para uma longa noitada um casal recém chegado ao campus universitário. George é professor de História numa universidade americana cujo reitor é o pai da sua mulher Martha. Nick e Honey são os debutantes, sendo que ele vem assegurar uma cadeira de biologia. O álcool já correra na festa de onde vêm, e continuará a circular abundantemente durante o resto da vigília. George e Martha gostam de ter plateia para os seus confrontos verbais. Tudo indica que esta é apenas mais uma das sua típicas discussões, onde se agridem sem pudor, onde deixam extravasar toda a sua frustração e tristeza. George sonha com a cátedra de História, mas não a alcança e Martha humilha-o por isso. Nick e Honey são, aparentemente, os cordeirinhos escolhidos para o sacrifício dessa noite. Eles são os espectadores de um “jeu de massacre” impiedoso, e Nick oferece-se mesmo para concretizar a vingança de Martha.
Mike Nichols passou a cinema esta peça em 1966 e escolheu para o reduzido elenco duas excelentes duplas de actors: Elizabeth Taylor (Martha) e Richard Burton (George), George Segal (Nick) e Sandy Dennis (Honey). A escolha de Burton e Taylor não poderia ter sido melhor, dado que a própria vida privada deste casal poderia ter algo a ver com a de George e Martha. De todas as formas, o que prevalece no filme, que consegue uma extraordinária tensão entre as personagens, servido pelo magnífico preto e branco do notável director de fotografia Haskell Wexler, é a oposição entre um casal carregado de passado, de traumas e frustrações, que explode (regularmente?) como forma de exorcizar esses fantasmas, e um novo casal, sem passado visível e nada assegurando que com muito futuro. O peso da representação dos actores é impressionante, tornado particularmente complexa a relação que se estabelece entre eles. Os três “rounds” deste cruel combate que chega a ser quase de vida ou de morte, não se esgotam numa simples definição. George e Martha coabitam odeiam-se mas também se amam. A sequência final é significativa. Eles estão ali para continuarem, para enlaçarem as mãos e, no próximo fim-de-semana, voltarem a envolver-se numa feroz disputa. Com amor e ódio.
Mike Nichols foi muito inteligente na forma como adaptou a peça ao ecrã, com curtas saídas da sala de estar, nunca permitindo que essas “excursões” cortassem a densidade e a tensão psicológica estabelecida entre as personagens.
Esta nova encenação portuguesa não é deslumbrante, mas cumpre eficazmente o regresso da obra às salas portuguesas. Surge depois das encenações de João Vieira, numa produção Vasco Morgado, em 1971, de Fernanda Lapa, no Teatro de Hoje, em 1990, e de Carlos Otero, no TAS, em 2000.
Com um belíssimo cenário de F. Ribeiro e um excelente desenho de luzes de Nuno Meira, este espectáculo do Teatro Nacional de D. Maria II, último da era Diogo Infante, conta com uma encenação sóbria, mas não muito inspirada, de Ana Luísa Guimarães e um elenco esforçado, com Virgílio Castelo e Maria João Luís, no casal que se auto destrói, e Romeu Costa e Sandra Faleiro nos visitantes inexperientes que assistem a um perigosos jogo de revelações, de mentiras e de ilusões perdidas.
“Se existir uma história daqui a alguns anos e eu fizer parte dela, atrevo-me a dizer que “Quem tem medo de Virginia Woolf?” será a peça que melhor se identifica com o meu nome”. Estas foram palavras proferidas por Edward Albee, no programa do espectáculo apresentado em 1996, em Londres. Ela é indiscutivelmente uma das grandes peças de teatro da dramaturgia do século XX. Só por isso valeu a pena a sua releitura pelo TNDM II.

