sexta-feira, janeiro 25, 2008

CINEMA: EXPIAÇÃO

EXPIAÇÃO

Muitas qualidades reunidas numa mesma obra fazem um grande filme? Nem sempre. Mas devo confessar também, e desde já, que gostei bastante de “Expiação” (Atonement), não tanto, porém, para o classificar como obra-prima, e para me derreter em elogios (derreto-me com a Keira e com a Vanessa, por motivos diversos, mas ambos igualmente justificados).
Depois de ter realizado, há dois anos atrás, um meritório “Orgulho e Preconceito”, segundo Jane Austen, Joe Wright regressa a um tema semelhante, por igual via, uma adaptação literária de um romance de envergadura. Agora em vez de Jane Austen, Ian McEwan, outro inglês que curiosamente abre esta sua obra com uma citação de Austen. Coerência, portanto, num autor.
Note-se: “autor”, não duvido. Há preocupações constantes que tendem à obsessão de fantasmas privados – mansões antigas exalando felicidade que encerram nos seus sótãos preconceitos, personagens leves como a aragem que as percorre que se precipitam em vendavais de paixões que as conduzem à tragédia; segredos que se expiam e atormentam vidas com memórias dolorosas, mulheres delicadas que sofrem perante a discreta ferocidade de uma sociedade que o homem controla e domina, do alto da sua superioridade senhorial e machista… Depois há uma equipa que funciona coesa (actores e técnicos que passam de filme para filme). Temos portanto o produto típico de um autor absorvido pela fina análise de figuras e situações emblemáticas de uma sociedade circunspectamente conservadora, que irradia uma falsa imagem de harmonia e felicidade, quando no seu seio germina uma violência tensa e um dormente cansaço, o que provoca o plausível aborrecimento dos gémeos que fogem da pasmaceira, o que leva Briony Tallis (Saoirse Ronan), uma miúda de treze anos, a “inventar” peças de teatro que tenta encenar para agitar o marasmo, o que conduz à perversão do que se vê e à invenção de situações “explosivas”, o que precipita esperados acontecimentos dramáticos que depois se calam para não ofuscarem a rigidez moral do ambiente. Com uma única excepção: o filho do empregado da casa, que se prepara para estudar medicina, protegido pelos patrões, mas que apesar de tudo nunca inspira a confiança suficiente para não ser logo acusado e mandado para a prisão na primeira crise que atravessa ocasionalmente.
Briony Tallis, de imaginação florescente, vê através de uma janela da mansão, a irmã mais velha, Cecília (Keira Knightley), despir-se e mergulhar nas águas de um lago, perante o olhar obviamente aturdido e fascinado de Robbie Turner (James McAvoy), que mais tarde não resiste e lhe envia uma carta, interceptada por Briony, onde lhe confessa o seu amor (e mais do que isso o prazer que sente a beijar algumas zonas proibidas da bela inglesa, tudo isto numa linguagem que não fica a dever nada ao vernáculo do célebre amante de Lady Charteley). Acontece que a miúda Briony vive ela também apaixonada pelo garboso futuro médico, que um dia a salva de morrer afogada, e não aceita muito bem esta aproximação, tanto mais que no mesmo dia descobre o casal na biblioteca, bem encaixados em prateleiras de escura e antiga madeira, não propriamente escolhendo o livro para ler ao serão. Quando surge a ocasião para a vingança, não perdoa e acusa Robbie de uma violação que presencia de raspão, mas cuja certeza afiança.
Veja-se como Ian McEwan inicia a sua obra com a descrição da escrita da peça por Briony: “A peça - para a qual Briony tinha desenhado os cartazes, os programas e os bilhetes, construído a bilheteira com um biombo voltado de lado e debruado uma caixa com papel crepe vermelho para recolher donativos - tinha sido escrita por ela num assomo de criatividade que tinha durado dois dias e que a levara a perder um pequeno-almoço e um almoço. Depois de concluídos todos os preparativos, já não tinha mais nada a fazer a não ser rever o manuscrito e esperar pela chegada dos primos que vinham do norte. Só teriam tempo para um dia de ensaios antes de o irmão chegar. A peça, com passagens sinistras e outras desesperadamente tristes, era uma história de amor, cuja mensagem, transmitida num prólogo em verso, era a de que o amor que não estivesse assente numa base de bom-senso estaria condenado. A paixão louca da heroína, Arabella, por um maléfico conde estrangeiro é punida pelo infortúnio de ela contrair cólera durante uma ida impetuosa até uma vila à beira-mar com o namorado. Abandonada por ele, e por quase toda a gente, presa à cama numas águas-furtadas, descobre em si própria um inesperado sentido de humor. A sorte dá-lhe uma segunda oportunidade, sob a forma de um médico pobre que, na verdade, é um príncipe disfarçado que escolheu trabalhar no seio dos mais necessitados. Arabella é curada por ele e, desta vez, faz uma escolha sensata, sendo recompensada pela reconciliação com a família e pelo casamento com o príncipe-médico “num dia de Primavera com muito sol e algum vento” (1).

