terça-feira, fevereiro 06, 2007

LIVROS - Christopher Priest


Christopher Priest, o autor de “O Prestigio”, é bem conhecido dos portugueses, pois várias obras suas foram editadas em Portugal, país que frequenta habitualmente. Encontrei-o, e ouvi-o, em Cascais, na década de 90, quando esteve num dos Encontros organizados pela Simetria. Em 2006 voltou, agora ao Fantasporto.
Romancista, contista e editor, é actualmente um dos mais famosos escritores britânicos de ficção científica, tendo-se notabilizado por uma série de romances que publicou nos anos 80 e 90, assim como colectâneas de contos, antologias e trabalhos fora do campo da ficção como “The Book on the Edge of Forever”. Vencedor de vários prémios (World Fantasy Award, prémio BSFA e o Arthur C. Clarke), os seus romances combinam frequentemente ficção científica com história alternativa. Entre eles, destacam-se “The Glamour”, “The Prestige” e “The Separation”. Em Portugal a editora Caminho publicou “A Afirmação”, assim como a colectânea “Um Verão Infinito”, e, na Planeta Editora, foi lançado o romance “Os Extremos”. Em 2006, foi nomeado vice-presidente da H. G. Wells Society, autor que assume como forte influência na sua obra. Site oficial de Christopher Priest.





Excertos de "O Terceiro Passo", sobre "o segredo" para o mágico:




(...) Sendo assim, é justo que, desde o início, eu tente esclarecer esses assuntos intimamente ligados: o Segredo, e a Apreciação do Segredo.
Aqui vai um exemplo.
Durante o exercício da minha profissão existe invariavelmente um momento em que o ilusionista parecerá fazer uma pausa. Avançará para a frente do palco, e sob a luz do projector enfrentará directamente a assistência. Dirá, ou, se o número for silencioso, parecerá dizer: “Olhem para as minhas mãos. Não tenho nada escondido.” Depois exibirá as palmas das mãos para que a assistência as veja, afastando os dedos para provar que não tem nada preso entre eles. Com as mãos assim erguidas irá rodá-las, para mostrar a parte de trás à assistência, e fica estabelecido que, de facto, as mãos estão o mais vazias possível. Para que não haja a mínima suspeita, irá provavelmente puxar ligeiramente os punhos do casaco, expondo os pulsos para mostrar que também não tem nada escondido ali. Depois realiza o truque, durante o qual, momentos depois desta incontestável prova de mãos vazias, faz surgir algo de dentro das mãos: um leque, uma pomba ou um coelho vivos, um ramo de flores de papel, por vezes até um pavio em chama. É um paradoxo, uma impossibilidade! A assistência fica maravilhada com este mistério e aplaude entusiasticamente. Como é isto possível?
O mágico e a assistência entraram naquilo que chamo de Pacto de Magia Aquiescente. Não o identificam como tal, e na verdade a assistência não está muito ciente de que tal pacto existe, mas é assim que acontece.
Claro que o artista não é nenhum mágico, mas um actor que interpreta o papel de um mágico e que deseja que a assistência acredite, mesmo que temporariamente, que ele contacta com poderes mais obscuros. Entretanto a assistência sabe que o que vê não é verdadeira magia, mas suprime o conhecimento e aquiesce ao mesmíssimo desejo do artista. Quanto maior for a habilidade do artista em manter a ilusão, melhor o julgarão nesta magia ilusória.
O acto de mostrar que as mãos estão vazias, antes de revelar que, apesar das aparências, não podiam ter estado, é ele próprio um componente do Pacto. O Pacto implica que estão em vigor condições especiais. Por exemplo, no normal relacionamento social, quantas vezes tem uma pessoa de provar que tem as mãos vazias? E pensem nisto: se o mágico fizesse aparecer subitamente um vaso de flores sem antes sugerir à assistência que tal seria impossível, não pareceria truque nenhum. Ninguém aplaudiria.
Isto Ilustra então o meu método
Deixem-me estabelecer o Pacto de Aquiescência sob o qual escrevo estas palavras, para que os que as lerem se apercebam que o que se segue não é magia, mas a Ilusão desta,
Primeiro deixem me, por assim dizer, mostrar vos as mãos, palmas
para a frente, dedos afastados, e eu dir-vos-ei (frisando bem): “Todas as palavras neste caderno de apontamentos que descrevem a minha vida e trabalho são verdadeiras, honestas e exactas nos detalhes.”
Agora viro as mãos para que possam ver as costas, e digo: “Muito do que está aqui pode ser verificado em registos concretos. A minha carreira está anotada em arquivos de jornal, o meu nome aparece em livros de referência biográfica.”
Finalmente puxo os punhos do casaco para mostrar os pulsos e digo: “Afinal, o que teria eu a ganhar em escrever um relato falso, quando não está destinado aos olhos de ninguém a não ser os meus, talvez aos dos meus familiares mais directos e aos dos membros de uma posteridade que nunca conhecerei?”
Realmente, o que teria eu a ganhar?
Mas como mostrei as mãos vazias, devem agora pensar não só que se seguirá uma ilusão mas que a aceitarão.
E assim, sem ter escrito uma única falsidade, já iniciei a ilusão que é a minha vida. A mentira está contida nestas palavras, até mesmo nas primeiras. É a estrutura de tudo o que se segue, muito embora não seja aparente em lado nenhum.
Orientei-vos erradamente com a conversa da verdade, registos concretos e motivos. Assim como acontece quando mostro que as mãos estão vazias omiti a informação significativa, e agora estão a olhar para o sítio errado.
Como qualquer ilusionista bem sabe, há alguns que ficarão perplexos com isto, uns que declararão conhecer o segredo, e outros, a feliz maioria que simplesmente aceitará a ilusão como verdadeira e desfrutará a magia por simples entretenimento.
Mas há sempre um ou dois que levarão consigo o segredo e que matutarão sobre ele sem nunca chegar perto de o solucionar. (...)