QUEM TEM MEDO DE VIRGINIA WOOLF?
Título original: Who's Afraid of Virginia Woolf?
Realização: Mike Nichols (EUA, 1966); Argumento: Ernest Lehman, segundo peça teatral de Edward Albee; Produção: Ernest Lehman; Música: Alex North; Fotografia (p/b): Haskell Wexler; Montagem: Sam O'Steen; Design de produção: Richard Sylbert; Decoração: George James Hopkins; Guarda-roupa: Irene Sharaff; Maquilhagem: Gordon Bau, Ron Berkeley, Sydney Guilaroff, Jean Burt Reilly; Assistentes de realização: Bud Grace; Departamento de arte: Craig Binkley, Harold Michelson, Joseph Musso; Som: M.A. Merrick; Direcção de Produção: Richard Barr, Doane Harrison, Clinton Wilder; Genérico: Wayne Fitzgerald; Coreógrafo: Herbert Ross; Companhias de produção: Warner Bros. Pictures, Chenault Productions; Intérpretes: Elizabeth Taylor (Martha), Richard Burton (George), George Segal (Nick), Sandy Dennis (Honey), Agnes Flanaganm Frank Flanagan, etc. Duração: 131 minutos; Distribuição em Portugal: Astória Filmes; Classificação etária: M/ 17 anos; Estreia em Portugal: 1967.

domingo, dezembro 11, 2011

CINEMA: DRIVE


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 DRIVE – RISCO DUPLO

“Drive – Risco Duplo”, de Nicolas Winding Refn, é um filme interessante que não merecia o áspero tratamento que lhe foi reservado por boa parte da crítica portuguesa, que assim desalinhou do coro de enfáticos elogios, algo exagerados também, de muita da crítica internacional, nomeadamente a norte-americana e do júri do festival de Cannes que consagrou Nicolas Winding Refn como o melhor realizador da edição deste ano.
Diga-se que “Drive” começa por ser desconcertante, a sua principal virtude. Anunciado como filme de acção, acaba por se assemelhar no seu ritmo a uma obra do dinamarquês Dreyer. Na verdade Nicolas Winding Refn é dinamarquês por nascimento, e aí estudou, muito embora viva nos EUA desde muito novo. A sua filmografia, como argumentista e realizador, é toda ela norte-americana e com predominância para temas de acção, violência e fantástico, sem nada de muito especialmente chamativo até ao presente. Dir-se-ia que “Drive” é o seu filme de arranque de uma obra pessoal, ainda que inscrita num género que conhece bem.
Com argumento solidamente escrito por Hossein Amini, segundo romance de James Sallis, o filme tem como personagem central uma figura sem nome, que se identifica como o “driver”, um homem de sete ofícios, andando todos eles à volta do carro. Ele é mecânico de automóveis, e parece que muito bom no que faz, é piloto de corridas e “duplo” em filmes de acção, e ainda põe ao serviço de gangs de assaltantes a sua perícia de condução. Ryan Gosling, a coqueluche do momento, é o actor escolhido para dar corpo a este personagem solitário e singular no mundo do gangsterismo. Um dia encontra Irene (Carey Mulligan), sua vizinha do lado, casada, com o marido na prisão, e um miúdo simpático para criar, e acontece o inevitável. 
Enfim, neste filme nada é o inevitável, o que marca pontos a seu favor. Há sempre uma nuance a considerar. O “driver” apaixona-se visivelmente, Irene também, mas quando o marido desta sai da prisão, é o “driver” que o vai tentar salvar da perigosa situação em que se encontra. A paixão, não sendo totalmente platónica, recua para segundo plano. Nada de mulheres fatais, nem Carey Mulligan o permitiria. Neste filme tudo parece andar ao ralenti, tudo muito contido e austero, rostos impassíveis e emoções recolhidas, até que, subitamente, se rasga esta ténue parede de uma (quase) indiferença e explode uma violência de uma brutalidade raras vezes vista. Mas mesmo esta violência é invulgarmente descrita: o “driver” entra num bar, povoado por prostitutas adormecidas, dirige-se a uma mesa, e de jacto, dá uma martelada brutal na mão do proxeneta. O que se vê é apenas um gesto, rápido, brutal, preciso, impiedoso. Depois coloca-lhe uma bala na testa e aponta o martelo, pronto a desferir o golpe final, se o visado não dizer o que ele quer ouvir.
Passada esta cena, aqui referida como um exemplo entre quatro ou cinco outras possíveis de citar, tudo continua como num drama intimista de Dreyer (sem a qualidade deste último, acrescente-se, para sossego dos desprevenidos). Passado este vórtice de violência, o “driver” volta à inexpressividade e sonolência habituais, caminha lento e compassado, fala pouco e olha lentamente à volta. Ele sabe-se o “condutor” eficiente e eficaz que ninguém irá deter. Pelo menos, até onde o filme caminhar.
A realização afasta-se completamente da esquizofrenia nervosa de um “Táxi Driver”, para apostar no seu oposto. Este é um filme de gangsters zen, em que se houvesse alguma cena de amor seria tântrica. Mas é interessante de acompanhar, por vezes irritante no seu esteticismo sofisticado, mas ainda assim curioso pela sua “diferença”. Bons actores (Ryan Gosling, Carey Mulligan, Albert Brooks, Ron Perlman, sobretudo estes), uma boa descrição de uma Los Angeles inóspita, e uma banda sonora que se adapta bem aos propósitos são motivos suficientes para alimentarem o resultado final. Acredito que o título vai figurar nalgumas categorias das nomeações para os Oscars que se adivinham.

