segunda-feira, março 24, 2008

SARAJEVO, IMPRESSÕES, I

IMPRESSÕES DE UMA PASSAGEM RÁPIDA
POR SARAJEVO, I
Escrevo este texto com uma vulgar “uni-ball eye” azul, trazida de Lisboa, mas poderia estar a escrever coma uma esferográfica encrostada no interior de um invólucro de bronze de uma bala, que se encontram à venda em muitas das lojas turísticas da cidade velha de Sarajevo. Não preciso do recurso a essa evidência de relativo mau gosto para ter a presença da guerra à minha volta a cada passo que se dá na cidade. Alguns prédios estão já recuperados, outros, recentes, erguem-se imaculados, mas muitos ostentam feridas apenas tapadas com cimento de várias tonalidades, o que as deixa bem à vista, mas camufladas. Há, no entanto, ainda milhares de casas esventradas, ou com pequenas crateras nas suas paredes ou muros, ou salpicadas por buracos produzidos pelo impacto de balas e de granadas. Sarajevo é uma cidade única, por muitas razões, também por esta. Há pouco mais de dez anos combatia-se aqui, nesta rua por onde passo agora, e em qualquer outra, com uma ferocidade inimaginável. Quando, por essa altura, entre 1992 e 1995, li nos jornais relatos de matanças, quando me contavam os assassinatos aqui praticados por “snipers” que abatiam nas ruas indiferentemente homens, mulheres e crianças, estava longe de pensar vir alguma vez a caminhar por estas avenidas numa manhã de Inverno solarenga. Pacificamente. Como se nada tivesse acontecido, por um lado, mas com a imagem da guerra, da dor, do sofrimento, da morte perante mim, em cada prédio, em cada rosto. O paradoxo completo.
Mas os bósnios são gente com uma longa tradição de convivência pacífica entre povos diversos e diferentes religiões, mas também de exacerbadas reacções violentas. Foi aqui mesmo, nesta esquina de uma rua de Sarajevo, ao lado de uma pequena e elegante ponte sobre o rio Miljacka que atravessa toda a cidade, que o jovem estudante Gavrilo Princip, pertencente ao grupo político nacionalista “Jovem Bósnia (Mlada Bosna)”, desferiu tiros fatais sobre Franz Ferdinand von Österreich, arquiduque da Áustria-Hungria, e sua mulher, a princesa Sofia, Duquesa de Hohenberg, grávida. Este assassinato iria desencadear o início da I Guerra Mundial, um mês depois. Agora há lápides no chão e nas paredes, um pequeno “Museu de 1914, Assassinato em Sarajevo” e uma fila de turistas e curiosos a espreitar a pistola que lançou as balas que mudaram a trajectória do mundo, no dia 28 de Junho de 1914, ou a olhar um excerto de um filme com Christopher Plummer (Arquiduque Ferdinand), Florinda Bolkan (Sofia), Maximilian Schell (Djuro Sarac) e Irfan Mensur (Gavrilo Princip), uma realização do jugoslavo Veljko Bulajic, que recebeu em Portugal o título “Aquela Vermelha Manhã de Junho” (Sarajevski Atentat), uma co-produção jugoslava, checoslovaca, húngara e alemã federal (o que o mundo mudou depois de 1975, data da produção deste filme!).
Mas este episódio não foi infelizmente único na história da cidade. Por aqui passaram depois fascistas, nazis, comunistas, até se chegar à independência em 1990, após a queda do Muro de Berlim e ao desfazer do império soviético. Nada do que ficou para trás foi pacífico. Os nazis recrutaram aqui milhares e milhares de judeus para os seus campos de extermínio, o que se compreende, pois durante cinco séculos os judeus se refugiaram nestas terras, fugindo das perseguições que se lhes movia pela Europa e fora da Europa. Julgavam estar a salvo, o que foi uma realidade até à chegada de Hitler ao poder. A anexação dos Balcãs trouxe a perseguição de novo e o genocídio.
Com os comunistas a tolerância imperou de alguma forma. Tito foi de todos os dirigentes comunistas do Leste Europeu, aquele que procurou manter alguma distância para com Moscovo e alinhavou uma neutralidade de “não alinhado”, que ainda hoje deixa saudades, ao que dizem e pelo que se vê. Estátuas que se mantêm erguidas, estrelas vermelhas, t-shirts com a esfinge do estadista, ruas e locais com o seu nome. Uma das maiores avenidas, chama-se Tito. Muito poucos parecem desejar o seu regresso, mas não serão também muitos com contas a acertar com Tito. Reservam-lhe um lugar no panteão da memória e pronto. Contas saldadas.
Contas saldadas parece ser o que há mais por aqui. O que veio a seguir à independência foi de tal forma brutal que as pessoas não riem facilmente, não querem mais nada do que viver. Viver e deixar viver. Ninguém parece interessado em tirar desforço, vingar, ajustar contas. Para horror chega o que já passou. Sarajevo parece agora uma cidade pacífica, calma, tolerante, cordata. Numa das ruas principais, que nos leva até à cidade velha, começamos por ter junto a um jardim a Igreja Ortodoxa Sérvia, a seguir passamos pela Catedral Católica, um pouco mais adiante uma imponente Mesquita Muçulmana cujas preces se estendem por vários quarteirões, e não muito longe uma Sinagoga Judaica. E assim por diante. Para todos os credos.