(...) Ching era um homem em boa forma física e possuidor de uma grande força, e carregar o aquário es­tava assim bastante dentro das suas possibilidades. No entanto o tamanho e formato do aquário faziam-no arrastar-se como um mandarim quando caminhava. Isto ameaçava o segredo pois atraía as atenções para a forma como se deslocava, por isso para proteger o segredo ele arrastou-se durante toda a vida. A qualquer altura, em casa ou na rua, de dia ou de noite, ele ja­mais caminhava normalmente, para evitar que o segredo fosse descoberto.
É essa a natureza de um homem que desempenha o papel de mági­co.
As assistências sabem bem que um mágico pratica as suas ilusões durante anos e ensaia cuidadosamente cada actuação, mas poucas pessoas percebem a extensão do desejo do prestidigitador em iludir, a forma como o aparente desafio das leis naturais se torna uma obsessão que rege todos os momentos da sua vida.
Ching Ling Foo tinha a sua patranha obsessiva, e agora que leram a minha anedota sobre ele podem correctamente assumir que eu tenha a minha. A minha patranha rege a minha vida, informa todas as decisões que tomo, regula todos os meus movimentos. Neste preciso momento em que embarco na escrita desta autobiografia, ela controla o que eu posso ou não escrever. Comparei o meu método com o apresentar de mãos aparen­temente vazias, mas na realidade tudo nesta narrativa representa o andar arrastado de um homem em boa forma. (...)

(...) Há alguns anos, um mágico (acho que foi o Sr. David Devant) foi citado como tendo dito: «Os mágicos protegem os seus segredos não porque os segredos sejam grandes e importantes, mas porque são tão pequenos e tri­viais. Os efeitos maravilhosos criados em palco são muitas vezes o resultado de um segredo tão absurdo que o mágico teria vergonha de admitir que era assim que era feito.»
Ali está, em poucas palavras, o paradoxo do mágico de palco.
O facto de um truque ficar «estragado» se o seu segredo for revela­do é do conhecimento geral, não só dos mágicos mas da assistência que entretém. A maior parte das pessoas gosta da sensação de mistério criada pela performance, e não deseja arruiná-la, por mais curiosa que se sinta em relação ao que parece ter testemunhado.
O mágico deseja naturalmente preservar os seus segredos, para poder continuar a ganhar a vida com eles, e isto é amplamente reconhecido. No entanto, torna-se uma vítima do seu próprio segredo. Quanto mais tempo um determinado truque fizer parte do seu repertório, e quanto mais vezes for executado com sucesso, e, por definição, mais pessoas tiver enganado com ele, então mais lhe parece essencial preservar o segredo desse truque.
O efeito atinge proporções maiores. É visto por muitos espectado­res, outros mágicos copiam-no ou adaptam-no, o próprio mágico deixa-o evoluir, e a apresentação altera-se ao longo dos anos fazendo o truque pare­cer mais complicado e impossível de explicar. Durante tudo isto o segredo mantém-se. E mantém-se também pequeno e trivial, e à medida que o efei­to cresce a trivialidade parece mais ameaçadora à sua reputação. O segredo torna-se obsessivo.
Passemos então ao cerne da questão.
Passei a vida a guardar o meu segredo parecendo manquejar (estou a fazer alusão a Ching Ling Foo, e não, como é óbvio, a escrever literalmen­te). Já atingi uma idade e, sinceramente, uma prosperidade, onde actuar em palco perdeu o seu encanto. Terei então que coxear, em sentido figu­rado, pelo resto da vida para preservar um segredo que poucos sabem que existe, e com que menos ainda se importam? (...)

