segunda-feira, março 31, 2008

SARAJEVO, IMPRESSÕES, II


a cidade velha
IMPRESSÕES DE UMA PASSAGEM RÁPIDA
POR SARAJEVO, II
O hotel Bósnia fica bem no centro de Sarajevo, numa das extremidades de uma pequena praceta, frente a um teatro, e não muito longe do Teatro Nacional, onde se representava Eugene O’Neil, “Longa Jornada Para a Noite”. É um hotel sem luxo, mas agradável, simples, eficaz, muito bem situado, onde descobri um chá de menta verdadeiramente delicioso. O café bósnio não é nada de desprezar, mas depois de ter provado este chá de menta (de origem marroquina certamente) neste hotel e também numa pastelaria aberta até tarde, perto da Avenida Tito, não mais quis outra bebida (enfim, uma forma de dizer!). Viajar é excelente para descobrir cidades, paisagens, gentes diferentes, mas também para saborear estes pequenos prazeres, de descobrir novos sabores, novas cores, novas formas, novos odores. Cada cidade parece ter o seu odor e, quando novo ainda, comecei a sair de Portugal, algo que nunca mais esqueci foram os odores de certas ruas de algumas cidades. O cheiro de Paris nada tem a ver com o de Londres, o de Nova Iorque é muito diferente do do Rio de Janeiro, os cheiros que levamos de Lisboa não se comparam aos de Amesterdão. É bom recordar odores de cidades, como é bom saborear à distância fragrâncias distintas. Procuro de loja em loja, nas ruas de Lisboa, um chá de menta igual ao que descobri em Sarajevo. O de “Mariage” aproxima-se, um outro de que não retive a marca, anda muito perto, um em saquinhos de pano, outro em folhas livres que se misturam na água, mas nenhum é o de Sarajevo. O Teatro Nacional
Hotel Bósnia, ou “Bósnia Hotel” como se lê no original, faz lembrar um romance de Graham Green, espionagem, corrupção, filmes de acção e mistério, e sente-se na cidade um pouco desse clima, muito embora a aparência seja da maior calma e pacatez. Mas há qualquer coisa a agitar-se por debaixo dessa passividade, sente-se, percebe-se que o local é, ou terá sido, um entrecruzar de informações confidenciais, de segredos disputados, de mistérios cultivados, em nome de interesses escusos. Quando se entra no Coloseum-Club, um casino que existe na margem esquerda do Miljacka, onde se joga nas maquinetas de moedas, iguais às de qualquer outro casino (até lá fui encontrar as Cleopatras da minha perdição, em Lisboa ou Estoril), a atmosfera é pesada. Não há muita gente, as salas são pequenas, o salão de jantar e de festas (e de espectáculos, preferencialmente de artistas dos Balcãs, percebe-se pelos cartazes antigos dispersos pelas paredes), assemelha-se aos velhos salões dos casinos portugueses, um pouco “démodée”, apesar de ser de construção recente, mas há um ar, uma atmosfera que relembra o “Rick’s Café American”, sem o perfume de Ingrid Bergman, nem o rasto de Bogart, apenas com a ameaça pendente. Jogam-se umas moedas e perde-se, como em todo o lado.
A ocidentalização é por aqui apressada nalguns aspectos, como o deve ter sido em toda a Europa de Leste. Por um lado havia, seguramente, o desejo de conhecer “o proibido” (nunca me esquecerei das camaratas de uma escola, em Bupapeste, em 1975, ainda em pleno regime comunista, com as paredes carregadas de posters da Coca Cola, da Lewis, do basquetebol americano, tal como havia Che Guevara, Lenine ou Mao Tsé Tung no Ocidente), mas também a avidez das multinacionais ocidentais em ganharem novos mercados. Depois há intermediários pouco escrupulosos, máfias que se instalam, e o resultado é uma sociedade híbrida, e um cheiro a crime organizado que tresanda. É verdade. Ou é a nossa imaginação a funcionar, em virtude do muito que se leu e se viu ou ouviu, ou é mesmo o sexto sentido a funcionar. Pressente-se corrupção, economia paralela, jogos viciados em todos os xadrezes.