Mais adiante: “ Ela era uma daquelas crianças possuídas pelo desejo de ter um mundo exemplar. Enquanto o quarto da sua irmã mais velha era um antro de livros espalhados, roupas em desalinho, cinzeiros cheios, com a cama por fazer, o de Briony era um santuário do demónio do controlo: na quinta de brincar montada num parapeito fundo havia os animais do costume, mas estavam todos voltados para o mesmo lado — para o seu dono — como se estivessem prestes a entoar uma canção. Até as galinhas estavam impecavelmente colocadas dentro da cerca. Aliás, o quarto de Briony era o único do andar de cima que estava arrumado. As bonecas, de costas muito direitas, nas múltiplas divisões da sua casinha de brincar, pareciam ter recebido ordens estritas de não tocarem nas paredes; as muitas figuras minúsculas de cowboys, mergulhadores, ratos humanóides, dispostas sobre o seu toucador, faziam lembrar, pela forma como estavam alinhadas e pela distância que as separava, um exército de cidadãos à espera de ordens.
O gosto pelas miniaturas era um dos aspectos de um espírito em ordem; um outro era a paixão pelos segredos: num armário envernizado, que muito estimava, havia uma gaveta secreta que se abria carregando no veio de um entalhe inteligentemente torneado. Era aí que guardava um diário fechado com uma mola e um caderno escrito num código que ela inventara.” (1).
Coisa de miúdos, é certo, mas de miúdos frustrados por educações penosas, mentes retorcidas desde criança. Diga-se que a educação terá particular relevância na definição destes caracteres, mas há predisposição nata para assim se percorrer os corredores da casa, em passo estugado, decidido, curvando nos cantos a noventa graus, progredindo em linha recta até ao objectivo final. Quem assim anda, não pode sofrer desvios ditados pelo destino ou o acaso, sabe o que quer e não gosta de ser contrariado. Quando o é, alguém sofre as consequências. Robbie passa rapidamente de objecto de desejo a desejo de vingança. Lola Quincey (Juno Temple) é surpreendida a ser violada por um vulto, na noite da busca dos gémeos Pierrot (Felix von Simson) e Jackson (Charlie von Simson), e a casta e puritana Briony não duvida um segundo de quem é o violador de que apenas descortinou a silhueta. E impunemente atira para o opróbrio e o calabouço aquele que anteriormente era o encanto dos seus pensamentos. Quando há que encontrar um “culpado” ele terá de ser de outra classe social, tanto mais que o afastamento de Robbie afasta igualmente uma ligação inter-classicista de todo em todo indesejável.

