domingo, junho 24, 2012

CINEMA: O CAVALO DE TURIM



 O CAVALO DE TURIM
Antes de mais, há que prevenir: este não é um filme como os outros. Ao referir “outros” pretendo incluir na categoria muitos estilos de obras que se projectam nas salas de cinema tradicionais. Não: este não é um filme como todos esses que vemos, quer se trate do cinema americano mais comercial, até ao mais independente, quer se trate do europeu ou do asiático. Não, também não é um daqueles filmes vanguardistas e experimentais, que podem ir do ecrã todo azul ao todo negro, dos riscos às manchas, do plano único de duas horas à montagem entontecedora. Nada disso. Este é um filme muito diferente de tudo isso, e terá de ser visto enquanto tal. Não sou dos que dizem isto sim é cinema, como se este fosse o único modo de fazer filmes. Mas sempre disse que a crítica, e o espectador, deve procurar em cada obra aquilo que ela tem para dar e julgá-la enquanto tal. Longe de mim dizer que só o cinema narrativo, romanesco, a que aderem multidões é “o” cinema. Tal como “O Cavalo de Turim” não é “o” cinema. Porque o cinema, tal como qualquer manifestação artística, da literatura à música e etc., tem muitas faces, e todas elas legítimas desde que honestas, sinceras, íntegras e coerentes com os seus propósitos.
Posto isto, “O Cavalo de Turim”, do húngaro Béla Tarr, é uma experiência apaixonante, para quem a quiser sentir e entender. Depois das suas duas horas e meia de projecção, a sensação com que se fica é que saímos de um daqueles filmes híbridos de início do sonoro, quando alguns génios do mudo prevaleciam na ideia de que o cinema era mudo ou não seria e que aceitavam, apesar de tudo, um ou outro diálogo, aqui e ali, e uma boa sugestão sonora. “O Cavalo de Turim” recorda-nos assim alguns mestres do mudo, como Griffith (“O Lírio Quebrado”), Murnau (“Aurora”), Sjostrom (“O Vento”), ou mesmo alguns continuadores do estilo, como Dreyer (“A Palavra”) ou Bresson (“Peregrinação Exemplar”). Mas, ao mesmo tempo, o que “A Torinói ló” (título original húngaro) nos procura transmitir, sobretudo inquietar, é algo muito actual e que se encontra disseminado num vasto conjunto de obras recentes (“A Árvore da Vida”, “Melancolia”, “Cosmopolis”, “Procurem Abrigo”, para não falar de algumas mais comerciais, como “O Dia Depois de Amanhã” ou outros títulos catástrofe mais espectaculares). 
Béla Tarr não é conhecido do público português, a não ser dos poucos que puderam ver “O Homem de Londres” na sua edição em DVD. É um cineasta que começou como documentarista, nos finais dos anos 70, e que daí até agora construiu uma filmografia extremamente radical na sua secura de processos, na austeridade da imagem, no rigor da composição, dos longos movimentos de câmara, na excessiva duração dos planos (sobretudo se comparada com a média habitual nas salas comerciais) e na abordagem filosófica dos temas escolhidos (ele queria ser filósofo e para ele o cinema é um prolongamento dessa necessidade).
“O Cavalo de Turim” começa com uma história passada com Friedrich Nietzsche que terá visto um cavalo a ser barbaramente chicoteado, se terá intrometido entre o animal e a chibata do cocheiro, mas que a partir daí terá caído doente e enlouquecido. A sequência inaugural mostra-nos um cavalo a galopar e o velho cocheiro a chicoteá-lo até chegar à sua pobre e inóspita habitação, na deserta planície húngara. Terra de fim de mundo, onde, como iremos ver, nada acontece, ou se preferirmos, tudo acontece até ao negrume final que nos anuncia a morte. O preto e branco da deslumbrante fotografia e a quase ausência de diálogos servem plenamente as intenções do autor. 
O cocheiro (János Derzsi) vive apenas com a sua filha (Erika Bók), serve-se somente de um braço (o outro está imobilizado ao longo do corpo), veste-se e despe-se com o auxilio da filha, comem à refeição uma batata e bebem um ou dois cálices de palinka, olham a desoladora paisagem pela janela, deitam-se e acordam ao longo dos dias num ritual repetitivo que chega a rondar o ascetismo e mesmo o puritanismo mais radical. Um dia recebem a visita de um vizinho (Mihály Kormos) que lhes compra um garrafa de palinka, de outra vez passa por perto um grupo de homens e mulheres que eles julgam ciganos, e vai-se ouvindo sempre um vento cortante que assola a paisagem de forma desapiedada. O cavalo adoece e recusa-se a trabalhar mais, nega-se mesmo a comer, depois falta a água, a comida, a bebida, a luz. É o fim. A escuridão total. O fim deste mundo que lentamente fomos delapidando, como no-lo diz o seu vizinho, que denuncia ainda esta sociedade de compra e venda, sem dignidade nem futuro.
A imagem é de uma beleza que atinge por vezes o sublime na sua austeridade e contenção. Os enquadramentos, os movimentos, a duração do tempo, a secura da interpretação, tudo serve um propósito. O filme é de uma coerência estilística notável. Quem entrar na obra sai dela como que purificado, mas acabrunhado pelo desespero e o niilismo destes tempos de desesperança e desconforto. Béla Tarr afirma que este foi o seu último filme. Que nada mais tem para dizer. Este é um testamento terrífico de um visionário pessimista. Convém dar-lhe ouvidos, antes que seja demasiado tarde e a escuridão nos invada a todos.
Numa entrevista explicou: “Nada mudou. Se os tempos do comunismo eram péssimos, os do capitalismo também são. Se antes existia uma censura política, agora existe uma censura económica. Nada mudou”.
                                                                                                         Béla Tarr
O CAVALO DE TURIM
Título original: A Torinói ló
Realização: Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (Hungria, França, Alemanha, Suiça, EUA, 2011); Argumento: László Krasznahorkai e Béla Tarr; Produção: Gábor Téni, Martin Hagemann, Juliette Lepoutre, Marie-Pierre Macia, Elizabeth Redleaf, Mike S. Ryan, Ruth Waldburger, Christine K. Walker; Música: Mihály Vig; Fotografia (p/b): Fred Kelemen; Montagem: Ágnes Hranitzky ; Design de produção: Czigler Kata; Assistentes de realização: Yann-Eryl Mer; Som: Gábor ifj. Erdélyi; Efeitos especiais: Zoltán Pataki; Companhias de produção: TT Filmmûhely, Vega Film, Zero Fiction Film, Movie Partners In Motion Film, Werc Werk Works, Fonds Eurimages du Conseil de l'Europe, Medienboard Berlin-Brandenburg, Motion Picture Public Foundation of Hungary; Intérpretes: János Derzsi (cocheiro), Erika Bók (filha do cocheiro), Mihály Kormos (Bernhard), Ricsi (cavalo), etc. Duração: 146 minutos; Distribuição em Portugal: Midas Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; 

