terça-feira, setembro 10, 2013

CINEMA: VIAGEM A TÓQUIO



VIAGEM A TÓQUIO

Yasujirô Ozu é um dos maiores realizadores japoneses, colocando-se ao lado de Misoguchi e Kurosawa, e é igualmente um dos mais espantosos cineastas mundiais. Em quase todas as listas dos 10 melhores filmes de sempre, aparece um título seu, quase sempre este “Viagem a Tóquio”, considerado por muitos como a sua obra máxima, integrada num conjunto de obras-primas de invulgar consistência estética, que se concretizaram sobretudo nos últimos vinte anos da sua carreira.
Nascido a 12 de Dezembro de 1903, viria a falecer no mesmo dia do ano de 1963, sempre na cidade de Tóquio. Desde miúdo apaixonado por cinema, nomeadamente pelo cinema de Hollywood, onde ele confessava ter encontrado alguns mestres inspiradores, com 20 anos já trabalhava como assistente de câmara nos estúdios Shochiku, em Tóquio. Rapidamente passou a assistente de realização e a realizador, estreando-se em 1927 como autor. A obra chamava-se “Zange no yaiba”. Ainda durante o período mudo, rodou certa de três dezenas e meia de filmes, alguns dos quais nos dizem ser autênticas obras-primas. Desconhecemos todos. Passou pelo serviço militar e foi recrutado pelo exército japonês, durante a II Guerra Mundial, andando pela China e por Singapura, onde foi feito prisioneiro pelos ingleses. De regresso ao Japão, a sua carreira conhece um novo período, de uma austeridade de processos extraordinária, impondo um estilo muito próprio, que ficou testemunhado em obras admiráveis como “Uma Galinha no Vento” (1948), “Primavera Tardia” (1949), “Viagem a Tóquio” (1953), “A Flor do Equinócio”, “Bom Dia” (1959), ““O Fim do Outono” (1960) ou “O Gosto do Saké” (1962), seu derradeiro filme.
Infelizmente, por ser tão tarde, felizmente, porque apesar de tudo acontece, estrearam-se agora em salas portuguesas dois dos seus títulos mais celebrados: “Viagem a Tóquio” e “O Gosto do Saké”. Mas deve acrescentar-se que, editadas pela Prisvideo, já existiam no nosso mercado de DVDs três caixas dedicadas a Ozu, cada uma com dois filmes, o que permitia um conhecimento de “Graduei-me, Mas...”, “Viagem a Tóquio”, “A Flor de Equinócio”, “Bom Dia”, “O Fim do Outono” e “O Gosto do Saké”.