Nas ruas há rapazes e raparigas de cabelos soltos, louros, escuros, castanhos, foulards islâmicos, hijabs, chadors e burcas de todas as cores e todos falam entre si, sem hesitações. Mas sabe-se como são estas questões de Fé. Basta um rastilho e cada um reclama para si “a Verdade”. É bonito ver esta harmonia, mas sente-se que se caminha sobre um barril de pólvora ou um vulcão. Não tanto na gente mais nova, mas entre os que já passaram os trinta ou os quarenta anos. Numa conferência de imprensa do Sarajevo’s Winter Festival em que a delegação portuguesa era apresentada aos meios de comunicação social bósnios, um padre católico apresentou igualmente uma exposição de artistas plásticos organizada contra a fome. Bastou uma palavra fora do contexto, que obviamente não sei qual foi, pois não domino a língua local, para levar uma jornalista a replicar com azedume. O director do festival explicar-me-ia depois o caso, confirmando as suspeitas. A jornalista agastada, protestava. A Fé tem destas coisas e deixa pouco lugar à tolerância. É a Fé que impõe a discórdia. Quem tem Fé, quase sempre é cego para a Fé dos outros, pois que a sua Fé é a certa, ou não seria a sua Fé. A Fé implica, de certa forma, intransigência. Se temos Fé em algo é porque acreditamos esse algo ser único, autêntico e verdadeiro. Logo… O mesmo não se pode passar com outros. Idolatras que se encontram enganados e a quem é preciso chamar para a nossa Fé, ou aniquilar para não propagar heresias. Há sempre a tendência para alargar a nossa Fé e anular a dos outros, pois se a Fé dos outros não é autêntica, já que autêntica é a nossa. É tão fácil tentar fazer progredir a “Verdade”, a “nossa Verdade”, e anular as falsificações. Logo, viver em harmonia, em terra de diferentes Fés é difícil, mas absolutamente espantoso de surpreender. Aconteceu por estes dias em Sarajevo. Ouvir na rua as rezas dos muçulmanos que se erguem das suas mesquitas, e ver, logo ali ao lado, os católicos e os ortodoxos, os judeus e outras minorias co-habitarem civilizadamente foi uma experiência inesquecível e uma lição para todos e para o futuro. Não é difícil viver em comum, basta respeitar e ser respeitado. Não agredir. Mas, como é precária esta harmonia. Basta um dia alguém achar que é uma agressão ouvir, sem o querer, as rezas dos muçulmanos que se nos impõem pelas ruas. Um exemplo apenas.
Agressão foi o que aconteceu durante três anos e meio em Sarajevo. Depois das diferentes independências que resultaram do desmembramento da Jugoslávia de Tito, sete estados e duas autonomias, a Sérvia e a Croácia disputaram o território da Bósnia. Os bósnios não esquecem um embaixador português que dizem estar por detrás da assinatura desse tratado de futura divisão da Bósnia e Herzegovina. O pretexto para o ataque de 1992 foi o facto de haver no território bósnio uma parcela habitada quase exclusivamente por sérvios, que pretendiam que esta terra fosse anexada à nação sérvia. Os bósnios retorquiam com o argumento da região pertencer ao seu país, que os sérvios podiam lá viver livremente e pacificamente, mas que não podiam levar o território consigo para outro país. Foi quanto bastou para a Sérvia, dirigida pelo presidente Milosevic, sitiar Sarajevo durante mais de três anos. Obviamente que nada disto é tão simples como se conta. Milosevic procurava manter o máximo da unidade política da Jugoslávia de Tito, os países que se iam “libertando” do jugo sérvio estavam apoiados por americanos e europeus, que pretendiam precisamente o contrário, dividir a Jugoslávia de Tito para melhor reinar. Não causa por isso qualquer surpresa saber-se que Milosevic acabaria no Tribunal Internacional de Haia, acusado como criminoso de guerra, contra uma ajuda financeira à Sérvia de 1,300 milhões de dólares de ajuda para a reconstrução. Vá-se lá saber quem tem razão ou deixa de a ter, numa história mal contada por todos os lados e onde todos parecem não sair bem no retrato. Não foi no entanto a raia miúda, a que morreu aos milhares, quem começou a guerra.
Como a cidade fica num vale, atravessada por um rio, e rodeada por pequenas montanhas, os sérvios colocaram as suas peças de artilharia no alto dos montes e bombardearam sistematicamente a cidade. O cume das montanhas fica a meia dúzia de quilómetros do centro da cidade. Era fácil acertar no que se queria. Assim foi. Durante mais de três anos. Mas atiradores isolados iam matando a seu belo prazer pela cidade tudo quanto mexia no local errado à hora errada. Fala-se em milhares de crianças mortas assim, a atravessar a rua, a sair de casa. Não já um crime, uma vergonha para a Humanidade. Em finais do século XX, na Europa. Até onde pode chegar a barbárie. “Une folie!”, não se cansa de repetir Ibrahim Spahic, director do Sarajevo Winter Festival.