DRIVE – RISCO DUPLO
Título original: Drive
Realização: Nicolas Winding Refn (EUA, 2011); Argumento: Hossein Amini, segundo romance de James Sallis; Produção: Frank Capra III, Garrick Dion, David Lancaster, Bill Lischak, Michel Litvak, Linda McDonough, John Palermo, Marc Platt, Gigi Pritzker, Chris Ranta, Adam Siegel, James Smith, Jeffrey Stott, Gary Michael Walters; Música: Cliff Martinez; Fotografia (cor): Newton Thomas Sigel; Montagem: Matthew Newman; Casting: Mindy Marin; Design de produção: Beth Mickle; Direcção artística: Christopher Tandon; Decoração: Lisa K. Sessions; Guarda-roupa: Erin Benach; Maquilhagem: Medusah, Gerald Quist; Direcção de Produção: Jim Behnke, Alice S. Kim; Assistentes de realização: Dieter 'Dietman' Busch, Frank Capra III, Mark Carter, Ronan O'Connor, Darrin Prescott; Departamento de arte: Denis Cordova, Joshua Dobkin, Megan Greydanus; Som: Lon Bender, Victor Ray Ennis; Efeitos especiais: James Lorimer; Efeitos visuais: Jerry Spivack; Companhias de produção: Bold Films, Odd Lot Entertainment, Marc Platt Productions, Motel Movies, Drive Film Holdings, Seed Productions; Intérpretes: Ryan Gosling (Driver), Carey Mulligan (Irene), Bryan Cranston (Shannon), Albert Brooks (Bernie Rose), Oscar Isaac (Standard), Christina Hendricks (Blanche), Ron Perlman (Nino), Kaden Leos (Benicio), Jeff Wolfe, James Biberi, Russ Tamblyn, Joe Bucaro III, Tiara , Tim Trella, Jim Hart, Tina Huang, Andy San Dimas, Steve Knoll, etc. Duração: 100 minutos; Distribuição em Portugal: PRIS Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 8 de Dezembro de 2011. 

sábado, dezembro 10, 2011

FEST'A FILM - MONTPELLIER, 2011

Durante a IV edição do Fest'A Film, Festival International du Film Lusophone et Francophone de Montpellier, entre 1 e 4 de Dezembro de 2011, de cima para baixo, da esquerda para a direita: Mec, Sala Rabelais, LA, Katia Martin Maresco, responsável pelos festivais "Parole de Femmes" e "Très Courtes", Tito Livio Santos Mota, director da Casa Amadis, organizadora do certame; Anna da Palma, realizadora portuguesa, radicada em França; Nádia Lopes Pierson, franco-caboverdiana, colaboradora do festival "Très Courtes"; Charles Poupot, realizador, francês; Carlos Pereira, director do "LusoJornal"; Ferdinand Fortes, director do Fest'A Film; Florent Robin, dirigente da Casa Amadis, e Yves Jeuland, realizador francês.   
Foram os organizadores do Festival e os membros do Júri Internacional que concedeu os seguintes prémios:
Grande Prémio do Festival (ex-eaquo): 
"Chateau Mouton Rothschild, de Louis Albert (França) 
e "Directo", de Luis Alvarães e Luís Mário Lopes (Portugal)
Melhor Animação: "A Ilha", de Alê Camargo (Brasil);
Melhor Argumento: "Grenouille d'Hiver", de Slony Sow (Frnaça);
Melhor Montagem: "Deus não Quis", de António Ferreira (Portugal)
Prémio Especial do Júri: "Dina", de Nickey Fonseca (Moçambique).


