terça-feira, junho 27, 2006

CÁSSIA FERNANDES
poemas e fotos de uma amiga brasileira



(Dos dias pressagos de 2004)

Sonho, horóscopo ou mosaico

Saio de casa
porque não me suporto.
Mas eis quem encontro
ali mesmo
na porta:
eu própria,
sentada o dia todo
com os olhos astutos
de um cão de guarda.

Eu me mostro os dentes.
Eu rosno.
Não há ninguém para puxar a coleira.
Saio em fuga então.
E o cão me segue,
o cão
corre na velocidade de um cavalo.
Dentro, sinto seu galope.
Eu me machuco
com as próprias patas.
Sou metamorfose.
Sou um sagitário.

Me pisoteio.
Aponto a flecha para o meu próprio seio.
E como Rubem Fonseca
em seu “Vastas emoções
e pensamentos imperfeitos”,
os sonhos são filmes mal montados.
Não há continuísta
ou enredo.

E Platão teria dito que a vida
é cópia mal feita da verdade.
A vida é sonho, digo.
Corro e me dilacero.
Vou a Paris, mas me levo na mala.
E sou enterrada viva nos seus castelos.

Vejo minha imagem refletida
na última gota do cálice.
Não me quero.
Nego.
Tento apagar o reflexo no espelho.
Mas o espelho não está no teto.
É dentro que ele está.
E dentro é treva.
Até no inferno neva.

Não, não é o corpo
que é poço
ou calabouço.
Estamos condenados.
Não sou Jesus, não sou a cruz, eu sou o prego!
Pai, por que me abandonaste
a enferrujar
pelos séculos e séculos!?



Ando bem assombrada por esses dias,
vendo fantasmas e pessoas vivas
onde outros
vêem apenas sombras do mal
e cortinas de voal.


Mas meus ectoplasmas
não se escondem
sob lençóis alvejados
nem arrastam correntes
de calabouços passados,
não gemem nem espiam,
nem expiam.


Não escrevem frases
com copos que se movem.
Não me puxam pelo pé.
Embora batam portas
e tirem coisas dos lugares,
não vêm rezar à minha fé.


Não são montagens
de fotografia.
Não nascem do fotoshop
e de outras valentias.
Não vieram
num cavalo
kardecista,
reivindicar mais outra vida.


Ando bem assombrada
porque tenho visto irrealidades,
respirado reminiscências,
tenho aberto tanto os olhos,
e-xa-ge-ra-da-men-te.

como se eles passassem
por revista.
E foi assim que me vi
vendo Cora
Coralina
vivendo na mesma casa
em que vivia.


Ela nos recebeu no umbral
e nos assistiu do quintal.

(Lampião de gás
da cidade de Goiás,
Lamparina
que nasceu em Pontalina)

Obs: Essa foto foi tirada na casa de Cora, durante recital de Marcos Caiado.
Eu o acompanhava, lendo poemas da menina feia da casa da ponte.
Ela fica realmente à porta e não é montagem, nem aparição.



Ando bem assombrada por esses dias,
vendo fantasmas e pessoas vivas
onde outros
vêem apenas sombras do mal
e cortinas de voal.
Mas meus ectoplasmas
não se escondem
sob lençóis alvejados
nem arrastam correntes
de calabouços passados,
não gemem nem espiam,
nem expiam.
Não escrevem frases
com copos que se movem.
Não me puxam pelo pé.
Embora batam portas
e tirem coisas dos lugares,
não vêm rezar à minha fé.
Nasci com oitenta e cinco anos
e num momento assim
em que o sol se desmancha,
um livro apeou-me do sono
desatou-me das tranças.
Decidiu
que era boa a hora
de não ser senil.

Eu vim rejuvenescendo.
Eu fui brotando.

Então eu tinha uma memória prodigiosa
uma fantasia exuberante
como a mata atlântica,
mas não arriscava nenhuma história,
e era torta e rancorosa,
como uma planta
de savanas africanas.

Árvore de beira-de-estrada,
árvore empoeirada...
Todos passam,
os carros passam
velozes,
os amigos passam,
compadres,
as garças passam, nelores...
Eta vida de sem-graças,
Carlos!
Só eu fico,
encravada,
cerrado,
no dizer de Carmo,
“uma floresta
de cabeça pra baixo”.

Se planejava ir à janela,
viagem à roda do meu quarto,
no caminho achava o atalho
da poltrona
e deitava nela
pra conciliar o sono
e ler De Maistre.

Eis por que
tantos livros foram lidos
e ficaram inacabados,
tantos amores foram comidos
e desprezados,
eu criei raízes,
tão solitárias e tão profundas,
até dar no centro do mundo.

Mas fui brotando.

Assim, uma orquídea nasceu de mim,
exótica, rara, indomada,
tão áspera e inóspita como urtiga,
tão abundante e vasta
feito capim.
Vivo sob outra forma agora,
as raízes expostas
sobre quem me suporta,
mas sou mais jovem
e algo mais feliz.

P.S:
O poema do tempo
já foi escrito por outros tantos
antes de mim
e de você.
Já disseram isso
em outros cantos
de nascer velho
e morrer bebê.

Cássia Fernandes, junho 2006.
Para ter acesso a mais trabalhos de Cássia Fernandes:

3 comentários:

Anónimo disse...

Claro que não me importo, Lauro, pelo contrário, fico muito feliz ao publicar meus textos. Só duas ressalvas: a foto não me favorece (rs). Estou cinco quilos mais magra agora (rs). Mas não se iquiete. Miudezas de mulheres. (rs)
A outra ressalva diz respeito à repetição do texto de Cora durante a publicação.Creio que houve algum problema quando copiou os textos.
Quanto ao poema da série Escritos, eu o envio com o maior prazer. Qual você prefere,já que os tem em mãos?
Um outro abraço

P.S: meu e-mail é o mesmo

Anónimo disse...

Outra ressalva: escrevi erradamente "o texto de Cora". É o texto sobre Cora. (rs)

Anónimo disse...

Cássia: Espero que agora o poema esteja bem. Desculpas e um beijo.
LA