A história começa em 1935, passam-se anos e vem a II Guerra Mundial, a câmara de filmar troca a frívola graciosidade da paisagem da província inglesa pela dantesca visão das praias de Dunquerque, mesmo as belas irmãs enterram as mãos no sangue macerado dos combatentes feridos ou agonizantes que lhes chegam às camas dos hospitais onde são enfermeiras. Quem parte para a frente da batalha não é o proprietário da fábrica de chocolates que prospera com a guerra e por isso é honrado, mas os filhos bastardos da nação. Alguns não voltam, e na Londres de fim de mundo, com os túneis dos metros bombardeados pelos nazis e os ali refugiados a morrer às centenas, afogados nas águas que irrompem em sobressalto, à matéria suficiente para no futuro escritores inspirados inventarem histórias onde a procura da verdade nem sempre coincide com a verdade que se procura. Quando Briony, em 1994, convictamente arrependida do mal que causou e depois de longos anos de expiação, dá uma entrevista à TV (o entrevistador é Anthony Minghella, realizador inglês, amigo de Joe Wright, autor de “Cold Mountain”, que mantém com “Expiação” curiosas afinidades), por altura do lançamento do seu novo romance, inteiramente autobiográfico, onde ela resolve não abdicar sequer de utilizar os nomes próprios e as situações reais, acaba, todavia, por resvalar para a sua proverbial fantasia, que aqui não se revela para não retirar suspense ao que então se divulga. Mas não abdica de impor uma realidade literária, sua, recriada, perante a crueza da realidade real.
“Ao longo destes cinquenta e nove anos (o tempo que medeia entre 1935 e 1994), o problema tem sido este: como é que uma escritora pode fazer a sua expiação se, com o poder absoluto de decidir o final, ela é em certa medida Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade, nenhum ser superior a quem ela possa apelar, com quem possa reconciliar-se ou que possa perdoá-la. Não há nada para além dela. Foi ela que marcou os limites e os termos, com a sua imaginação. Não há expiação para Deus, nem para os escritores, mesmo que sejam ateus. É uma tarefa impossível, e a questão é precisamente essa. O que conta é a tentativa.” (1)
Como se vê, “Expiação” é realmente um filme muito interessante, muito curioso ainda ao nível da narrativa (boa e eficaz a adaptação do dramaturgo Christopher Hampton (português, nascido nos Açores, descobri agora), que parte do belíssimo romance de Ian McEwan, e o transfere sem alterar o espírito para o cinema. Consegue proezas dignas de registo, como, logo de início, a forma como nos dá duas versões de um mesmo acontecimento, quando visto, ao longe, através do vidro de uma janela, e quando presenciado e vivido por um dos protagonistas da cena. O processo repete-se com avanços e retrocessos na narrativa, mas talvez já sem a mesma justificação interior, ainda que com resultados interessantes. Reflexão pois sobre a criação artística (ou literária), sobre a procura da verdade, sobre a imposição ou não dessa verdade como prisma de criação.
Falemos ainda do excepcional desta obra: a partitura musical, da responsabilidade do italiano Dario Marianelli, e que mistura, ao longo de quase todo o filme, o matraquear da máquina de escrever com as notas musicais e outros ruídos, para criar um clima absolutamente absorvente e inquietante. Irreal. Boa a fotografia do irlandês Seamus McGarvey que mistura tons quentes e frios, e os altera a seu belo prazer. Veja-se como o verde pode ser, em cenas sucessivas, abrasador como o vermelho mais intenso (o assombroso vestido de Keira Knightley) ou frio e dolorosamente macerado (plano de Briony, aos treze anos a deitar-se num quarto forrado a verde). A realização é sensível, sensual e sumptuosa por vezes, mas deixa uma sensação de “um pouco mais de sol, e seria brasa.” Será que chega para atingir o Óscar de melhor filme do ano? Curioso não estar nomeado para o de melhor realização.

