domingo, janeiro 21, 2007

TEATRO EM LISBOA - O Principezinho

O PRINCIPEZINHO

no Teatro Politeama

Um jovem aviador passa pelos céus de um deserto, quando o avião perde altitude e abocanha a areia. O aviador sai íleso, mas descobre-se perdido. Adormece na areia.


“E foi assim que, nessa noite, adormeci deitado na areia, a milhares de milhas de qualquer local habitado. Sentia-me mais isolado do que um náufrago numa jangada no meio do oceano. Podem, portanto, imaginar qual não foi a minha surpresa quando, ao nascer do dia, fui acordado por uma vozinha que dizia:
-Se faz favor... desenha-me uma ovelha!
-O quê?
-Desenha-me uma ovelha...
Pus-me de pé de um salto, como se tivesse sido atingido por um raio. Esfreguei os olhos energicamente. Olhei com toda a atenção. E vi um menino verdadeiramente espantoso, que me observava com um ar muito sério… “

1.

No programa que autografa à entrada do Teatro Politeama, dedicando-o “aos meninos que vão assistir ao seu espectáculo”, Filipe La Feria tem um texto onde explica as razões que o levaram a esta encenação: “Li "O Principezinho" quando tinha a tua idade e nunca mais esqueci. Ele ensinou-me a ver com os olhos do coração. Sempre desejei convidar-te para vires ao meu Teatro, ao meu planeta, para te apresentar o meu Principezinho. Tenho a certeza que nunca o irás esquecer e que ele te irá acompanhar durante toda a viagem maravilhosa da tua vida.”
No espectáculo, o Principezinho ouve a Raposa explicar que o essencial não é “o que se vê”, mas “o que se sente com o coração”. Esta frase julgo ser a razão principal do sucesso desta obra. Este apelo ao mais íntimo e ao mais secreto da compreensão humana, onde se esconde a poesia e o amor. Ora Filipe La Féria não consegue restituir toda a poesia e toda a envolvência da obra de Antoine de Saint-Exupéry, muito embora toda a sua boa vontade e a qualidade que este espectáculo apresenta.
Diga-se que tudo leva a crer que o relativo fracasso se deve a duas questões. Primeira: para tornar o espectáculo não muito longo, La Feria condensou o texto, e retira-lhe alguma poesia, para apresentar dele um quase esqueleto. Descarnado. Segundo: as apetências tecnológicas, sobretudo o vídeo de que se socorre vezes em demasia, tiram secreta magia ao que se devia pressentir e não “ver”. Ou seja: “vê-se” demasiado e “sente-se” pouco.
Mas abstraindo isso, há bons momentos neste espectáculo: tudo o que se passa somente entre o Aviador (Hugo Rendas) e o Principezinho (Martin Penedo ou Ruben Silva) é comovente e sedutor e decorre num bom cenário com a assinatura de Rita Torrão. Algumas das tradicionais figuras que povoam o universo de Saint-Exupéry são bem defendidas, como a Raposa (Hugo Goepp), o Vaidoso (Daniel Gorjão), o Bêbado (Tiago Martins), o Homem de Negócios (Tiago Isidro), o Acendedor de Candeeiros e Geógrafo (Sérgio Moreno), a Serpente (Andrea Gaipo) ou a Vendedora de Comprimidos (Sofia Cruz). No vídeo aparecem a Flor (Sara Cabeleira), e o Rei (Joaquim Barros). A tradução especialmente executada para o efeito é escorreita e clara.

2.
Uma nota á margem. Antes do espectáculo se iniciar, à porta do Politeama centenas de jovens aguardavam a entrada. Uns com país e familiares, outros com professores. Cinquenta e tal eram alunos de uma escola, putos com quinze anos, mais coisa menos coisa, e a berraria era intensa. Pensei: vai ser bonito com “estes selvagens todos lá dentro”. Enganei-me redondamente. Os “selvagens” não se ouviram. O silêncio foi total, as palmas e os aplausos os exigidos no sítio certo. O que quer dizer que quando a magia existe, “os selvagens” deixam de o ser. No teatro, se calhar nas salas de aula. Uma lição de pedagogia. E “O Principezinho” não é a “Floribela”.

3.

Quem foi Antoine de Saint-Exupéry?

Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger de Saint-Exupéry, nascido a 29 de Junho de 1900, em Lyon, foi escritor, ilustrador e piloto durante a II Guerra Mundial. Passou a infância em casa de uma tia, perto de Ambérieu, estudou em Sainte-Croix-du-Mans, na Suíça e em Paris, onde se preparou para entrar na Escola Naval. Reprovado na oral do exame de admissão, resolve ingressar em Belas-Artes. Em 1921, começou a cumprir o serviço militar em Estrasburgo, no ramo da Aviação, o que lhe traça o destino. Depois de sair da tropa, em 1923, tem vários empregos. Começa a escrever e, em 1925, publica a sua primeira narrativa cuja acção se situa no mundo da aviação. Em 1926, Saint-Exupéry entra, como piloto, para a companhia Latéc transporte do correio entre Toulouse e Dacar. Seguidamente, é nomeado chefe de escala do porto de Juby, no Rio do Ouro. É nessa época que escreve “Courrier Sud” (“Correio do Sul”) (1929).

Acompanhado por Mermonz e Guillamet, parte para a América do Sul, a fim de estudar a possibilidade de criação de novas linhas aéreas nesse continente. Em 1931, publica “Vol de Nuit” (“Voo Nocturno”), que alcança um sucesso bastante considerável. Entretanto, a companhia Latécoère abre falência e Saint-Exupéry tenta, em vão, em 1935 e ao serviço da Air France, bater o recorde aéreo Paris-Saigão. Em 1939, tenta fazer a ligação aérea de Nova Iorque à Nova Terra do Fogo: gravemente ferido, passa largos meses de convalescença em Nova Iorque. É então que publica “Terre des Hommes” (“Terra dos Homens”). Durante a II Guerra Mundial, faz parte do Exército de Libertação, mas devido à sua idade, é proibido de pilotar. Não obstante, insiste para que lhe sejam atribuídas missões: a 31 de Julho de 1944, levanta voo de Borgo, na Córsega. Desaparecido em combate, no Mar Mediterrâneo, durante uma missão de reconhecimento sobre as cidades de Grenoble e Annecy, este facto acrescenta à sua lendária fama de escritor, uma mítica e romântica auréola. A 3 de Novembro de 44, em homenagem póstuma, recebeu as maiores honras do exército. Porém, o seu corpo e os escombros do avião nunca foram encontrados. Durante a II GM, publicou três obras: “Pilote de Guerre” (“Piloto de Guerra”), “Lettre à un Otage” (“Carta de um Refém”) e “Le Petit Prince” (“O Principezinho”), em 1943.
As suas obras apresentam características muito próprias e obsessões visíveis, como a aviação, a guerra, a solidão do protagonista. Também escreveu artigos para várias revistas e jornais de França e outros países, sobre a guerra civil espanhola ou a ocupação alemã da França.

"O Principezinho" (1942) é unanimemente considerada a sua obra-prima. Foi escrito durante o exílio nos Estados Unidos1943 - onde o autor se tinha refugiado desde a invasão da França pelos nazis, na 2ª Guerra Mundial -, tendo sido aí publicado no ano seguinte. Posteriormente foi considerado o livro francês mais vendido em todo o mundo (cerca de 80 milhões de exemplares), com 400 a 500 edições. Segundo o jornal francês "L'Express", "Le Petit Prince" é a obra literária mais traduzida no mundo, a seguir à Bíblia, tendo sido publicado em 160 línguas ou dialectos, incluindo o aranês, o amazigh e o xhosa, uma das 11 línguas oficiais da África do Sul. No Japão existe até um museu para a personagem principal do livro, um jovem sonhador de cabelos louros e cachecol vermelho, "O Principezinho". Em resposta à questão "Qual é o livro do século?" colocada pela "Sondagem do Século" do jornal "Le Parisien-Aujourd'hui" de Novembro de 1999, foi eleito o livro "O Principezinho"!

4.

Um excerto de “O Principezinho”