domingo, novembro 27, 2011

O NOSSO LUXO



PATRIMÓNIO IMATERIAL 
DA HUMANIDADE

O Fado é, a partir de hoje, por decreto régio da UNESCO, “Património Imaterial da Humanidade”. Na verdade, há muito que o era. Desde os tempos em que Amália o levou pelo mundo fora a galvanizar plateias de todas as línguas e credos.
Mas ainda bem que uma instância superior o declara. Para nós, portugueses, muitas vezes só o que vem de fora é que é bom. Para muitos, o fado é agora uma canção importante, “reconhecida” lá fora. Para mim, é-o desde criança, e sempre fui avesso a ver colar ao fado a chancela de “fascista”, de choradinho, de canção de putas ou de marialvas, de aristocratas decadentes, ou do que quer que seja. O fado, como qualquer forma de expressão artística, pode ser “aproveitado” por todos, mas não deixa de ser o que é, e pode ser tudo. Agora é “Património Imaterial da Humanidade”.
Dá que pensar.
Num país onde tudo o que cheira a arte e cultura é visto pelos poderes constituídos (infelizmente por quase todos) como algo de menor, algo de acessório, o que se corta primeiro quando há a cortar nalguma coisa, não deixa de ser sintomático que seja precisamente aí que somos grandes.
Em economia e finanças, somos “lixo”, em cultura somos “Património da Humanidade”, somos Nobel, somos tudo o mais. Até na arte do pontapé na bola, temos o melhor treinador do mundo e os melhores jogadores do mundo. Somos um pequeno país de poucos habitantes que desafia os colossos em todos os campos do saber e da sensibilidade. Temos os maiores entre os maiores desde Camões. Mas somos tratados nesse campo, cá dentro, como “lixo”, quando “lixo” são realmente aqueles que não nos sabem governar, nem politica, nem economicamente. “Lixo” não são aqueles que pagam impostos, trabalham, dão o melhor de si pelo país; “lixo” não são os que cantam, pintam, escrevem, compõem, filmam, encenam, interpretam, erguem monumentos, dançam, por vezes com a bola nos pés… Não, esses não são “lixo”.
Nestes campos, o mundo olha-nos com respeito e admiração e muitas vezes dizem que somos tão bons como os melhores.
Mas nestas áreas há sempre uns sabichões da política e da gestão, uns banqueiros e uns economistas que estão sempre a desacreditar o nosso talento, a chamar calaceiros e subsídio- dependentes, a insultar e amesquinhar quem oferece o suor e o sangue do seu talento.
Afinal são esses bem engravatados “senhores”, quase todos, com raras excepções, o “lixo” que nos afunda. Não os artistas. Esses são os que nos salvam da agonia provocada pela corrupção e a ganância. Quem traz dividendos ao país é a inteligência dos cientistas e a sensibilidade dos artistas. É nesses que devemos apostar.
Não é ai que está o lixo. Ai está o luxo. O nosso luxo.

PS. A atribuição da patente “Património Imaterial da Humanidade” acarreta direitos e deveres. Tudo bem. Esperemos, porém, que a ASAE da UNESCO não invente regras para domesticar o fado, não permitindo, por exemplo, que este seja cantado em tabernas com vinho tinto e chouriço que não tenha o controle de qualidade da EU. Ou que as cantadeiras tenham o registo criminal limpo a as licenças em dia.

quarta-feira, novembro 23, 2011

MOMENTO DE REFLEXÃO

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 MOMENTO DE REFLEXÃO 
EM VÉSPERAS DE…