Posto isto, falemos de “Viagem a Tóquio”. Antes de tudo o mais, do estilo de Ozu. Inconfundível. Apesar de ter muitos pontos de contacto com a obra de outros autores de rigorosa austeridade, como Dreyer ou Bresson. Mas, quando se descobre um plano filmado com a câmara rente ao chão, com uma quase fixidez de olhar, uma prodigiosa encenação ao nível do plano, com entradas e saídas de personagens, quando se sente esta sensibilidade rara, a elegância do olhar, o pudor no exacerbar das emoções, a forma discreta como alimenta os conflitos, quando nos encontramos perante algo assim, não pode ser senão Ozu, sobretudo se os actores forem japoneses. Como é o caso desse magnífico Chishû Ryû, seu actor preferido, que aparece em boa parte da sua filmografia sonora. Um actor seco de carnes, mas de uma interioridade majestática, que relembra, aqui e ali, o Clint Eastwood de agora. Até no andar vagaroso, saboreado, de homem de muito saber, que anda pausadamente para chegar seguro.
Depois, o próprio Ozu declarava que as suas obras se enunciavam de forma rápida: um velho casal viaja até Tóquio para visitar os filhos que ali vivem, casados, um deles já com filhos. Mas a viagem resulta algo frustrante, os filhos encontram-se muito ocupados pelos seus empregos e trabalhos diários e pouca atenção reservam aos pais. Apenas a viúva de um dos filhos, morto na guerra (o filme data de 1953, e é ainda um reflexo dessa guerra), se mostra mais atenciosa. A estadia tem as suas peripécias, o velho visita uns amigos e perdem a cabeça com o saké durante uma noitada de recordações embebidas em álcool, e o casal resolve voltar a casa. Pouco tempo depois são os filhos que viajam até casa dos pais, para acompanhar a agonia da mãe, lamentando então as falhas passadas.
Numa notável fotografia a preto e branco, o filme passa frente aos nossos olhos como um rio a deslizar suavemente, com um ou outro percalço, mas perante a inevitabilidade do que se sabe suceder, aconteça o que acontecer. Na manhã seguinte à morte da mulher, o velho Shukishi é surpreendido a olhar o nascer do sol de um novo dia magnífico. É a vida que continua, inexorável. Ele olha esse amanhecer sem mágoa, enfrentando o futuro com a sábia nostalgia de um passado, mas com a certeza de que o rio continuará a correr, placidamente, como as imagens de Ozu. É a milenar filosofia oriental a contemplar os mistérios da vida, a surpreender-se com algumas decisões infelizes, mas a confundir homem e natureza num ciclo vital continuo. Belíssimo, doloroso pela sensação de culpa que deixa como lastro, mas igualmente grandioso pela forma como transmite esse deslizar do tempo pela memória dos homens.
A não perder. Mas é conveniente ir preparado para se assistir a uma jóia de secreta garantia, longe do tumulto das fitas comerciais que explodem de cinco em cinco minutos. Aqui a explosão é interior, discreta, subtil. Quem o sentir sairá certamente reconfortado. 



VIAGEM A TÓQUIO
Título original: Tôkyô Monogatari

Realização: Yasujirô Ozu (Japão, 1953); Argumento: Kôgo Noda, Yasujirô Ozu; Produção: Takeshi Yamamoto; Música: Takanobu Saito; Fotografia (p/b): Yûharu Atsuta; Montagem: Yoshiyasu Hamamura; Design de produção: Tatsuo Hamada; Direcção artística: Tatsuo Hamada; Guarda-roupa: Taizô Saitô; Assistentes de realização: Osamu Takahashi, Kouzou Yamamoto, Shôhei Imamura; Departamento de arte: Setsutarô Moriya, Toshio Takahashi; Som: Mitsuru Kaneko, Yoshisaburô Senoo; Companhia de produção: Shôchiku Eiga; Intérpretes: Chishû Ryû (Shukishi Hirayama), Chieko Higashiyama (Tomi Hirayama), Setsuko Hara (Noriko Hirayama), Haruko Sugimura (Shige Kaneko), Sô Yamamura (Koichi Hirayama), Kuniko Miyake (a muhr de Fumiko Hirayama), Kyôko Kagawa (Kyôko Hirayama), Eijirô Tôno (Sanpei Numata), Nobuo Nakamura (Kurazo Kaneko), Shirô Osaka (Keizo Hirayama), Hisao Toake (Osamu Hattori), Teruko Nagaoka (Yone Hattori), Mutsuko Sakura, Toyo Takahashi, Tôru Abe, Sachiko Mitani, Zen Murase, Mitsuhiro Môri, Junko Anan, Ryôko Mizuki, Yoshiko Togawa, Kazuhiro Itokawa, Fumio Toyama, Keijirô Morozumi, Tsutomu Nijima, Shozo Suzuki, Yoshiko Tashiro, Haruko Chichibu, Takashi Miki, Binnosuke Nagao, etc. Duração: 136 minutos; Distribuição em Portugal: Leopardo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 5 de Setembro de 2013.

1 comentário:

Rui Gonçalves disse...

Uma crítica certeira.Duas obras admiráveis; secretas, serenas e encantadoras, bem longe da correria actual e do fogo-de-artifício comercial. Ainda por cima em cópias imaculadas.