quinta-feira, janeiro 23, 2020

TEATRO: MÁRIO




 MÁRIO: “EU QUERO SER BAILARINA”


"Mário", peça de teatro que fez furor em 2019 e regressou ao palco do Cinema São Jorge neste Janeiro de 2020, fala de um rapaz que desde novo queria ser “bailarina”. Escrita e encenada por Fernando Heitor, baseia-se em factos reais, retirados de um texto de São José Almeida (O Público, 17 de Julho de 2007), onde se dava conta das aventuras, e sobretudo desventras, de Valentim de Barros, nascido em 1916, e que muito novo começou a aprender dança, tendo fugido de casa da família na Cova do Vapor, na outra banda, para pernoitar em Lisboa, ao lado de prostitutas e marinheiros. Desta história “real”, Fernando Heitor voou para a de Mário, que passa de mão em mão, de padres para coronéis, de marinheiros para senhores bem instalados na sociedade, viaja por Paris, Argentina, Brasil, até regressar a Portugal, em pleno Estado Novo. Vestido de mulher, com gostava de andar, é preso, internado num hospício, tratado da sua “doença” com choques elétricos. O resto adivinha-se na peça…
Obra para um actor só, Flávio Gil tem uma interpretação brutal neste monólogo intenso e poético, erguendo uma personagem difícil de esquecer. O espectáculo tem pouco mais do que uma hora de duração, mas o esforço exigido a Flávio Gil é impressionante, pelo desdobrar de registos, pela dureza física, pela elegância e ductilidade dos movimentos. A peça é muito bem escrita, com uma linguagem vigorosa por vezes, mas sempre de um intimismo dilacerante, a  encenação é discreta, sem grandes artifícios, para lá da presença do actor e de meia dúzia de adereços que este vai vestindo, sugerindo situações diversas. O palco apresenta-se despido de cenários, e é neste ambiente minimalista que explode o drama e o talento de um intérprete que desde já se coloca entre os maiores portugueses da actualidade.
Aproximando-se a época dos prémios relativos a 2019, “Mário” estará certamente entre os Melhores Espectáculos e Flávio Gil entre os Melhores Actores.  

sábado, janeiro 18, 2020

AUTO DE FLORIPES (1959)




AUTO DE FLORIPES (1959)


Hoje, numa das salas da Cinemateca Portuguesa, foi projectado, em cópia nova, restaurada, “Auto de Floripes”, um filme rodado em 1959, estreado só alguns anos depois, e por fases. Esta sessão serviu ainda para dar início às celebrações dos 75 anos do Cine Clube do Porto, entidade que então produzira e realizara este documentário que, ainda hoje, se mostra um bom exemplo de cinema etnográfico. É sabido que os cine clubes portugueses tiveram um importante papel durante toda a época do Estado Novo, promovendo a cultura cinematográfica, difundindo obras essenciais, estimulando o associativismo, mantendo vivo um espírito critico contra a ditadura. Nesse particular, o Cine Clube do Porto, cremos que o mais antigo ainda em funcionamento no nosso país (fundado em 1945), manteve uma actividade intensa e invulgar a vários níveis. É de toda a justiça salientar o trabalho e a inteligência de um dos seus sócios fundadores, Henrique Alves Costa, por sinal o grande impulsionador deste projecto cinematográfico que agora regressa ao convívio com o público (anuncia-se o lançamento em DVD), e que, na altura da sua estreia, surgiu sem ficha técnica, afirmando-se como obra colectiva e quase anónima.
“Auto de Floripes” oferece um retrato do Lugar das Neves, “uma convergência de três freguesias pertencentes ao concelho de Viana do Castelo: Barroselas, Mujães e Vila de Punhe”, onde, a 5 de Agosto de cada ano, se realiza uma representação popular, integrada no programa das Festas da Senhora das Neves, que é “um drama de cariz guerreiro que se insere no “Ciclo Carolíngio”, por se inspirar na segunda parte do livro “História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França”. De um lado os turcos, do outro os cristãos, comandados por Carlos Magno, embrenhando-se em lutas que passam pelo teatro, a dança, o canto, a pantomima, até se chegar à conversão dos infiéis e à grande cegarrega final, com Ferrabrás catolicizado e a bela Floripes, sua irmã, bem encaminhada. 
De um ponto de vista etnográfico é um documento inestimável, de uma qualidade cinematográfica muito significativa. Atenção, portanto, ao lançamento da obra em DVD. Será ainda muito interessante analisar, lado a lado, este Auto de Floripes e o “Acto da Primavera”, de Manoel de Oliveira, dada as relações obvias que se estabelecem entre ambos, e ainda os laços de amizade que uniam Henrique Alves Costa, Manoel de Oliveira e José Régio.  
Curiosamente, já vi também uma belíssima representação popular de “O Auto de Floripes na ilha do Príncipe” (há muitos anos, nos jardins da Fundação Gulbenkian, com uma embaixada teatral de São Tomé e Príncipe), obedecendo mais ou menos às mesmas características, com lutas entre cristão e mouros, certamente uma derivação africana das representações minhotas. Em superprodução! 
Com periodicidade anual, a 15 de Agosto, este Auto tem por palco a cidade de Santo António, na ilha do Príncipe, sendo o prato forte das festas populares de S. Lourenço, as mais importantes da ilha. Desta representação existe um documentário, “Floripes, o Auto de Floripes na Ilha do Príncipe” da autoria de Afonso Alves (1998).
Em 2007, o realizador Miguel Gonçalves Mendes estreia "Floripes", baseado na lenda de uma moura encantada que deambula à noite pela vila de Olhão, seduzindo os homens. Nada a ver?