EXPIAÇÃO
Título original: Atonement
Realização: Joe Wright (Inglaterra, França, 2007); Argumento: Christopher Hampton, segundo romance de Ian McEwan; Música: Dario Marianelli; Fotografia (cor): Seamus McGarvey; Montagem: Paul Tothill; Casting: Jina Jay; Design de produção: Sarah Greenwood; Direcção artística: Ian Bailie, Nick Gottschalk, Niall Moroney; Decoração: Katie Spencer; Guarda-roupa: Jacqueline Durran; Maquilhagem: Sarah Jane Cosgrove, Ivana Primorac, Andy Seston, Matthew Smith, Elizabeth Yianni-Georgiou; Direcção de produção: Erica Bensly, Simon Fraser, Deborah Harding; Assistentes de realização: Tom Brewster, David Daniels, William Dodds, Stewart Hamilton, Candy Marlowe, Thomas Q. Napper, Josh Robertson, Michael Stevenson; Departamento de arte: Tim Browning, Laurent Ferrie, Oliver Goodier, Sarah Miller, Adrian Platt, Sarah Stuart, Tom Whitehead, Tracey Wilson; Som: Catherine Hodgson, Becki Ponting, Chris Sturmer; Efeitos especiais: Mark Holt; Efeitos visuais: John Moffatt; Produção: Tim Bevan, Liza Chasin, Richard Eyre, Eric Fellner, Robert Fox, Jane Frazer, Debra Hayward, Ian McEwan, Paul Webster; Companhias de produção: Working Title Films, Relativity Media, Studio Canal.
Intérpretes: Saoirse Ronan (Briony Tallis, 13 anos), Ailidh Mackay, Brenda Blethyn (Grace Turner), Julia West (Betty), James McAvoy (Robbie Turner), Harriet Walter (Emily Tallis), Keira Knightley (Cecilia Tallis), Juno Temple (Lola Quincey), Felix von Simson (Pierrot Quincey), Charlie von Simson (Jackson Quincey), Alfie Allen (Danny Hardman), Patrick Kennedy (Leon Tallis), Benedict Cumberbatch (Paul Marshall), Peter Wight, Leander Deeny, Peter O'Connor, Daniel Mays, Nonso Anozie, Michel Vuillermoz, Nick Bagnall, Charlie Banks, Jamie Beamish, Madeline Crowe, Scarlett Dalton, Michelle Duncan, Matthew Forest, Romola Garai (Briony, 18 anos), Vivienne Gibbs, Olivia Grant, Ben Harcourt, Jack Harcourt, Paul Harper, Mark Holgate, Ryan Kiggell, Katy Lawrence, Neil Maskell, Gina McKee, Anthony Minghella (entrevistador), Jade Moulla, John Normington, Georgia Oakley, Alice Orr-Ewing, Catherine Philps, Jay Quinn, Vanessa Redgrave (Briony Tallis, velha), Bryony Reiss, Jérémie Renier, Kelly Scott, Billy Seymour, Sarah Shaul, Anna Singleton, Richard Stacey, Emily Thomson, Tilly Vosburgh, Ben Webb, etc.
Duração: 130 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Classificação etária: M/12 anos; Locais de Filmagem: Aldwych Underground Station, Aldwych, Holborn, Londres, Inglaterra, Data de estreia: 17 de Janeiro de 2008 (Portugal);

Nomeações para “Expiação” (7): Filme; Actriz Secundária (Saoirse Ronan); Argumento adaptado (Christopher Hampton); Direcção Artística (Ian Bailie); Fotografia (Seamus McGarvey); Guarda-Roupa (Jacqueline Durran); Música (Dario Marianelli).
Muitas hipóteses em música, fotografia e argumento adaptado.

(1) “Expiação”, de Ian McEwan, tradução de Maria do Carmo Figueira, Gradiva, 2002

4 comentários:

Hugo Cunha disse...

Isto sim é cinema do bom,(tem bons planos de realização, as várias visões de um mesmo acontecimento estão muito bem conseguidas e o verde chega a ferir de tão real e marcante que é)mas tambem concordo consigo em que falta algo não sei o que, para ser algo mais,para ser uma obra prima, não deixando de ser do melhor que se viu nos ultimos anos.

Ida disse...

Ai querido Mr Movie, sempre me deixas com água na boca e nunca posso satisfazer a vontade advinda das tuas aliciantes impressões. Beijo nublado de pré-carnaval (que, aqui, é muito mais que entrudo!).

Klatuu o embuçado disse...

É, sem dúvida, um bom filme, mas despudoradamente «mentiroso»... a vida é mais bidé.

Abraço.

Ana Paula Sena disse...

Vi hoje o filme e merece-me reflexão.Só por si,isso é o que mais aprecio num filme.
Não sendo um "grande" filme (também concordo que falta "qualquer coisa"), é um belíssimo filme. Muitos aspectos são de assinalar positivamente mas julgo que a apreciação do L.A. é bastante detalhada e elucidativa. Tudo o que possa vir a acrescentar é apenas a minha visão pessoal.
Concordo no palpite para as nomeações. Fazem todo o sentido, depois de ter visto o filme.
O Ian McEwan também está de parabéns. Não sendo dos escritores que mais aprecio, sei-o indiscutivelmente bom como narrador e criador de enredos que fazem justiça à própria vida.

Obrigada por toda a informação e pela partilha da sua visão de especialista. :):)