(...) Uma ilusão tem três fases.
Primeiro há a preparação, em que a natureza daquilo que poderá ser tentado é sugestionada ou explicada. O equipamento é vistoriado. Voluntá­rios da assistência participam por vezes na preparação. Enquanto o truque está a ser preparado, o mágico fará todo o uso possível da orientação ilu­sória.
A execução é onde a experiência do mágico e a sua habilidade ineren­te como executante se conjugam para produzir a ilusão.
A terceira fase é por vezes chamada o efeito, ou o prestígio, e é o pro­duto das artes mágicas. Se um coelho é retirado de dentro de uma cartola, o coelho, que aparentemente não existia antes do truque ser efectuado, pode ser visto como o prestígio desse truque.
O Novo Homem Transportado é bastante invulgar entre as ilusões pelo facto de a preparação e execução serem o que mais intriga o público, crítica e colegas ilusionistas, enquanto que para mim, o executante, o pres­tígio é a principal preocupação.
As ilusões encaixam em seis categorias ou tipos diferentes (pondo de parte o campo especialista da ilusão mental). Qualquer truque que tenha alguma vez sido executado cai dentro de uma ou mais das seguintes cate­gorias:
Produção: a criação mágica de alguém ou de alguma coisa a par­tir do nada;
Desaparecimento: o desaparecimento de alguém ou de alguma coisa no ar;
Transformação: a aparente transformação de uma coisa noutra;
Transposição: a aparente alteração de lugar de dois ou mais objec­tos;
Desafio das Leis Naturais: por exemplo, aparente domínio sobre a gravidade, fazer parecer que um objecto sólido atravessa outro, fazer surgir um grande número de objectos ou pessoas de uma origem aparentemente demasiado pequena para os conter;
O Poder da Força Secreta: fazer com que objectos pareçam mover-se por moto próprio, tal como fazer uma carta escolhida elevar-se misteriosamente do baralho.
O Novo Homem Transportado não é totalmente típico, porque utiliza pelo menos quatro das categorias supracitadas. A maioria das ilusões em palco depende apenas de uma ou duas. Vi uma vez um efeito elaborado no Continente onde eram empregues cinco das categorias.
Finalmente, existem as técnicas de magia.
Os métodos disponíveis aos mágicos não podem ser tão bem catego­rizados como os outros elementos, porque quando toca à técnica um bom mágico não desdenha nada. A técnica de magia pode ser tão simples como colocar um objecto atrás de outro para que não possa ser visto pela assistên­cia, e pode ser tão complexa que exija uma preparação adiantada no teatro e o conluio de um grupo de assistentes e paus-mandados.
O mágico pode escolher a partir de um inventário de técnicas tra­dicionais. As cartas de jogo que tenham sido «encantadas» para que uma ou duas se tornem mais evidentes, o cativante pano negro que permite que muita coisa necessária ao truque ocorra de forma despercebida, a mesa ou suporte pintados a preto que a assistência não consegue ver correctamen­te, manequins, duplos, paus-mandados, substitutos e vendas. E um mágico criativo abraçará a novidade. Qualquer aparelho ou boneco ou invenção nova que apareça deverá provocar o pensamento: Como poderei fazer um truque novo com isto? Assim, no passado recente temos assistido a novos truques que empregam o motor de movimento alternativo, o telefone, elec­tricidade, e um efeito espantoso memoravelmente criado com a bomba de fumo do Dr. Warble.
A magia não tem qualquer mistério para os mágicos. Trabalhamos variações de métodos padrão. O que poderá parecer novo ou enigmático a uma assistência, é simplesmente um desafio técnico para os outros profis­sionais. Se se desenvolve uma ilusão inovadora, é apenas uma questão de tempo antes de o efeito ser reproduzido por outros.
Todas as ilusões podem ser explicadas, seja através do uso de um compartimento secreto, de um espelho astutamente posicionado, de um assistente colocado no meio da assistência para fazer de «voluntário», ou da simples orientação ilusória da atenção do público.
Agora estendo as mãos perante vós, dedos abertos para que vejam que não tenho nada escondido, e digo: O Novo Homem Transportado é uma ilusão como qualquer outra, e pode ser explicada. Mas através da com­binação de um pequeno segredo que tem sido bem guardado, muitos anos de prática, uma certa dose de orientação ilusória da assistência e o uso de técnicas convencionais de magia tornou-se a base fundamental da minha actuação e da minha carreira.
E tem também desafiado todos os esforços de Angier para penetrar no seu mistério, como em breve registarei.(...)


in "O Terceiro Passo", de Christopher Priest, Ed. Saída de Emergência. Parede, 20006

1 comentário:

Ana Paula Sena disse...

Pelo que li a nível dos excertos apresentados, parece-me uma excelente leitura.Gosto sempre de saber acerca de bons livros.
Vi o filme, "Prestige", e gostei imenso.É do estilo que entretém a mente de forma muito elegante e original. O livro parece ser do mesmo tipo.
Uma boa referência!
A.P.