domingo, dezembro 16, 2007

CINEMA: PROMESSAS PERIGOSAS

PROMESSAS PERIGOSAS

O cinema de David Cronenberg já se sabe as linhas com que se coze: não dá tréguas ao espectador, é violento, sórdido, poético, penetra nos ambientes mais devastadores, dá-nos da Humanidade um retrato nada optimista no seu geral, mas atravessado sempre por uma linha de redenção e de esperança. Ele é incontestavelmente um dos mestres do cinema fantástico contemporâneo, mas ultimamente nem precisa de sair de um certo realismo de observação do quotidiano para nos surpreender com o mais tremendo “terror”. “Uma História de Violência” e agora este “Promessas Perigosas” são disso bom exemplo. O que quererá dizer que a realidade é de tal forma violenta que não necessita de ser re-inventada para nos sufocar as consciências.
“Eastern Promises” movimenta-se num universo impressionante, o das Mafias de Leste, russas, ucranianas, romenas, chechenas, e por aí fora. Ao pé destas, a Máfia italiana parece coisa religiosa, cheia de rituais e códigos de ética. E não será por acaso que se fala das Máfia Italiana, pois o filme de Cronenberg estabelece com a saga “O Padrinho”, de Francis Ford Coppola, óbvios contactos. Desta feita o cenário não é a Nova Iorque mas sim Londres, e não são emigrantes italianos os protagonistas, mas sim russos.
O filme começa com duas cenas decorrendo em paralelo: de um lado, numa barbearia londrina, um cliente é assassinado barbaramente; numa rua qualquer, Tatiana, uma russa de catorze anos, esvai-se em sangue e desmaia, precipitando um parto que irá terminal de forma fatal para a mãe. O bebé salva-se, é recolhido por uma enfermeira igualmente russa de um hospital de Trafalgar, Anna (Naomi Watts), que descobre entre os pertences de Tatiana um diário escrito em russo que irá tentar decifrar, para conseguir entregar a criança à família. Mas o que encontra é algo de monstruoso que a coloca no seio de uma tenebrosa “família” de russos: Tatiana é apenas uma de muitos milhares de crianças e mulheres de Leste que procuram melhor vida no Ocidente e acabam em regime de perfeita escravatura nas teias de prostituição (e da droga, da venda de armas, do comércio licito e tudo o mais que se possa imaginar e dê lucro imediato), estabelecidas por bandos organizados que as exploram sexualmente e as tratam abaixo de tudo o que é humanamente permitido. Tatiana é um caso mais, mas que traz a assinatura (que o ADN irá provar) de Semyon (Armin Mueller-Stahl), o chefe de uma poderosa “família” que tem no seu filho Kirill (Vincent Cassel) e no motorista da casa, Nikolai (Viggo Mortensen), dois importantes pilares.O ambiente em que decorre o filme é realmente depressivo e angustiante. Tudo nele concorre para este clima absolutamente deprimente, desde a fotografia em tons carregados e asfixiantes, até à direcção artística e à própria interpretação da maioria dos actores, que ronda a impassibilidade total perante a dor nuns casos e a histeria compulsiva noutros. Estamos nos domínios de uma violência que foge a qualquer juízo premeditado. Não há sentimentos, há acção. Disseca-se um cadáver sem um estremecer de olhar. Cortam-se os dedos e esvaziam-se os olhos meticulosamente. Não há nenhuma diferença entre estas acções e os cortes cirúrgicos de um talho. Não há nada de divino, sequer de humano, nestes gestos. Atinge-se o grau zero da neutralidade. O homem passou a ser um fardo que se acarreta, como uma caixa de garrafas, ou como se estabelece o enchimento mecânico de um balão. O que importa são as notas recolhidas no interior de um envelope, euros, dólares ou libras. Esse o motivo, o móbil para agir.
O filme de Cronenberg parte todo ele de uma estrutura e de uma narrativa admiráveis, mas tem momentos particularmente brilhantes. Há que referir a iniciação de Nikolai para “vory v zachone” ou cena passada nos banhos turcos, onde explode uma violência satânica, para oferecer só dois exemplos, mas toda a obra merece citação especial. Passando-se em Londres, fica-se quase por um relato “de câmara”, cingindo-se a um bairro, um diminuto grupo de pessoas, uma tragédia descrita em miniatura, mas que se expande com o fragor de uma bomba atómica. O filme não se atém apenas às actividades das Máfias russas, mas vai mais longe, insinuando de forma inteligência a perenidade do KGB, apenas com outra designação, e indiciando que muito do que se passa no exterior da Rússia lá de dentro é comandado. Algo que nos leva a pensar que o desabar do Muro de Berlim fez explodir uma caixa de Pandora no Leste Europeu de que dificilmente se avaliam as consequências actuais e futuras (ou muito nos enganamos ou toda a recente violência da noite, no Porto, tem causas semelhantes).
Falando dos actores, as personagens são indicadas e interpretadas de forma brilhante, com um exemplar rigor, como é o caso de Viggo Mortensen ou de Armin Mueller-Stahl, ou uma inebriada esquizofrenia, veja-se o trabalho de Vincent Cassell. No intervalo, as figuras mais “normais” de Anna (Naomi Watts), de sua mãe (Sinéad Cusack) e do seu tio (Jerzy Skolimowski), estabelecem confrontos e sugerem esperanças. Em todos os casos citados há uma cuidada linguagem corporal que é desenvolvida até à exaustão.
Esta obra de David Cronenberg não se fica por ser mais um filme de gangsters, melhor ou pior concebido (excepcionalmente concebido, diga-se!). O seu olhar, distante e frio, indica paradoxalmente uma visão ética e empenhada. Uma mundovisão de acentuado cunho trágico. Mais do que um filme de acção sobre Máfias em movimento, “Promessas Perigosas” é uma tragédia do nosso quotidiano. Um grande filme, do melhor Cronenberg, que estará seguramente disputando muitas e justas estatuetas no inicio de 2008.