PS. Por um lamentável erro, apareceu a Atalanta Filmes como distribuidora, quando se trata da Midas Filmes.  Agradeço a amável correcção da editora e agradeço ainda mais a informação de que a Midas Filmes vai editar em DVD toda a obra de Béla Terra.

11 comentários:

Unknown disse...

Belo texto para um dos mais singulares e visionários cineastas dos últimos anos.
Só tenho uma dúvida: na ficha técnica é referida a Atalanta Filmes como distribuidora do filme em Portugal. Mas não é a Midas Filmes que tem os direitos de exibição?

Helena Bray disse...

Depois desta apresentação e da extraordinária beleza das imagens (antes da ordem do Sublime), fico com um enome/total desejo de ver este filme.
O cinema opera sínteses, integra artes, a literatura, a fotografia, a música...; o pensamento e as emoções... e, na sua expressão máxima toca o essencial/ indizível... (parece que é o caso deste filme)

manuela espirito santo disse...

Obrigada, Lauro António. Quem me dera poder ver este filme. Vou aguardar pelo DVD
MES

rainbow disse...

Na minha opinião este filme tem uma narrativa e um ritmo invulgares, uma realização irrepreensível e uma magnífica fotografia, sobressaindo a faceta mais crua e niilista da vida.

rainbow disse...

Na minha opinião, este filme tem uma narrativa e um ritmo invulgares, uma realização irrepreensível e uma magnífica fotografia, onde sobressai uma visão crua e niilista da vida.

Manuel disse...

Caro Lauro António:

Li, penso que no blog onde recolhi a informação sobre o filme - o Dúvida Metódica - informação que, por exemplo, levou a Rainbow a vê-lo, pois partilhei essa informação noutro blog que frequento - o Murcon - que este filme só iria ser exibido em Lisboa e no Porto.
Pode confirmar?
Preferia vê-lo no cinema do que no pequeno ecrã com o DVD.

Nuno Bento disse...

Adorei o texto.
Também eu fiquei profundamente afectado com o filme e tentei, à minha maneira, transmiti-lo no meu espaço:
http://escolhamusicaldodia.blogspot.pt/2012/06/mihaly-vig-torinoi-lo.html

Cristiano Amaro disse...

Excelente crítica. Obrigado!

Helena Bray disse...

Finalmente vi este filme que considero uma obra prima absoluta.Este filme penetra-nos, apodera-se de nós a vários níveis, que se fundem: ao nível estético, as imagens são da ordem do sublime; a fotografia, o preto e branco, os planos cinematográficos, os movimentos da câmara, constituem um todo que, por sua vez, aquire e/ou se conjuga com uma dimensão poética e literária, numa narrativa depurada até ao silêncio e à escuridão, ao nada. Aos níveis do ser e do pensar. O peso insustentável do ser/existir; quando a tempestade termina sobrevém a escuridão. A morte.

Unknown disse...

Não sou nenhuma crítica litetária ou de outra arte, mas posso dizer o que sinto ao me deparar com elas (as artes). Assistindo ao filme, não pude dar intervalos. Não consegui, ficando paralisada em frente à rela do computador. Após o filme ter terminado, tudo, então, se acabou. Só as imagens não saiam da mente, com o som da ventania, das poucas palavras ouvidas... e das inúmeras sensações deixadas. Eliane aparecida Valério

Unknown disse...

Não sou nenhuma crítica litetária ou de outra arte, mas posso dizer o que sinto ao me deparar com elas (as artes). Assistindo ao filme, não pude dar intervalos. Não consegui, ficando paralisada em frente à rela do computador. Após o filme ter terminado, tudo, então, se acabou. Só as imagens não saiam da mente, com o som da ventania, das poucas palavras ouvidas... e das inúmeras sensações deixadas. Eliane aparecida Valério