XXI
Foi então que apareceu a raposa.
- Bom dia! - disse a raposa.
-Bom dia! – respondeu, educadamente, o principezinho, que se voltou para trás, mas não viu nada.
-Estou aqui – disse a voz – debaixo da macieira.
- Quem és tu? - perguntou o principezinho. - És muito bonita…
- Sou uma raposa – respondeu a raposa.
- Anda brincar comigo – pediu o principezinho. - Estou tão triste…
- Não posso ir brincar contigo – disse a raposa. - Ninguém foi capaz de me cativar…
-Ah, desculpa! – disse o principezinho.
Mas, depois de ficar pensativo durante um bom bocado, acabou por perguntar:
- O que quer dizer “cativar"?
-Tu não és daqui – disse a raposa. - De que é que andas à procura?
- Ando à procura dos homens – respondeu o principezinho. - O que quer dizer “cativar"?
- Os homens – continuou a raposa – têm espingardas e passam a vida a caçar. É muito chato! Também fazem criação de galinhas. É o seu único aspecto interessante. Andas à procura de galinhas?
-Não – disse o principezinho. – Ando à procura de amigos. O que quer dizer “cativar"?
- É uma coisa que já caiu no esquecimento – respondeu a raposa. – Quer dizer “criar laços..."
-Criar laços?
- Isso mesmo – disse a raposa. - Para mim, por enquanto, tu não passas de um rapazinho igual, sem tirar nem pôr, a cem mil rapazinhos. E não me fazes qualquer falta. E tu não sentes também a minha falta. Para ti eu não passo de uma raposa igual a cem mil raposas. Mas se tu me cativares, passaremos a sentir a falta um do outro. Para mim passarás a ser único no mundo. E para ti eu também serei única no mundo...
- Começo a perceber – disse o principezinho. - Há uma flor… eu acho que ela me cativou...
- É muito possível – disse a raposa. - Vê-se de tudo, ao cimo da Terra...
-Oh! Mas não é na Terra – disse o principezinho.
A raposa pareceu muito intrigada:
- Noutro planeta, então?
-Sim.
- E nesse planeta há caçadores?
-Não.
- Isso sim, isso é interessante! E galinhas?
-Não.
-Não há nada perfeito – suspirou a raposa.
E imediatamente retomou a sua ideia:
- A minha vida é uma monotonia. Caço galinhas e os homens caçam-me a mim. Todas as galinhas são semelhantes entre si e todos os homens são semelhantes entre eles. Portanto, aborreço-me um bocado. Mas se tu me cativares, será como se o sol entrasse na minha vida. Reconhecerei um ruído de passos de entre todos os outros passos. Os outros passos far-me-ão fugir para debaixo de terra. Os teus far-me-ão sair para fora da toca, como se fossem música. E depois, repara: estás a ver lá ao fundo, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é, portanto, inútil. Os campos de trigo não me fazem lembrar nada. E isso é uma tristeza! Mas os teus cabelos são da cor do ouro. Portanto, depois de me cativares, vai ser maravilhoso! O trigo, que é dourado, há-de fazer-me pensar em ti. E então hei-de gostar do som do vento no trigo...
A raposa calou-se e ficou a olhar durante muito tempo para o principezinho:
- Por favor... cativa-me! - implorou, por fim.
- Eu gostava muito – respondeu o principezinho –, mas não tenho muito tempo. Tenho amigos para descobrir e muitas coisas para conhecer.
- Só conhecemos o que cativamos – disse a raposa. - Os homens já não têm tempo para conhecer o que quer que seja. Compram tudo feito, nas lojas. Mas como não existem lojas de amizade, os homens já não têm amigos. Se queres ter um amigo, cativa-me!
- O que é que tenho de fazer? - perguntou o principezinho.
- É preciso ter imensa paciência – respondeu a raposa. – Para começar, sentas-te, um pouco afastado de mim, assim, na relva. Eu espreito-te pelo canto do olho e tu não dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal entendidos. Mas, a cada dia que passa, poderás sentar-te um pouco mais perto...
No dia seguinte, o principezinho regressou.
- Era melhor vires sempre à mesma hora – explicou a raposa. - Se tu vieres, por exemplo, às quatro da tarde, eu começo a ficar feliz logo às três horas. À medida que o tempo passa, vou ficando cada vez mais feliz. Às quatro horas estarei já inquieta e agitada; descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vieres a uma hora qualquer, nunca saberei quando é que hei-de começar a embelezar o meu coração… os rituais são indispensáveis.
- O que é um ritual? - perguntou o principezinho.
- É uma coisa que, infelizmente, também caiu no esquecimento – respondeu a raposa. - É o que faz com que um dia seja diferente dos outros, uma hora diferente das outras. Os meus caçadores, por exemplo, têm um ritual. Às quintas-feiras vão dançar com as raparigas da aldeia. Por isso a quinta-feira é um dia maravilhoso! Vou passear até à vinha. Se os caçadores fossem dançar num dia qualquer, todos os dias seriam iguais e eu não teria férias.
E foi assim que o principezinho cativou a raposa. E, quando se aproximou a hora da partida:
-Ah! – suspirou a raposa... - Vou chorar.
- A culpa é tua – disse o principezinho. - Eu não te queria fazer mal, mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Pois quis – concordou a raposa.
- Mas agora vais chorar! - disse o principezinho.
- É claro que sim – respondeu a raposa.
- Então não ganhas nada com isso!
- Ganho – afirmou a raposa. - Por causa da cor do trigo…
Depois acrescentou:
- Vai ver as rosas mais uma vez. Vais perceber que a tua é única em todo o mundo. Depois volta aqui para me dizer adeus e eu vou ter um presente para te oferecer: um segredo.
O principezinho foi, uma vez mais, ver as rosas.
-Vocês não se parecem absolutamente nada com a minha rosa, vocês ainda não são nada – disse-lhes ele. - Ninguém vos cativou e vocês não cativaram ninguém. Vocês são tal e qual como era a minha raposa. Não passava de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas eu fiz dela uma amiga e agora ela é única em todo o mundo.
E as rosas ficaram todas abespinhadas.
- Vocês são muito bonitas, mas são vazias – disse ele ainda. - Não se pode morrer por vocês. É claro que um transeunte desprevenido poderá confundir a minha rosa convosco. Mas ela, sozinha, é mais importante do que vocês todas juntas, porque foi ela que eu reguei. Porque foi ela que eu coloquei debaixo da redoma. Porque foi ela que eu abriguei com o biombo. Porque foi por ela que eu matei as lagartas (excepto duas ou três, por causa das borboletas). Porque foi a ela que eu ouvi lamentar-se, vangloriar-se, ou mesmo, uma vez por outra, calar-se. Porque ela é que é a minha rosa.
E o principezinho regressou para junto da raposa:
- Adeus – disse ele...
- Adeus – disse a raposa. – Agora vou contar-te o meu segredo. Um segredo muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos...
- O essencial é invisível para os olhos – repetiu o principezinho, para nunca mais esquecer.
- Foi o tempo que tu dedicaste à tua rosa que fez com que ela seja tão importante.
- Foi o tempo que eu dediquei à minha rosa... – repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.
- Os homens esqueceram esta verdade – disse a raposa. - Mas tu não podes esquecer. Tu tornaste-te responsável para sempre por aquilo que cativaste. Tu és responsável pela tua rosa...
- Sou responsável pela minha rosa... – repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.
(Tradução de Maria Eduarda Colares).