PROMESSAS PERIGOSAS
Título original. Eastern Promises
Realização: David Cronenberg (Inglaterra, Canadá, EUA, 2007); Argumento: Steven Knight; Música: Howard Shore; Fotografia (cor): Peter Suschitzky; Montagem: Ronald Sanders; Casting: Deirdre Bowen, Nina Gold; Design de produção: Carol Spier; Direcção artística: Rebecca Holmes; Decoração: Judy Farr; Guarda-roupa: Denise Cronenberg; Maquilhagem: Stephan Dupuis, Mary-Lou Green-Benvenuti, Waldo Mason, Paul Mooney; Direcção de produção: Lisa Parker, Bobby Prince, Lori A. Waters; Assistentes de realização: Jeremy Angel, Walter Gasparovic, Ben Howard, Andrew Mannion, Candy Marlowe; Departamento de arte: Robert J. Dugdale, Helen Koutas, Nick Palmer; Som: Christian T. Cooke, Wayne Griffin, Michael O'Farrell; Efeitos especiais: Michael Dawson, Manex Efrem; Efeitos Visuais: Dan Carnegie, Annu Gulati, Victoria Holt, Mai-Ling Lee, Christa Tazzeo, Aaron Weintraub, Fiona Campbell Westgate; Produção: Stephen Garrett, Robert Lantos, Tracey Seaward, Kahli Small, Paul Webster; Companhias de Produção: Serendipity Point Films, BBC Films, Focus Features, Kudos Film and Television, Scion Films Limited.
Intérpretes: Naomi Watts (Anna), Viggo Mortensen (Nikolai), Vincent Cassel (Kirill), Jerzy Skolimowski (Stepan), Armin Mueller-Stahl (Semyon), Josef Altin (Ekrem), Mina E. Mina (Azim), Mia Soteriou (mulher de Azim), Aleksandar Mikic (Soyka), Sarah-Jeanne Labrosse (Tatiana), Tatiana Maslany (voz de Tatiana), Lalita Ahmed, Badi Uzzaman, Doña Croll, Raza Jaffrey (Doutor Aziz), Sinéad Cusack (Helen), Shannon-Fleur Roux (Maria), Lillibet Langley, Radoslaw Kaim, Donald Sumpter (Yuri), Rhodri Wyn Miles, Tereza Srbova (Kirilenko), Elisa Lasowski, Cristina Catalina, Alice Henley, Faton Gerbeshi, David Papava, Tamer Hassan, Gergo Danka, Michael Sarne (Valery), Boris Isarov, Yuri Klimov, Andrzej Borkowski, Olegar Fedoro, etc.
Duração: 100 minutos; Classificação etária: M/16 anos: Distribuição em Portugal: Ecofilmes; Data de estreia: 29 de Novembro de 2007 (Portugal); Locais de filmagem: Broadway Market, Hackney, Londres, Inglaterra.




6 comentários:

Hugo Cunha disse...

Sim senhora, um grandioso filme, aconselho, as cenas que cita são de facto brutais e muito bem conseguidas.Verdade nunca fui um grade fã de Cronenberg, mas á que dizer que voltou ao seu melhor, pois anteriormente a estes 2 ultimos só tinha dado real atenção á Mosca e ao filme Crash o qual não gostei e desliguei deste realizador, mas após ver as nomeações ao Globos de Ouro USA deste ano dei mais uma oportunidade e não me arrependo excelente, um dos grandes filmes do ano.

Ana Paula Sena disse...

Não sou apreciadora de Cronenberg embora lhe reconheça valor. Mesmo não fazendo o meu estilo, destaco a escolha da Naomi Watts que sempre encontrei excelente.
Obrigada por me manter informada! :)

A OUTRA disse...

Vim ver o que há de novo, pois ando afastada do cinema e com muitas saudades.
Encontrei um novo visual np "Lauro António apresenta" que muito me agradou.
Amanhã venho pesquisar coisas que me interessam.
Ctps
Maria

A OUTRA disse...

Lauro António obrigada a sua visita ao meu blog, não contava que perdesse o seu tempo comigo, mas juro que gostei, gostei muito.
Cpts
Maria

A OUTRA disse...

Há muito tempo que não vinha ao seu Blog, Lauro António e o que vi ao entrar deixou-me satisfeita, não pelos filmes mas pelo que li ao entrar. Parabéns por essa maneira de estar.
Quanto ao filme ainda não me resolvi ver, tenho estado pouco voltada para a violência de que estou cansada.
Um dia... vou tentar vê-lo
Cpts
Maria

Cristina disse...

Boa tarde. Não sabia da existência deste blogue até ter pesquisado sobre este filme de Cronenberg... e eis que me deparo com Lauro António.

Estou a ser iniciada a Cronenberg e Promessas Perigosas foi o filme pioneiro. Adorei a realização, a imagem, a violência pela violência tão excelentemente retratada.

Cumprimentos.