Greve ou não greve? Ok, é um problema interessante e a merecer ponderação. Na verdade, a situação de indignação é geral, enfim, digamos que percentualmente muito grande (dado que para quem tem MUITO dinheiro não há indignação que se note, as viagens mais exóticas, os hotéis de muitas estrelas, os restaurantes mais afamados, os carros de luxo, as lojas de marca das principais avenidas, nada disso se queixa da crise, e pour cause).
Mas estamos a assistir a um fenómeno que sociologicamente é muito curioso. Estamos a assistir à destruição, sistemática e programada, da classe média, sobretudo da media baixa e média. A classe que normalmente não faz revoluções, a classe que é chamada de “maioria silenciosa”, aquela que historicamente apoiou a direita, a sustenta em termos eleitorais, é agora chicoteada impiedosamente pela direita, um pouco por todo o lado, e of course, também em Portugal (e de que maneira!).
Já se saber que as classes menos desfavorecidas estão mal. Obviamente que não se toca no ordenado mínimo nacional, mas também não se prejudica quem já vive de uma economia paralela (muito pelo contrário, apoia-se ainda que indirectamente, pois retirando-se poder de compra à classe média, esta vai favorecer o pequeno e o grande negócio clandestino, que é mais barato). Também não se toca nas grandes fortunas (a menos que se ache que “grande fortuna” é aquela de quem ganhe mais de 1.500 euros por mês).
Mas todas as medidas tomadas em nome da troica dirigem-se, quase exclusivamente, ao poder de compra de quem trabalha. Por isso a indignação da classe média é muita. Por isso não me espanta que a “maioria silenciosa” o deixe de ser. O que pode tornar muito perigosa esta bomba relógio que a troica e seus apoiantes andam por aí a municiar.
Apareça por aí um fala-barato hábil nas artes da retórica a congregar vontades ou um chico-esperto da manipulação das massas e verão no que tudo isto pode dar. Basta ler a História do passado, que está cheia de lições.
De resto, a Europa é bom terreno para fazer germinar este tipo de sementeira. Basta esperar que a terra esteja ávida de ser regada e lançar alguns jactos de loucura bem condimentada. Depois digam que não foram avisados.
Só há uma verdade insofismável desde sempre: os mesmos de sempre nunca são incomodados. Os MUITO ricos continuam a ser muito ricos. Ou então passam outros a ser MUITO ricos. Mas uns e outros não distribuem a riqueza.

domingo, novembro 20, 2011

CINEMA: AS AVENTURAS DE TINTIN

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 AS AVENTURAS DE TINTIN 
- O SEGREDO DO LICORNE
Era um projecto antigo que as novas tecnologias permitiram concretizar. Olhando para a carreira de Steven Spielberg nada o faz estranhar. Tintin integra-se na perfeição no seu universo de aventura, fantasia e de uma certa nostalgia do olhar inocente da criança. Posto isto quem diz que estas “Aventuras de Tintin” sabem a “Indiana Jones” engana-se redondamente. O “Indiana Jones” é que sempre soube a Tintin (além de aos “serials” dos anos 20). De uma forma ou de outra, para o caso tanto faz: Spielberg e Hergé fazem uma dupla perfeita e estas novas aventuras são o resultado feliz desse casamento.
Raras vezes o cinema conseguiu captar tão bem o espírito de uma banda desenhada. Tintin nunca foi tão retintamente Tintin, em imagem real ou desenho animado, como o vimos agora pela mão de Spielberg. Não só as personagens são verosímeis, como os cenários são magníficos, e as situações se adaptam bem, mesmo com os floreados à Piratas das Caraíbas e tudo.
A sequência de animação inicial que funciona como genérico, é brilhante e deixa água na boca para uma adaptação de Tintin a “estes” desenhos animados. Seria uma boa política, agora que já se sabe que o Tintin meio actor/meio desenho veio para ficar e já se anunciam futuras continuações.
De resto, não vale a pena dizer muito mais. Ao contrário do que se poderia temer, “The Adventures of Tintin” é um belíssimo filme de aventuras e entretenimento que nos restitui em toda a sua fragrância a essência de Tintin. Para quem gosta de Hergé (e eu deleito-me com Tintin há muito!) essa é uma boa notícia. 
Ainda por cima as 3D funcionam bem aqui, sem saturar os espectadores de efeitos desnecessários. 