O Principezinho
Um espectáculo de Filipe La Féria, segundo "Le Petit Prince" de Antoine Saint-Exupéry, Editions Gallimard, 1946 (Tradução: Maria Eduarda Colares); Adaptação, figurinos e encenação de: Filipe La Féria; Música de: António Leal e Telmo Lopes; Vídeos: Pedro Alegria, Ricardo Fernandes e Rui Fernandes; Ilustrações de vídeo: Gonçalo Viana; Coreografia e assistência de encenação: Inna Lisniak; Direcção de cena: Sérgio Moreno; Adereços: Luís Stoffel, Nuno Elias e Rita Torrão; Cenário: Rita Torrão; Guarda-roupa: Helena Brandão, Catita Soares e Helena Resende; Desenho de luz: Jorge Carvalho; Direcção de montagem: Fernando Mendes
Intérpretes: Hugo Rendas, Martin Penedo ou Ruben Silva, Hugo Goepp, Daniel Gorjão, Tiago Martins, Tiago Isidro, Sérgio Moreno, Andrea Gaipo, Sofia Cruz, Sara Cabeleira, Joaquim Barros.
De 2ª a 6ª, às 11h00 e 15h00 (para escolas mediante reserva prévia); Sábados, Domingos e Feriados às 15h00


3 comentários:

Ida disse...

Estes posts estão preciosos e nada banais. Nos últimos anos, tinha me acostumado à banalização com que tratam, muitas vezes, essa obra e tu me fizeste recobrar a magia das primeiras leituras, décadas atrás. Obrigada, a beleza e a magia me invadiram na madrugada insone.

PS: Por coincidência também estão encenando a história aqui, mas muito estilizada para o meu gosto e, aparentemente, com resultados bem diferentes dos daí.

PS2: A tradução que citas é primorosa e parece ser a mesma que conheci em tempos. O excerto, muito bem escolhido por ti.

PS3: Além desse, também não posso esquecer de: Vol de nuit e Terre des hommes. Ainda que os tenha lido com olhos bem mais adultos, e com menos magia.

Isabel Victor disse...

Que bom ... antes de me deitar, ainda (re)li este maravilhoso excerto do "O principezinho" e ... (re)encantei-me com este cativante "cativa-me".

Boa noite ...

Flávio disse...

Desculpem, mas não gosto do Principezinho. Acho piegas e enfadonho.