terça-feira, fevereiro 10, 2009

CINEMA: MILK

MILK
“Milk”, de Gus Van Sant, é indiscutivelmente um dos grandes filmes de 2008 e um dos mais sedutores objectos de arte cinematográfica presentemente em exibição em salas de estreia de Lisboa. O motivo central desta obra é a figura de Harvey Milk, o primeiro e talvez ainda o mais conhecido activista e político gay de toda a recente história norte-americana.
Harvey Milk, que nasceu em 1930, em Long Island, Nova Iorque, filho de judeus de origem leste-europeia, era um conservador nato, antigo combatente da guerra da Coreia, empregado na tradicionalista Wall Street e que, em 1964, fez campanha pelo republicano Barry Goldwater, que foi um dos mais radicais e extremistas candidatos reaccionários a presidente dos EUA que este País conheceu. Posteriormente, porém, as posições políticas e sociais de Milk foram-se atenuando e transferindo para o campo da “contra-cultura”, sobretudo a partir do momento em que resolveu assumir as suas orientações sexuais, mudando-se de Nova Iorque para São Francisco, cidade onde a percentagem de gays era então a maior dos EUA, e onde a vida boémia e intelectual era muito mais estimulante. Abriu consultório de advogado, entrou na vida política, concorreu a vários lugares públicos, foi eleito em 1977 para o Conselho de Supervisores da Cidade de São Francisco, e, em 27 de Novembro de 1978, ele e o Presidente da Câmara, George Moscone, foram assassinados por um colega supervisor, polícia tresloucado e fanatizado. O argumento de Dustin Lance Black parte dos últimos dez anos de vida de Harvey Milk para nos restituir um panorama histórico, político e social dessa época conturbada, e nos esboçar um retrato individual que com ela se cruza.
O filme começa mesmo em tom de “actualidades”, documentando com imagens a preto e branco, do ano de 1969, os conflitos que se produziram em N.Y, durante a violenta repressão aos homossexuais, presos em bares e conduzidos às esquadras em minúsculas carrinhas, espancados e injuriados publicamente. São imagens hoje estranhas, aquelas de gays algemados, e escoltados, rostos tapados por chapéus ou jornais, escondendo o opróbrio da situação, ou furtando-se à identificação pública que poderia ter graves consequências na família, no emprego, na rua. Ser gay nesses tempos, não tão recuados assim, era comportamento considerado ilícito e é isso mesmo que Harvey Milk recorda, ao longo do filme, quando, de gravador em punho, rememora aspectos da sua vida passada, perante a ameaça de morte que pairava sobre si. São esses registos que se vão intercalando na acção do filme e introduzindo novos capítulos. Como por exemplo, decorria o ano de 1970, o seu encontro com Scott Smith (James Franco) que se torna seu amante e uma personagem de forte impacto na sua vida. É com ele que deixa N.Y. em 1972, a caminho de São Francisco, onde abrem uma loja de fotografia na chamada área Castro, uma rua, ou um bairro, inteiramente dominada pela comunidade gay. É também aí que, anos mais tarde, conhece Cleve Jones (Emile Hirsch), um prostituto de Phoenix, com quem mantém uma relação, que terminará de forma trágica, é aí que inicia a sua acção de activista, sobretudo através de uma actuação junto do sindicato dos camionistas, impondo o emprego de gays, e oferecendo, em contrapartida, o apoio dos bares gays ao boicote a uma marca de cerveja.
Os seus discursos, que se iniciavam na rua, em cima de um pequeno caixote, começavam invariavelmente por uma frase que o tornou célebre: "My name is Harvey Milk and I want to recruit you," (“O meu nome é Harvey Milk e quero recrutar-te”). É também por essa altura que se associa à “leader” lésbica Anne Kronenberg (Alison Pill) que se torna igualmente pessoa influente na sua “entourage”. Com a chegada ao poder do Mayor Moscone (Victor Garber), Milk consegue ascender a Supervisor da Câmara, iniciando aí a sua principal campanha, em 1978, para contrariar a “Proposta 6”, que pretendia aprovar legislação que descriminava a liberdade sexual e impedia o acesso de gays ao ensino público, campanha que contava com apoios tão diversos como são os de Ronald Reagan e