

Um cão corre para a objectiva, o mesmo é dizer que corre em direcção ao público. Vem bem de frente, olhos nos olhos do espectador. Olhos raiados de sangue, dentes afiados, boca a espumar de raiva e ódio. Um segundo cão junta-se-lhe, um terceiro, um vigésimo, um vigésimo sexto. O desenho (de Yoni Goodman , excelente!) é duro, agressivo, as cores limpas, azuis de noite, amarelos dourados de luzes, os transeuntes afastam-se à passagem da matilha, cadeiras de esplanadas derrubadas, uma mãe que puxa para si o filho que tem ao colo, a corrida é impressionante de vigor até que tudo se suspende: os cães olham uma janela no cimo de um prédio, onde um homem os olha igualmente e se interroga. É esse homem que procura, num bar perdido na noite, Ari Folman, um realizador (o realizador de “A Valsa com Bashir”), e lhe conta o sonho obsessivo que o não deixa dormir: vinte e seis cães que o perseguem, tal como a memória de uma guerra passada, onde interveio vinte anos antes. Assim começa “A Valsa com Bashir”, um longa-metragem de animação, dirigida de forma totalmente inesperada por um israelita, abordando o conflito que opõe judeus e árabes, há largos anos, no Médio Oriente.
Esse amigo confessa a Ari Folman que não percebe o significado dos cães com que sonha e não recorda nada da guerra. Ari Folman também não se lembra da guerra por onde passara há vinte anos atrás e que ficou conhecida como Guerra do Líbano. O filme será uma procura dessa memória, invocando testemunhos de outros combatentes que tinham estado ao lado de Ari nesse conflito, sobretudo quando as tropas israelitas invadiram o Líbano e chegaram a Beirute, passando de caminho pelos massacres de Sabra e Chatila, que se tornaram tristemente célebres na altura e agora serviram de base de apoio para esta magnífica película de animação (que não é para crianças, mas sim “para adultos”, sem que a designação contenha qualquer referência a “sexo explicito”).



Sharon, quando candidato a Primeiro-ministro de Israel, lamentou as mortes e negou qualquer responsabilidade. A repercussão do massacre, entretanto, fez com que fosse demitido do cargo de Ministro da Defesa, na época.
Ari Folman foi um dos soldados israelitas que interveio na ocupação do Líbano, um dos que penetrou nas ruas da cidade, um dos que olhou o horror dos massacres, um dos que conheceu o pesadelo da guerra. A ele, como a milhões de outros soldados de qualquer guerra em qualquer parte do mundo, a memória acudiu para que a vida posterior fosse possível, e abafou as imagens do sofrimento. Chama-se a isso memória selectiva, a que enterra em zonas do subconsciente as recordações que ferem a existência do dia a dia. Há quem diga (muitos filmes o reafirmam continuadamente) que os soldados quando regressam a casa não sossegam em função das memórias traumáticas da guerra que viveram. Outros, como Ari Folman, comportam-se de maneira inversa: é a falta de recordações que os leva à inquietação e à procura desesperada do passado. De conversa em conversa com antigos camaradas de armas, o realizador vai recuperando as imagens perdidas, que figuram no filme como “flashbacks” de um puzzle que lentamente vai tomando forma. Ari Folman não vive obcecado pelas recordações, mas pela ausência delas. Diz: “Acho que é uma coisa muito pessoal. Acho que a maioria das pessoas suprime memórias dessa natureza por ser uma solução muito eficaz para a existência.” Aqui é a ausência dessas imagens que provoca a falha de consciência, o que é traumático. “Neste filme, sim. Mas apesar de tudo, as pessoas sobreviveram ao Holocausto. O que é que nós passámos em comparação com elas? Não é nada mau suprimir as imagens traumáticas. Mas quando vem tudo ao de cima, é preciso conseguir lidar com isso.”




Título original: Vals Im Bashir ou Valse avec Bachir ou Waltz with Bashir
Realização: Ari Folman (Israel, Alemanha, França, EUA, 2008); Argumento: Ari Folman; Produção: Ari Folman, Serge Lalou, Gerhard Meixner, Yael Nahlieli, Roman Paul; Música: Max Richter; Montagem: Feller Nili; Direcção artística: David Polonsky; Direcção de Produção: David Berdah, Verona Meier; Departamento de arte: Ya'ara Buchman, Michael Faust, Asaf Hanuka, Tomer Hanuka; Som: Aviv Aldema; Efeitos visuais: Feller Eran, Nitzan Roiy; Animação: Yoni Goodman; Companhias de produção: Bridgit Folman Film Gang, Les Films d'Ici, Razor Film Produktion GmbH, Arte France, Hot Telecommunication, ITVS, Israel Film Fund, Medienboard Berlin-Brandenburg, New Israeli Foundation for Cinema and Television, Noga Communication - Channel 8; Intérpretes (vozes): Ron Ben-Yishai, Ronny Dayag, Ari Folman, Dror Harazi, Yehezkel Lazarov, Mickey Leon, Ori Sivan, Zahava Solomon, etc. Duração: 90 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 1 de Janeiro de 2009; Estreia mundial: 12 de Junho de 2008.
3 comentários:
Caro Lauro António!
O flme de Ari Forman abre decididamente novas portas ao documentarimo, sendo na verdade uma obra que convida à meditação sobre o que se passa no Medio-Oriente e como diz na sua crónica, a paz só é possível se as duas partes o desejarem. E nunca nos poderemos esquecer que o valor de uma vida é idêntico, seja ela palestina ou israelita.
Quanto ao Líbano todos sabemos como convém à Síria, que a ex-Suiça do Medio-Oriente não regresse ao passado e se torne num território próspero, onde habitem em paz as suas comunidades religiosas. "O Círculo da Mentira" de Volker Schlondorff foi uma obra que me veio à memória quando vi o filme de Forman.
Abraço cinéfilo
Rui Luís Lima
Uma autêntica revolução do cinema de documentário. Uma visão completamente inovadora na forma de abordar as grandes questões que preocupam a humanidade. Grande filme!
Bom dia,
Excelente filme, também falo dele algures (no degrau). Gostei muito de o "encontrar" aqui neste blog, vou ficar atenta.
Cumprimentos
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