Os Correios, uma estrutura adaptada que vem da era de Tito

Mas há ainda muita persistência de uma sociedade comunista que tinha marcas muito fortes, mesmo numa sociedade como esta que era tida como não alinhada. A hierarquia e o respeito, ou melhor não direi respeito, mas o terror inspirado pelos superiores é algo que se herdou e que ainda não se abandonou. Há medo na relação entre as pessoas, quando a diferença hierárquica existe. Quem manda é obedecido, cegamente, sem uma palavra de hesitação ou dúvida. Olham-se respeitosamente os chefes, os dirigentes, os que detêm qualquer tipo de poder, qualquer que este seja. Desde o dirigente político ao patrão da pastelaria, do dono da loja ao agente de autoridade. Vira o mesmo em Budapeste, durante várias visitas que efectuei na década de 70, para tomar conhecimento com a cinematografia húngara. Uma manhã, numa entrevista com o director da Húngaro Films, vi funcionárias em pânico para que tudo corresse bem e os cafés fossem servidos tal como o chefe ordenara, o que me retirou todas as esperanças naquela “sociedade sem classes”. Elas continuavam a existir e ali mais estratificadas do que no Ocidente. Em Sarajevo, quase vinte anos depois da queda do Muro de Berlim, os sintomas mantêm-se. Manda quem pode, obedece quem está por baixo. As manifestações de protesto que se movimentam pela avenida Tito aos sábados de manhã agrupam meio milhar de tradicionais que parecem exercer um ritual semanal ou mensal, tal como ir à missa ou ao futebol. Um hábito, quase sem expressão. Ninguém parece por em causa o poder.
Curioso exercício de poder, diga-se de passagem. Há duas repúblicas federadas na Bósnia-Herzegovina e existem três Presidentes da Republica, que se vão revezando no exercício do cargo. Esta república presidencialista tripartida oscila entre um representante bósnio-muçulmano (bosníaco), um croata e um sérvio. De oito em oito meses, muda de Presidente, o que pode anular a ameaça de monotonia, mas deve causar alguma instabilidade nas instituições. O cargo de presidente é, pois, exercido em rotatividade pelos três membros da presidência da Bósnia e Herzegovina (um bósnio, um sérvio e um croata), ao longo do seu mandato de quatro anos na presidência. Os três membros da presidência são eleitos directamente pelo povo, com votos da Federação para o bosníaco e o croata, e da República Srpska para o sérvio. O presidente do Conselho de Ministros é nomeado pela presidência e aprovado pela Câmara dos Representantes. Depois, é ele quem nomeia os ministros do governo.
Servindo-me de informações colhidas na Wikipedia, “a Assembleia Parlamentar é o corpo legislativo da Bósnia e Herzegovina. Consiste de duas Câmaras: a Câmara dos Representantes e a Câmara dos Povos. A Câmara dos Povos inclui 15 delegados, dois terços dos quais provenientes da Federação (5 croatas e 5 bosníacos) e um terço da República Srpska (5 sérvios). A Câmara dos Representantes é composta por 42 membros, dois terços eleitos pela Federação e um terço eleito pela República Srpska.”
O Tribunal Constitucional da Bósnia e Herzegovina é o supremo e final árbitro nas matérias legais. É composto por nove membros: quatro são seleccionados pela Câmara dos Representantes da Federação, dois pela Assembleia da República Srpska, e três pelo Presidente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem após consultas com a Presidência.
O Palácio Presidencial, na Av. Tito
Muitos ilustres dignitários tentam manter privilégios antigos de sectores importantes da sociedade dita comunista. As forças armadas ou, melhor dizendo, o exército detinha um enorme palácio para seu deleite. Era o Army Hall, espécie de Casino, com ou sem jogo, não o sei, mas aberto a saraus mundanos e culturais, bailes, festividades diversas, que se dispersavam por grandes e majestosos salões, auditórios, salas e gabinetes de trabalho. O Army Hall mantém-se em funcionamento, e com idênticas funções, agora aberto ao público em geral. Foi lá, num muito simpático auditório para duzentas e tantas pessoas, que decorreu a exibição de obras minhas, do Frederico e a selecção de obras premiadas do Cine Eco 2007. A qualidade técnica não é má, o ecrã poderia ser um pouco melhor, a comodidade acima da média. Existe tradução para bósnio de todas as obras exibidas e efectuada pelo festival. O tradutor de “Manhã Submersa” e das outras minhas obras apresentadas, submergiu-me de elogios que me deixaram sem palavras.

