COSMOPOLIS
Raras vezes se encontra uma tão grande fidelidade
de um filme a uma obra literária. Fidelidade à história, personagens,
situações, mas, sobretudo, fidelidade ao estilo e ao sentido da própria obra.
Isso acontece com “Cosmopolis”, de David Cronenberg, adaptado de um romance de
Don DeLillo. Poderão alguns dizer que a versão de Cronenberg é, por isso mesmo,
demasiado literária e palavrosa. Não é esse o meu entendimento. Quanto muito,
poderei admitir ser o romance de Delillo muito cinematográfico, com excelentes
diálogos que parecem escritos para cinema (Cronenberg afirmou que adaptou o
romance em pouco mais de uma semana, o que se entende). Depois, há um outro
aspecto que marca de forma absoluta esta ligação: a obra de DeLillo vai
perfeitamente ao encontro de algumas das obsessões maiores de Cronenberg,
sobretudo na forma como integra corpos humanos no interior de um universo
altamente tecnológico, no que se aproxima muito de um dos títulos mais
significativos da carreira do cineasta, “Crash”. Obviamente que “Crash” era
mais violento na forma como o metal dos carros e a carne das personagens se
interpenetravam. “Cosmopolis” vem directamente desse universo, mas explora
outros terrenos, mais filosóficos, onde a palavra adquire um maior significado.
Eric Packer (Robert Pattinson, que vem de um mundo
de vampiros adolescentes para continuar num mundo de vampiros adolescentes, mas
este muito mais inquietante, pois que real) é um jovem multimilionário que não
sabe a fortuna que detém, ganha sobretudo em especulação bolsista. Num dia que
começa como todos os outros, sai do seu luxuoso apartamento, em Manhattan, e
propõe-se atravessar Nova Iorque, na sua limusina de sete metros, para ir
cortar o cabelo a um modesto barbeiro de bairro que lhe recorda a juventude.
Mas em Nova Iorque o trânsito não circula. O presidente dos EUA lembrou-se de
visitar Manhattan, morreu um célebre músico e o enterro percorre as avenidas em
homenagem, o director do FMI foi assassinado em directo quando dava uma
entrevista, há manifestações de anarquistas em tudo o que é rua e avenida, e
ameaças por todo o lado, que os guarda-costas, que caminham ao lado do
majestoso veiculo, vão reportando minuto a minuto. De resto, Eric Packer faz da
limusina escritório para seguir e dar ordens sobre os movimentos da bolsa em
todo o mundo, quarto para repouso, apartamento para encontros sexuais, clínica
privada, onde recebe a visita do seu médico que o observa diariamente, local de
encontro, casa de banho… Por ali passam colaboradores, amantes, informadores,
médico, enquanto lhe basta descer a janela do blindado para seguir as
instruções dos seus “body guards”. Numa das cenas mais ambíguas e perturbantes,
o médico examina-o através de um toque rectal para descobrir uma “próstata
assimétrica”, enquanto Eric fala com uma colaboradora que mantém entre as
pernas uma garrafa de plástico que a excita visivelmente. Excitação que se
estende aos dois, aliás.
Mas, por vezes, Eric sai da limusina para entrar no
táxi que passa ao lado, onde vai a sua recente mulher, Elise Shifrin (Sarah
Gadon), para tomar o pequeno almoço com ela, para a encontrar no interior de
uma livraria, para se deslocar ao barbeiro… A limusina é o seu habitat natural
naquele dia, e poderá ser igualmente o carro funerário ou o escritório onde se afunda
em minutos uma das maiores fortunas da América. Tudo porque o iene continua a
subir no Japão e ele continua a investir, seguindo a sua teoria que, afinal,
não compreendia as assimetrias e os desequilíbrios da natureza. Eric é, pois,
um símbolo de um capitalismo a entrar no impasse e à beira da auto-destruição.
