quinta-feira, julho 25, 2013

CINEMA: DENTRO DE CASA



DENTRO DE CASA

“Dentro de Casa” é o nosso local de refúgio. Costuma ouvir-se mesmo dizer que fulano tal se refugiou “dentro de casa”. “Dentro de casa é o espaço de privacidade por excelência. Há quem chegue a casa, tire o casaco e vista o roupão, quem atire os sapatos para um canto e calce os chinelos. Se alguém sai à rua nestes preparos sujeita-se a ouvir reprimendas do estilo “sais assim à rua!”. Dentro de casa são permitidas liberdades que cá fora não o são.
Dentro de casa é, pois, a privacidade. Temos o direito à nossa privacidade. Quando alguém abusivamente invade esta privacidade, entra dentro de casa sem nossa autorização, sem ser convidado para isso, normalmente incorre em delito grave. Chama-se a polícia, pois seguramente houve assalto e roubo.
“Dentro de Casa” é nome de filme. Francês. Logo, no original chama-se “Dans la Maison”. Traz a assinatura de François Ozon, um dos cineastas franceses actuais que mais admiro. Nasceu em Paris, a 15 de Novembro de 1967, e desdobra-se em trabalho. Aos 21 anos já se iniciava na realização de curtas-metragens, dirige duas dezenas nos primeiros oito anos de actividade, e depois, desde 1997 que nos vai brindando com excelentes obras, discretas, intimistas, inteligentes, irónicas, observando com argúcia a vida familiar e as relações entre as pessoas. “Regarde la mer” é de 1997, “Les amants criminels”, de 1999, “Sob a Areia”, de 2000, mas é sobretudo depois de “8 Mulheres” (2002) e “Swimming Pool” (2003) que se torna notado internacionalmente. “O Tempo que Resta”, “Angel - Encanto e Sedução”, “O Refúgio”, “Potiche - Minha Rica Mulherzinha” são outras obras anteriores a “Dentro de Casa”, que é de 21012, e agora surge nos ecrãs portugueses, quando o autor ultima já um outro título, “Jeune & jolie”. 


“Dentro de Casa” é um filme extremamente sedutor e inquietante. Germain (Fabrice Luchini) é professor de literatura francesa num liceu, não num qualquer mas no Licée Gustav Flaubert, o que é desde logo um bom princípio: é um liceu piloto, onde os alunos usam farda, para o ambiente ser mais democrático, para ninguém se individualizar. Mas Claude Garcia (Ernst Umhauer), um seu aluno de dezasseis anos, sobressai de sobremaneira. Quando lhe pedem uma redacção sobre o seu melhor amigo na turma, ele resolve apontar a sua atenção para um colega, Rapha Artole, e começar a investigá-lo. Com o pretexto de o ajudar em matemática, instala-se dentro de casa dos Rapha Artole e vai descrevendo com alguma minucia o que vê e sente. Curiosidade suplementar: não é só Claude Garcia que se alimenta da vida dos Rapha Artole, mas também o seu professor, Germain, escritor frustrado, que vai sublimando a sua falta de talento e a sua curiosidade mórbida através dos escritos do aluno que ele vai estimulando, não hesitando sequer em viciar exames.
Este tipo de voyeurismo “literário” não deixa de ser perigoso e é seguramente obsceno. Com um tom discretamente irónico, por vezes nostálgico, François Ozon oferece-nos um retrato por vezes dilacerante da necessidade que alguns têm de viver a vida de outros. O jovem Claude, em vez de ver a sua telenovela diária no ecrã da televisão, como fazem milhões, resolve vivê-la e escrevê-la ele próprio através da observação da vida do seu colega Rapha, e a partir de certa altura também do pai e da mãe deste, Esther Artole (Emmanuelle Seigner), por quem se apaixona e a quem espia até durante o sono.
Se alguns criticam “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock, por ser um filme voyeurista, “Dentro de Casa” leva o voyeurismo a entrar dentro de casa de uma família, aí se instalar e sugar a suas vidas, não só para consumo do jovem Claude, mas também do seu voraz professor de literatura francesa. Trata-se de certa forma de um vampirismo literário, na sua aparência, para vampirismo existencial na sua essência.