Jimmy Carter, e de uma popular cantora, Anita Bryant, que desencadeou violentos ataques aos homossexuais, baseando-se em princípios fundamentalistas de uma Convenção Baptista de Sul a que pertencia. Ao seu lado, o senador John Briggs (Denis O'Hare), foi outra força de bloqueio importante, que, aliás, se iria confrontar com Harvey Milk num debate no Estado da Califórnia, no conhecido “Orange County”, onde uma tirada de Milk entraria na História: “Se é verdade que as crianças imitam os seus professores, então deveria existir um número muito maior de freiras andando por aí.” (“If it were true that children mimicked their teachers, you'd sure have a helluva lot more nuns running around."). A proposta seria derrotada, o que foi considerado uma grande vitória de Milk e do seu movimento. Mas o fim de Milk estava à vista, quando o vacilante polícia Dan White (Josh Brolin), católico de ascendência irlandesa, e que chegara mesmo a ser considerado “um dos nossos” pelos gays, resolve tomar uma atitude drástica, subir as escadarias da City Hall de São Francisco e esvaziar um revólver nos corpos do “mayor” e do supervisor Milk. Seguiu-se uma das maiores vigílias de que há memória em São Francisco, com milhares de pessoas descendo as avenidas com velas nas mãos, partindo de “The Castro” em direcção ao City Hall.
“Milk”, quer pela estrutura narrativa, quer pela tonalidade da fotografia, procura inscrever-se num género a que se costuma chamar o docdrama, uma ligação entre a ficção e o documentário, onde se tenta reconstituir uma realidade, usando para isso a representação dramatizada de certos aspectos dessa realidade. No tom difere de uma biografia romanceada normal, onde a ficção se impõe desde início, mesmo que respeitando aspectos da verdade histórica. Normalmente o docdrama dá uma importância maior às imagens de arquivo do que acontece em “Milk”, mas realmente a organização geral do projecto, a cor das imagens, saturadas, e o próprio rigor da reconstituição encaminham-nos para o registo do docdrama, que resulta magnificamente – há uma “verdade” insofismável no que se vê, um dos aspectos mais interessantes desta obra que, por outro lado, radica numa certa tradição de cinema vanguardista ou alternativo, não fosse o tema a homossexualidade. Tecnicamente, portanto, e artisticamente, “Milk” é uma completa “reussite”.
Por outro lado, a interpretação de Sean Penn é perfeita. Diria, mais que perfeita, assombrosa. Foram vários os candidatos ou actores sondados para este papel. Sean Penn acabaria por ser eleito, sendo ele definitivamente um “não gay” (o que até levantou, na altura da rodagem, algumas objecções da comunidade gay). Mas o resultado final é brilhante, pela forma como o actor se investe na personagem, sem um excesso, sem nunca cair na caricatura, representando com a voz, com o rosto, mas igualmente com todo o corpo, cada músculo, cada gesto, cada olhar. Sean Penn é Harvey Milk no sorriso, mas também no andar, na forma de beijar, na pose, na manifestação de rua ou nos momentos mais íntimos passados com namorados. Uma atenção notável ao pormenor. Perfeito, uma invulgar lição de representar. A seu lado, todos os outros actores são excelentes.
Obra de uma delicadeza e pudor total, muito embora seja ostensiva nalgumas cenas de amor, “Milk” é seguramente um dos mais surpreendentes filmes deste início de ano, e um fortíssimo candidato aos Oscars, se estes não estivessem desde há muito atribuídos a outro aspirante. Sean Penn, porém, só por uma grande injustiça deixará fugir a atribuição do Oscar de “melhor actor”. (Atenção: não vi ainda o Mickey Rourke de "The Wrestler").Gus van Sant, o realizador, nascido nos EUA, em 1952, é autor de uma vasta obra, muito pessoal, onde a homossexualidade ocupa destacado lugar (o cineasta é assumidamente gay). Entre os seus títulos mais conhecidos contam-se “Mala Noche” (1985), “Drugstore Cowboy” (1989), “My Own Private” Idaho (1991), “Even Cowgirls Get the Blues” (1993), “To Die For” (1995) “Good Will Hunting” (1997), “Psycho” (1998), “Finding Forrester” (2000), “Gerry (2002), “Elephant” (2003), “Last Days” (2005), “Paris, je t' Aime” (episódio "Le Marais") (2005), “Paranoid Park” (2007) ou “Milk”). Em 1984, já havia sido realizado um filme documental sobre o mesmo período e a mesma personagem. “The Times of Harvey Milk”, dirigido por Rob Epstein, ganharia o Oscar de melhor documentário de longa-metragem de 85. Escrito por Harvey Fierstein e o próprio Rob Epstein, tinha narração de Judith Coburn e apresentava imagens autênticas de arquivo onde se podiam ver Harvey Milk, Anne Kronenberg, Tory Hartmann, Tom Ammiano, Jim Elliot, Henry Der, Jeannine Yeomans, Bill Kraus, Sally M. Gearhart, John Briggs, Jerry Brown, Jimmy Carter, Dianne Feinstein, David Fowler, Joseph Freitas, Terence Hallinan, George Moscone ou Dan White.
MILK
Título original: Milk
Realização: Gus Van Sant (EUA, 2008); Argumento: Dustin Lance Black; Produção: Dustin Lance Black, Bruce Cohen, Barbara A. Hall, William Horberg, Dan Jinks, Michael London, Bruna Papandrea; Música: Danny Elfman; Fotografia (cor): Harris Savides; Montagem: Elliot Graham; Casting: Francine Maisler; Design de produção: Bill Groom; Direcção artística: Charley Beal; Decoração: Barbara Munch; Guarda-roupa: Danny Glicker; Maquilhagem: Steven E. Anderson, Sterfon Demings, Stephan Dupuis, Gregory Nicotero, Michael White; Direcção de Produção: Robert Hackl, Barbara A. Hall, Michelle Lankwarden; Assistentes de realização: Ian Calip, Neil Lewis, John R. Saunders, David J. Webb; Departamento de arte: Chad Owens; Som: Robert Jackson; Efeitos especiais: Tom Sindicich; Efeitos visuais: Tsui Ling Toomer, Chel White; Companhias de produção: Focus Features, Axon Films, Groundswell Productions, Jinks/Cohen Company; Intérpretes: Sean Penn (Harvey Milk), Emile Hirsch (Cleve Jones), Josh Brolin (Dan White), Diego Luna (Jack Lira), James Franco (Scott Smith), Alison Pill (Anne Kronenberg), Victor Garber (Mayor George Moscone) Denis O'Hare (Senador John Briggs), Joseph Cross (Dick Pabich), Stephen Spinella (Rick Stokes), Lucas Grabeel (Danny Nicoletta), Brandon Boyce (Jim Rivaldo), Howard Rosenman, Kelvin Yu, Jeff Koons, Ted Jan Roberts, Boyd Holbrook, Frank M. Robinson, Allan Baird, Tom Ammiano, Carol Ruth Silver, Hope Tuck, Steven Wiig, Ashlee Temple, Wendy Tremont King, Kelvin Han Yee, Robert Chimento, Ginabel Machado, Daniel Landroche, Trace Webb, Velina Brown, Scott Patrick Green, Mary Dilts, Roman Alcides, Robert George Nelson, Brian Danker, Richard Gross, Borzin Mottaghian, Brian Yates Sharber, Camron Palmer, Cully Fredricksen, Mark Martinez, Danny Glicker, Catherine Cook, Joe Meyers, Dominic Sahagun, William McElroy, Joey Hoeber, Mark E. Stanger, Christopher Greene, Jesse Caldwell, Lynn McRee, Cleve Jones, John Parson, Jay Kerzner, Kristen Marie Holly, Sandi Ippolito, Roger Groh, Maggie Weiland, Dustin Lance Black, Drew Kuhse, Eric Cook, Roger Mudd, John Douglas Ayers, Tom Brokaw, Anita Bryant, Greg Cala, Jimmy Carter, Cabran E. Chamberlain, John Clerkin, Walter Cronkite, Zachary Culbertson, Harvey Milk, John Prudhont, Ronald Reagan, Corbett Redford, Jeff Redlick, Timothy Roberts, Lin Shukla, Serene Sidher, Christopher Sugarman, Jeremiah Turner, Brian Vowell, Cindy Warner, etc. Duração: 128 minutos; Distribuição em Portugal: Filmes Castello Lopes; Classificação etária: M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 29 de Janeiro de 2009.

3 comentários:

casa de passe disse...

Vamos já a correr ver!


(não é o que se esperaria de nós?)



[Nini + Loulou]

Unknown disse...

Ah! Gostei imenso deste!

As frequentes imagens de arquivo dão outro aspecto e outra credibilidade que só vistos!

Sean Penn arrepiante, também!

A par do "My Own Private Idaho", é o melhor de Gus Van Sant. Só desconhecia da sua homossexualidade assumida mas dava para adivinhar com a filmografia que tem...


Um abraço, grande, do
Helder.

Hugo Cunha disse...

Isto sim é cinema do bom, adorei fantastico grande actuação do Sean Pean, para mim só este e Quem Quer Ser Bilionário merecem o Oscar, o que tem o Brad Pitt está quase quase lá ao pé destes os outros 2 um não vi e o Leitor não está nem perto destes apesar de ser um bom filme. Agora só quero mesmo ver a Dúvida e o do Mickey Rourke .