Nessa altura este festival já exista há muito. Continuou a existir, não prescindindo dos seus convidados estrangeiros. Digam-me então, se sonharem, como se introduziam as companhias e orquestras que iam do exterior, para representar e tocar no meio das ruínas (há fotografias do facto e mesmo cartazes do Festival a testemunharem-no)? Companhias de teatro como as de Avignon não se recusavam a ser convidadas e evitavam que o isolamento de Sarajevo fosse total, penetrando na cidade através de um túnel subterrâneo, com entradas e saídas secretas que colocavam os intérpretes no meio de improvisados palcos, perante selectas assistências que, nem o isolamento nem a penúria impediam de trajar de cerimónia. Saíam depois pelo mesmo túnel directamente para o aeroporto. Dizem-me que as mulheres podiam não ter de comer, mas não abdicavam de se pintar e maquilhar com primor, não só para as cerimónias, mas todos os dias.
Chegamos então às mulheres. Muito haveria a dizer. Hoje em dia parecem o lado mais voluntarista da sociedade bósnia. São as mais modernas a vestir, as mais desenvoltas a andar, as mais altivas no olhar, as mais desempoeiradas no comportamento. Dir-se-ia que levam tudo à sua frente, apesar de estarem numa situação algo fragilizada frente aos homens: há sete mulheres e meia para cada homem neste país vindimado pela guerra. São elas, porém, que riem e gracejam, sobretudo as mais jovens, são elas que se passeiam por ruas e avenidas, jardins e esplanadas, são elas quem usa o cabelo solto ou preso numa hijab ou numa burca. Há muçulmanas que conseguem mesmo fazer sobressair os seus belos olhos, azuis, esverdeados, castanhos ou pretos, com tecidos de tons variados que lhes moldam a cabeça e condizem com a cor dos olhos. Todas se esforçam por ter corpos esculturais, e não se escusam no galanteio – “os portugueses são todos assim?”, perguntava uma simpática guia que se lamentava de só nós sermos “normais”, lastimando que os japoneses não saíssem dos quartos do hotel e de os nórdicos quase não falarem.
Almira é uma jovem empregada num restaurante onde se come uma excelente sopa tradicional, “bed soap”, uma canja com legumes e um molho branco que deve ter natas e algo mais. Depois vem o “cevapi”, pequenos rolos de carne picada, que se apresentam no interior de um pão muçulmano. Come-se enquanto se bebe um iogurte, não doce, que combina magnificamente. A gastronomia é boa. Almira tenta explicar-me como se faz, a mim que sou um aprendiz de cozinheiro cheio de vontade de aprender e experimentar. Como sairá a canja que um dia destes irei tentar? Almira ri. Tem vinte anos e não viveu a guerra. Os pais estavam na Alemanha e foi lá que soube da tragédia. Almira ri. Soube da tragédia ao longe e quando voltou, voltou para a reconstrução. Mirsada, que nos foi buscar ao aeroporto, em nome da organização do festival, olhos doces e vestida a rigor, um rigor demasiado hirto, composto, sem uma mácula, vinte e dois anos inicialmente de poucas falas, não conheceu também na pele o horror da guerra. Não é de Sarajevo, passou a infância numa aldeia longe da capital, e depois estudou na Alemanha. Eva, que serviu de intérprete na conferência de imprensa, porque percebia um pouco de espanhol (tivera um amigo ou namorado espanhol), também não passou a juventude em Sarajevo. Com maior ou menor dificuldade, todas conseguem rir, todas conseguem contar um pouco da sua vida. Mas os mais velhos, esses que conheceram os tempos duros do comunismo – mesmo não alinhado – e os anos de horror da guerra, esses dificilmente sorriem sequer. Um antigo coronel da Jugoslávia de Tito, hoje reformado (e desempregado, gosta de acrescentar), conduz o carro do director do festival que nos leva a conhecer a neve e a estância de desporto de Inverno, bem já no interior da República Sérvio-Bósnio da Srpska, onde decorreram os Jogos Olímpicos de Inverno de 1984, hoje uma das coroas de glória dos bósnios que se continuam a orgulhar dessa realização. Cara fechada, fala pouco, mas conserva um ar doce. O passeio é deslumbrante, a neve aumenta de volume à medida que se sobe na estrada, os efeitos são de cortar a respiração de um lado e do outro da estrada, com a vegetação sublinhada a branco, o verde a esconder-se, os imponentes troncos das árvores a imporem uma dignidade sem mácula. Lá no cimo, os hotéis são excelentes e convidam ao descanso. O coronel, porém, passa por casas devastadas à saída de Sarajevo, e explica por onomatopeias – “Bum! Bum! Bum!”. Não sorri. Apenas esboça um olhar nostálgico que o transforma a si e ao seu enorme físico num prazenteiro urso de peluche. Com a alma destruída pelo muito que viu. Mas quando nos diz, apontando o peito, que é Jugoslavo, e nós lhe respondemos, tocando no nosso peito, que somos portugueses, abre-se num sorriso e num abraço, enquanto grita “Luís Figo!”