Claro que pagam pelos erros cometidos, mas nada nos diz que se arrependam. No plano final, que relembra magistralmente “A Janela Indiscreta” de Hitchcock, lá vamos encontrar o ex-professor e o ex-aluno, sentados lado a lado, olhando um enorme ecrã de televisão constituído pelas janelas de um prédio, onde em cada uma delas se vai gerando uma situação que eles observam com voracidade.
Li algures numa crítica inspirada que este era um filme sobre o processo da criação literária e artística. Nada de mais contrário ao espírito do filme. Não há qui criação alguma, quanto muito destruição. A criatividade do aluno só é notada por razões extra-literárias, e sua qualidade só é notada pela lamentável mediocridade dos restantes alunos. O que aqui está implícito, ainda que de forma discreta, é uma crítica a este voyeurismo disforme em que as sociedades contemporâneas se abastecem. Aliás, o filme, sempre de forma serena e sem demagogias, olha com igual sentido crítico a vida familiar dos dois agregados que lhe estão no centro da atenção: German e a sua mulher, gerente de uma galeria de arte moderna muito excêntrica, e a família Rapha Artole, dependente dos negócios e dos chineses e apaixonada pelo basquetebol.
O argumento de “Dans la Maison” é da autoria do próprio François Ozon, adaptando livremente a peça de Juan Mayorga "El chico de la última fila", que em português se chamou “O Rapaz da Última Fila” e foi encenada por Jorge Silva Melo, nos Artistas Unidos. Mas julgo que entre peça e filme existem diferenças de abordagem significativas.
Os intérpretes são brilhantes, a começar pelo discreto Fabrice Luchini, o professor, mas também pela revelação de Ernst Umhauer, no papel de Claude Garcia. Kristin Scott Thomas, Emmanuelle Seigner, Denis Ménochet, Bastien Ughetto e Jean-François Balmer acompanham à altura. Sublinhe-se a realização, elegante, sóbria, púdica, de François Ozon.
Belo filme, de uma inteligência fina, que sabe bem saborear discretamente.

DENTRO DE CASA
Título original: Dans la Maison
Realização: François Ozon (França, 2012); Argumento: François Ozon, adaptando livremente a peça de Juan Mayorga ("El chico de la última fila"); Produção: Eric Altmayer, Nicolas Altmayer, Claudie Ossard; Música: Philippe Rombi; Fotografia (cor): Jérôme Alméras; Montagem: Laure Gardette; Casting: Sarah Teper; Direcção artística: Pascal Leguellec; Guarda-roupa: Pascaline Chavanne; Maquilhagem: Franck-Pascal Alquinet, Marie-Anne Hum, Gill Robillard; drecção de produção: Patricia Colombat, Karine Petite; Assistente de realização: Hubert Barbin; Departamento de arte: Manuel Demoulling, Thomas Morange, Thibaut Peschard; Som: Niels Barletta, Christophe Brajdic, Brigitte Taillandier; Efeitos visuais: Frederic Moreau, Sarah Moreau, Mikael Tanguy; Companhias de produção: Mandarin Films, Mars Distribution, France 2 Cinéma, FOZ, Canal+, Ciné+, France Télévision, La Banque Postale Images 5, Cofimage 23, Palatine Étoile 9, Région Ile-de-France; Intérpretes: Fabrice Luchini (Germain), Ernst Umhauer (Claude Garcia), Kristin Scott Thomas (Jeanne Germain), Emmanuelle Seigner (Esther Artole), Denis Ménochet (Rapha Artole, pai), Bastien Ughetto (Rapha Artole, filho), Jean-François Balmer (director do liceu), Yolande Moreau (as gémeas Rosalie e Eugénie), Catherine Davenier, Vincent Schmitt, Jacques Bosc, Stéphanie Campion, Diana Stewart, Ronny Pong, Jana Bittnerova, Nadir Azni, etc. Duração: 105 minutos; Distribuição em Portugal: Leopardo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 18 de Julho de 2013.

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