AS AVENTURAS DE TINTIN - O SEGREDO DO LICORNE
Título original: The Adventures of Tintin
Realização: Steven Spielberg (EUA, Nova Zelândia, 2011); Argumento: Steven Moffat, Edgar Wright, Joe Cornish, segundo obra de Hergé (banda desenhada "The Adventures of Tintin"); Produção: Peter Jackson, Ken Kamins, Kathleen Kennedy, Jason D. McGatlin, Nick Rodwell, Stephane Sperry, Steven Spielberg; Música: John Williams; Fotografia (cor): Janusz Kaminski; Montagem: Michael Kahn; Casting: Scot Boland, Victoria Burrows, Jina Jay; Direcção artística: Andrew L. Jones, Jeff Wisniewski; Guarda-roupa: Lesley Burkes-Harding; Maquilhagem: Catherine Maguire, Angela Mooar, Michele Perry, Tegan Taylor; Direcção de Produção: Ralph Bertelle, Candice D. Campos, Georgia Kacandes, Frank Macfarlane, Brigitte Yorke; Assistentes de realização: Jenny Nolan, Adam Somner, Ian Stone, Liz Tan; Departamento de arte: Greg Bartkus, Jackson Bishop, David Moreau, Jim Wallis; Som: Dave Whitehead; Efeitos especiais: Mingzhi Lin; Efeitos visuais: Alberto Abril, Brittany Bell, Andrew Calder, Jong Jin Choi, Nick Connor, Mario de Dios, Jake Lee, Jessica Ponte, Jarom Sidwell, Mark Stanger, Lindsay Thompson; Companhias de produção: Columbia Pictures, Paramount Pictures, Amblin Entertainment, WingNut Films, The Kennedy/Marshall Company, Hemisphere Media Capital, Nickelodeon Movies; Intérpretes: Jamie Bell (Tintin), Daniel Craig (Ivanovich Sakharine), Simon Pegg (Inspector Thompson), Cary Elwes (Piloto), Andy Serkis (Capitão Haddock), Toby Jones (Silk), Nick Frost (Thomson), Sebastian Roché (Pedro), Mackenzie Crook, Tony Curran, Daniel Mays, Phillip Rhys, Gad Elmaleh, Mark Ivanir, Ron Bottitta, Kim Stengel (Bianca Castafiore), Sonje Fortag, Jacquie Barnbrook, Enn Reitel, Ian Bonar, Joe Starr, Mohamed Ibrahim Elkest, Sana Etoile, etc. Duração: 107 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 27 de Outubro de 2011.

sábado, novembro 05, 2011

JÚRI NO FEST'A FILM, Montpellier, França


Altura ainda para apresentar algumas obras minhas, entre as quais "Manhã Submersa". 
Depois conto como foi.

sexta-feira, novembro 04, 2011

COMO DISPERSAR MANIFESTANTES

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A ideia vem de 1908, publicada no Almanaque Bertrand:

quarta-feira, novembro 02, 2011

“MANHÃ SUBMERSA” NO BARBICAN, EM LONDRES E GLASGOW

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“MANHÃ SUBMERSA”
NO CENTRO DE ARTES BARBICAN,
EM LONDRES
"Os  Lobos", de Rino Lupo, de 1923, será projectado no próximo dia 13 de  Novembro, a abrir o II Festival de Cinema Português, no Reino Unido, que  decorrerá de 10 a 30 de Novembro. Baseada numa peça de Francisco Lage e João Correia de Oliveira, a película foi recentemente restaurada após a descoberta de uma cópia em França e terá o acompanhamento musical original, composto por Luís Soldado, e executada pelo Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, dirigido por Jorge Peixinho.
Este ano, o festival, que decorre em três salas de Londres, tem por tema a relação entre o cinema e a literatura portuguesa. Nele está prevista a ante-estreia britânica de "Mistérios de Lisboa", de Raul Ruiz, adaptação do romance de Camilo Castelo Branco.
Do cartaz fazem parte as longas-metragens "Manhã Submersa", adaptação  por Lauro António do romance de Vergílio Ferreira, "O Crime do Padre Amaro",  do mexicano Carlos Carrera segundo livro de Eça de Queirós, "Filme  do Desassossego", realizado por João Botelho e inspirado nos escritos do  heterónimo pessoano Bernardo Soares, “Uma Abelha na Chuva", dirigido por Fernando Lopes e adaptado do romance  homónimo de Carlos de Oliveira, "Ensaio sobre a Cegueira", adaptação do  livro de José Saramago e dirigido por Fernando Meirelles, e "A Costa dos  Murmúrios", filme de Margarida Cardoso baseado no romance de Lídia Jorge. 
Uma sessão de curtas-metragens inclui trabalhos de Inês Portugal, Jacinto  Lucas Pires, Zepe, Gabriel Abrantes, Miguel Gomes, Joana Toste e Gonçalo  Galvão Teles.  
 e também na Universidade de Glasgow