6 comentários:

Anónimo disse...

Caro Lauro António,

nós somos alunos de uma turma de 12º ano, da Escola Secundária Ferreira Dias, no Cacém. No âmbito da nossa disciplina de Área Projecto decidimos escolher o tema Cinema, por ser um tema que interessa a todos os membros do grupo, para trabalhar ao longo do ano. Entrevistas e testemunhos de pessoas ligadas à área do Cinema Português, tal como o seu caso, enriqueceriam muito o nosso trabalho, pelo que gostaríamos de saber se nos poderá dar essa disponibilidade e contactar connosco para nos dar algumas informações, algumas dicas, ideias, e quem sabe até para marcar uma entrevista. Como não é possível adicionar documentos aqui, não pudemos acrescentar o nosso certificado a comprovar que o trabalho é real. Se possível, contacte para o e-mail kayer_witch@hotmail.com , que nós providenciaremos esse certificado se tal for necessário. Aguardamos uma resposta.

Com os melhores cumprimentos,
Andreia Silva, Daniela Ramos, David Lai, Filipa Marques

fcorado disse...

que saudades de sarajevo...
beijinhos

Anónimo disse...

Chamo-me André e tenho 16 anos e sou um apaixonado pelo cinema, e o meu realizador de eleição e esse grande génio já falecido João César Monteiro que nasceu num país pequeno demais para a sua genialidade, nunca compreendido nem homenageado devidamente permita-me a ousadia de lhe perguntar para quando um comentário a toda a sua obra... Parabens pelo blog e continuação de um optimo trabalho

Anónimo disse...

Uma peça muito bonita, tocante. Viajar por esse mundo fora dá-nos a possibilidade extraordinária de conhecer, aprender, crescer, sem nehuma sombra de obrigação. Guardamos nos olhos, no olfacto, no gosto, no tacto o que é diferente, excêntrico, chocante, belo, incomum. E que venha a parte II. Beijinhos

Luis Eme disse...

Gostei muito de ler...

Excelente panorâmica das balcâs... e dessa cidade, cujo nome, por si só, já é único...

obrigado LA

A OUTRA disse...

Sinto uma imensa tristeza quando penso nestes paises, que devem ser tão bonitos e gente tão sofrida!
Os que aguentaram as piores situações endureceram, os que estiveram fora são indiferentes ao sofrimento desses, porque não estando lá nada sentiram e não podem compreender o que no coração deles ficou.
É muito complicado!...
Cpts
Maria