O confronto final com um antigo colaborador, Benno Levin (Paul Giamatti), que o
quer assassinar, é disso bem um reflexo. “Cosmopolis” afirma-se como o filme do
colapso de uma sociedade tal como hoje a conhecemos e que não traz a felicidade
ao Homem, por muito que faça felizes alguns homens, com miragens de um poder
irrealista e meramente virtual. A limusina é um casulo insonorizado, ao lado do
qual passam os homens e as mulheres “normais”, resignados ou enraivecidos, que
prefigura a falta de contacto entre realidades bem distintas.
O tom algo nervoso e elíptico da narrativa de
DeLillo é muito bem adaptado à narrativa cinematográfica, fragmentada e
caótica, onde o dinheiro deixa de ter uma história linear e onde a ultra
avançada tecnologia penetra no corpo humano, sem no entanto o servir
harmoniosamente. De onde resulta uma explanação aparentemente desordenada e
actos gratuitos que, todavia, são parte integrante do relato estilhaçado de uma
sociedade em crise, que é esta nossa actual. A fotografia de Peter Suschitzky é
notável a servir os propósitos, bem como a partitura musical de Howard Shore e
a nervótica montagem de Ronald Sanders. A interpretação é toda ela excelente,
ainda que pessoalmente mantenha muitas reservas quanto ao talento de Robert
Pattinson. Mas, neste caso, parece bem integrado e até o seu passado vampiresco
se adapta bem a esta nova personagem de um yuppie à beira do colapso, por falta
de hemoglobina financeira.
Julgamos que, no futuro, “Cosmopolis” será um bom
tema de partida para a análise dos tempos conturbados por que actualmente
passamos. David Cronenberg prossegue a sua carreira de observador crítico de
uma sociedade com ameaças virais nem sempre bem visíveis, mas que o cineasta
estripa com inteligência e lucidez.
COSMOPOLIS
Título
original: Cosmopolis
Realização: David Cronenberg (França,
Canadá, Portugal, Itália, 2012); Argumento: David Cronenberg, segundo romance
homónimo de Don DeLillo; Produção: Paulo Branco, Martin Katz, Edouard
Carmignac, Walter Gasparovic, Gregoire Melin, Renee Tab, Joseph Boccia; Música:
Howard Shore; Fotografia (cor): Peter Suschitzky; Montagem: Ronald Sanders;
Casting: Deirdre Bowen; Design de produção: Arvinder Grewal; Guarda-roupa:
Denise Cronenberg; Maquilhagem: Seth Rossman; Direcção de Produção: Joseph
Boccia, Anne Mattatia, Robin M. Reelis, Lori A. Waters; Assistentes de
realização: Jack Boem, Tim Cushen, Jonathan Gajewski, Justin Gajewski, Walter
Gasparovic, Gerrod Shully; Departamento de arte: Ron Hewitt, Marc
Kuitenbrouwer, Matt Middleton, Brad Milburn; Som: Jonathan Acbard, Rob Bertola,
Michael O'Farrell; Efeitos especiais: Warren Appleby, Daniel White; Efeitos
visuais: Devin Dawkins, Michael DiCarlo, Naomi Foakes, Matthew Lajoie, Wojciech
Zielinski; Companhias de produção: Alfama Films, Prospero Pictures, Kinology,
France 2 Cinéma, Talandracas, Téléfilm Canada, Leopardo Filmes, Canal+, Rai
Cinema, Radiotelevisão Portuguesa; Intérpretes:
Robert Pattinson (Eric Packer), Jay Baruchel (Shiner), Samantha Morton (Vija
Kinsky), Paul Giamatti (Benno Levin), Kevin Durand (Torval), Juliette Binoche
(Didi Fancher), Sarah Gadon (Elise Shifrin), Emily Hampshire (Jane Melman),
Mathieu Amalric (Andre Petrescu), Patricia McKenzie (Kendra Hays), Abdul Ayoola
(Ibrahim Hamadou), Anna Hardwick, K'Naan, George Touliatos, Saad Siddiqui,
Philip Nozuka, Jadyn Wong, Zeljko Kecojevic, Maria Juan Garcias, Milton Barnes,
Gouchy Boy, Paulette Sinclair, etc. Duração:
108 minutos; Distribuição em Portugal: Leopardo Filmes; Classificação etária:
M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 31 de Maio de 2012.