O "The Army Hall" tomado pelo Festival de Inverno

O público era diversificado, alguns estrangeiros, meia dúzia de brasileiros, “que iam ouvir falar “português”, muitos jovens, algumas escolas, interessadas no festival certamente. No grande salão de festas do primeiro andar, à noite, uma dinamarquesa deu um concerto de jazz. No dia seguinte, a portuguesa Cátia Garcia e os seus guitarristas apresentaram um concerto de fado, “O Fado a 24 Imagens por segundo” (ou seja, um antologia de fados, revisitados, que apareceram em filmes portugueses). O palco era outro, num Centro Cultural com um auditório para uns impressionantes oitocentos espectadores, que não deixaram cadeiras vazias e aplaudiram entusiasticamente a nossa canção, obrigando a quatro “encores”. Curiosamente, entra-se nesta majestosa sala através de um pátio que mais parece um parque de estacionamento de automóveis. Subidas as escadarias, depara-se com um anfiteatro que ocupa internamente o espaço de um largo quarteirão. O sucesso foi tal que, à saída, havia público afirmando que tinha saído do “paraíso”. O fado e a canção portuguesa parecem ter sucesso garantido em Sarajevo. Falam-me do êxito de Madredeus, aqui há anos, e do de Joana Amendoeira, no ano passado.
Voltando às elites privilegiadas, é fácil perceber, vagueando pelas principais avenidas da cidade, e apesar de não se dominar a língua, quem eram os que beneficiavam dessas prerrogativas. Muitos edifícios ainda se encontram atribuídos às forças armadas, à polícia, ao governo, aos sindicatos… Alguns em funcionamento ainda. Mudaram-se certos dirigentes (há quem diga mesmo que não foram os dirigentes que mudaram, mas as suas políticas, para melhor se manterem onde estavam, acomodando-se), outros “actualizaram-se” e ajustaram-se à nova nomenclatura, mas o peso da herança, esse está lá, bem visível. Se houver vontade de ultrapassar o sindroma, vai levar anos e anos. Mas será que há essa vontade?
Os jovens ostentam no seu dia a dia uma atitude diferente, mais livre, menos preconceituosa, mas assimilam o contrário descontraidamente: os jeans dominam em 90%, a coca- cola anda na mão de muitos que transitam nas avenidas, os vários canais de televisão, estatal e privada, são do mais pimba que se possa conceber (mesmo para quem não conheça a língua), misturando muita cantoria estilo Festival da Canção, jogos vários, telenovelas mexicanas ou venezuelanas, filmes ocidentais de pancadaria ou dramas de fazer chorar a calçada, ao lado de um ou outro canal com preocupações mais culturais. O que não quer dizer que não gravem e exibam tudo quanto por lá passa. Falando do Festival de Inverno, tudo era gravado por diferentes canais de TV: conferências de imprensa, apresentações, concertos, debates, exposições, entrevistas de rua… A comunicação social também parece alinhar pelo mais fácil. Tablóides e revistas que relembram a imprensa cor-de-rosa cá do burgo. Dominam. Numa livraria muito especial fui comprar um jornal de cultura, que não deve ter muita difusão, e folheei uma revista cultural. Difusão restrita, obviamente.
À vista de todos, em todas as principais avenidas da cidade, ao lado da polícia, ou à sua frente, há expositores com dezenas e dezenas de títulos de filmes, concertos, desenhos animados, à venda, em DVDs piratas. Filmes bósnios (com legendas em inglês, muitos), filmes antigos, clássicos, e todos os que disputaram os Oscars uma semana antes. Os que não tinham selo, custavam vinte marcos convertíveis (cerca de dez euros), mas a maioria anda pelos 5 euros. Não há lojas onde se vendam DVD legais (pelo menos não as vi e perguntei por elas). “Haverá Sangue”, “Este País não é para Velhos”, “Juno”, “Sweeney Todd”, ou o último “Rambo”, “Ratatui” ou “Casablanca” adquirem-se por 5 euros, sem regatear. Um comprador queixava-se que “em cada dez comprados, só cinco funcionavam!” É a vida, rapaz!
Mas este estado ligeiramente “selvagens”, ou se preferirem, desregrado, simultaneamente irreverente e inquietante, leva a não haver qualquer tipo de restrições quanto a fumo, jogo, álcool, apesar de haver muitos restaurantes a asseguraram que não vendem bebidas alcoólicas. Não haverá nuns, haverá noutros, ao frequentador cabe escolher onde quer ficar. Nas ruas, os carros obedecem mal aos sinais, e quando cai o verde para acelerar, o melhor é mesmo não estar na frente, mesmo que se esteja nas barbas da polícia.
E, no entanto, quem sabe se por causa mesmo desta mistura agridoce de rebeldia e sofrimento, de paisagem geográfica e de património histórico, de vida cultural intensa e de pimbalhada à descrição, de culturas e civilizações entrecruzadas numa experiência fascinante e perigosa de convívio, quem sabe se por tudo isso, Sarajevo é terra que marca a nossa lembrança. Na viagem de regresso, a paragem no ultra moderno e ultra vigiado aeroporto de Munique, onde uma simpática portuguesa de Barcelos nos vendeu uma sandes e uma cola zero, assegurou a diferença e mostrou mais uma vez, se necessário fosse, que há muitos mundos dentro deste nosso mundo.

2 comentários:

Capitão-Mor disse...

Magnífica reportagem!!!! Parabéns!

Isabel - Xata disse...

Boa noite,

Com muito agrado li este seu artigo, pois não é a visão pimba ou inculta da maioria.
Guardo nos meus favoritos para ir lendo o resto.

Através das minhas fotos tento traduzir o meu amor pelo povo que somos, a riqueza natural das minhas terras (algarvo-alentejano-andaluza!), a minha visão da vida.
Se tiver tempo e desejar visitar:
http://www.ipernity.com/doc/xata/home/photos

Cordialmente,
Isabel Queiroz