sexta-feira, junho 02, 2006

SYRIANA



Algo de muito visível está a mudar no cinema norte-americano nestes últimos anos. Depois do atentado de 11 de Setembro e depois do espanto que ele causou no interior dos EUA, depois desse período de estupefacção que levou os americanos a perceber que eram vulneráveis até no interior da sua terra, estes passaram a um estádio diferente, que ia da defesa à revolta, da intransigência à violência ofensiva, utilizada com o álibi de que a melhor defesa é o ataque. O presidente Bush foi o arauto desse espírito falcão que desde sempre esteve subjacente a uma parte da sociedade norte-americana, a mais conservador e direitista, que curiosamente é também a mais militarista e endinheirada. De repente os EUA estavam divididos ao meio, nas últimas eleições, e de repente também o cinema norte americano, como nos melhores momentos da sua vida, toma a defesa da dignidade e avança com o ataque à corrupção, à prepotência, aos jogos de poder e de finança – de repente, os EUA acordam com um cinema que quer sacudir as consciências e despertam o que de melhor há nesta grande nação, tal como o fizera durante o maccartismo, a guerra do Vietname ou o caso Watergate, entre muitas outras crises nacionais ou mundiais.
Obras como “Boa Noite e Boa Sorte”, “O Fiel Jardineiro”, “Munique”, “A Intérprete”, “Colisão”, “Fahrenheit 11.9”, “Enron: The Smartest Guys in the Room”, “Os Diários de Che”, entre outras, recolocam o cinema de consciência política e social numa primeira linha de actualidade. O mesmo acontece com “Syriana”, de Stephen Gaghan (que escrevera o argumento de “Traffic”, e que aqui junta à escrita do guião a direcção do filme), que vem abordar um tema de uma escaldante oportunidade: os negócios do petróleo à escala planetária, mas com particular incidência no Médio Oriente e as relações que os EUA mantêm com esta região do globo.
Tal como tem acontecido com cada vez maior intensidade, “Syriana” é um filme puzzle, dividindo a sua atenção por diferentes personagens, em diversas acções que ocorrem em simultâneo em vários pontos da Terra: Washington, Texas, Suíça, Espanha, Irão, ou nesse país fictício chamado Syriana (na Wikipedia, pode ler-se que “Syriana é um nome usado para se referir à Síria e, em outros contextos, como um rótulo arbitrário para nações hipotéticas que se assemelhem em graus diferentes àquele país. (...) Também é um termo usado em Washington para descrever uma remodelação hipotética do Oriente Médio”.)
Partindo do romance “See no Evil”, de Robert Baer, Gaghan procura esboçar um vasto painel das implicações políticas e económicas das guerras do petróleo que presentemente assolam o mundo. A conclusão é a de que não há a mínima noção de moral ou dignidade, a mais pequena vergonha ou prurido humanista a tratar esta questão. Quando duas companhias petrolíferas se fundem, o governo dos EUA procura saber se há algo de errado nessa associação, mas cedo se percebe que o advogado Jeffrey Wright não poderá levar a cabo uma investigação isenta, pois os interesses económicos e geopolíticos sobrepõem-se a tudo o mais. Não falamos já de simples legislação federal, mas sim de atentados e eliminações físicas que são necessárias: se o velho agente da CIA (interpretado por George Clooney) é um empecilho, “desactiva-se” e deixa-se à sua sorte. Quando o príncipe Nasir Al-Subaai vende o seu petróleo à China porque não aceita pactuar com os interesses americanos no seu país (que o pai e um irmão aceitam sem escrúpulos), é óbvio que não vai durar muito tempo com vida (“Aceito a oferta dos chineses, a maior oferta, e de repente sou um terrorista, um comunista sem religião”). Os atentados sucedem-se, ao radicalismo de um dos lados responde o radicalismo do outro, as bombas explodem, os danos colaterais multiplicam-se e finalmente em países corroídos pela fome, o analfabetismo, a crendice e o desemprego é fácil “inventar” jovens dispostos a imolarem-se em nome de fundamentalismos religiosos e políticos.
Excelentes actores e uma montagem complexa que não dá tréguas ao espectador fazem de “Syriana” uma obra particularmente interessante que não se fica somente pela denúncia política e vai mais longe, analisando de forma muito curiosa as relações de dependência e revolta entre Estados (os grandes e os pequenos) e entre pais e filhos (que de certa forma reflectem as relações de poder que se estabelecem entre os Estados).

SYRIANA, de Stephen Gaghan (EUA, 2005), com: George Clooney, Matt Damon, Alexander Siddig, Christopher Plummer, Chris Cooper, Amanda Peet, William Hurt, etc. 126 min; Columbia; M/ 12 anos.

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