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sexta-feira, outubro 24, 2008

CINEMA: CABARET

Andando em maré de musicais: já aqui escrevi como saí desiludido da versão portuguesa de “Cabaret”, instalada no “Maria Matos”. Revi há dias o filme, que continua galvanizante, e fui descobrir uma crítica publicada por mim, por essa altura. Com uma ou outra correcção, e sem um bom excerto que a censura cortou (e eu não repesquei), aqui fica:
"Cabaret" (EUA, 1972): Berlim, fins dos loucos anos 20, inícios da ameaçadora década de 30. A lição correcta de como foi possível a ascensão do nacional-socialismo. Uma época de crise, uma época de inconsciência, uma época de loucura. Com o fascínio que tal caos pressupõe, com a repulsa que a posterior reacção justificaria.
No palco, Liza Minelli (filha de Vincent Mirmelli e de Judy Garland) tenta recortar a silhueta de Marlene em “O Anjo Azul”, enquanto Joel Grey cacareja a impotência e o total aviltamento do professor Unrat. Marlène e Emil Jennings estão constantemente presentes nos olhos de todos e esta referência, em jeito de homenagem, não é seguramente um dos menores trunfos do belo filme de Bob Fosse (que ultrapassa em muito os limites de um “género”).
Soberbo, enquanto reconstituição de um período, “Cabaret” leva ainda mais longe que “Sweet Charitty” as potencialidades coreográficas de Bob Fosse. Na verdade, este é um “musical” não coreografado em palco (como muitos dos clássicos) ou em profundidade de campo (como quase todos os “musicais” após os anos 40), mas sim um “musical” cujos “números” são coreográficos na montagem. Ou seja: em vez de uma câmara a movimentar-se (ou fixa) frente a um cenário, onde evoluem os bailarinos, a técnica de Bob Fosse é um tanto diferente, apresentando pequenas zonas cénicas, filmadas de vários ângulos. É através do ritmo da montagem desses planos, de uma cadência segura e sincopada, que os “números” se vão organizando, preenchendo um espaço cinematográfico, criando um tempo diferente e um ritmo novo. Dois actores justificariam, igualmente, por si só a visão do filme: em primeiro lugar Joel Grey, uma revelação sensacional, um “entertainer” que interrompe a acção do filme, que a trunca por vezes, que a distancia. Ironicamente, este é o comentador “travesti” que a época justificava. Uma personagem andrógina, de uma ambiguidade sexual tremenda, uma ilha da noite e dos fantasmas que nela se geram, “clown” sombrio que a luz dos reflectores traz à ribalta para inquietação dos presentes. Nada é seguro nesta personagem, como nada era seguro nesses anos de maus presságios. Com Liza Minnelli estamos de novo perante uma grande actriz que se impõe um pouco contra a chamada “corrente do jogo”. Só o seu enorme talento e a comunicação espontânea que estabelece fazem esquecer outros aspectos menos atraentes da sua figura. Este é um “Cabaret” fascinante e medonho, mistura nocturna de luzes inebriantes e vielas lamacentas, cruzadas por “milícias” que distribuem a dor e instalam o pavor. Que se verá com redobrado prazer, é certo, mas com os olhos despertos para o perigo que encerra esta panorâmica decadentista que viaja por um cenário de "cabaret” onde se argamassa realidade e espectáculo, vida e representação.
Bob Fosse dirige Liza Minnelli

domingo, setembro 14, 2008

"CABARET" NO MARIA MATOS

" Cabaret" - Bob Fosse
“CABARET” NO “MARIA MATOS”
E pronto, estreou-se o mais aguardado “acontecimento” teatral da rentrée, o “musical” “Cabaret”, originalmente posto em teatro num libreto de Joe Masteroff e letra de Fred Ebb, com fabulosa partitura musical de John Kander (baseando-se o “musical” da Broadway num peça de John Van Druten, “Adeus a Berlim”, e em contos de Christoher Isherwood, “Histórias de Berlim”), traduzido para português por Pedro Gorman, com adaptações de letras de Ana Zannatti.
A encenação é de Diogo Infante, num teatro que ele dirigiu com particular sucesso nos últimos anos, e de que se demitiu recentemente, num imbróglio que metia a sua transferência para a direcção do Teatro Nacional de D. Maria II. A preparação do espectáculo levou à realização de um interessante programa na RTP; “À Procura de Sally”, onde, entre milhares de candidatas, um júri seleccionou Ana Lúcia Palminha para o papel de Sally Bowles, a protagonista.
Tudo se conjugava para um estrondo espectacular. Que acontece, mas não da forma por que se adivinhava. O espectáculo é globalmente um fracasso, com muito pouco a recomendá-lo.
A história é conhecida: Clifford Bradshaw, jovem norte-americano, recém-chegado a Berlim, escritor em difícil gestação e em busca de inspiração, conhece Sally Bowles, uma inglesa, cantora de cabaret, aspirante a estrela do Kit Kat Klub. Conhecem-se, amam-se, passam a viver juntos num quarto alugado a Fraulein Schneider, casa onde também vive Herr Schultz, judeu, dono de uma frutaria, eterno apaixonado pela senhoria. Tudo seria simples, se não estivéssemos em inícios dos anos 30 e Hitler e o nacional-socialismo não se encontrassem a caminho de consolidar o poder, para iniciarem a limpeza étnica e apurar a raça ariana. Conflitos amorosos inscritos em tragédias políticas, tudo ao som do decadentismo de “Life is a Cabaret” ou do austero e puritano “Tomorrow Belongs To Me” - o resultado só poderia ter um fim dramático.
Dramática não foi, porém, a adaptação do “musical” a cinema, que o genial Bob Fosse e a deslumbrante Liza Minelli cozinharam gostosamente em 1966, transformando o título numa mítica referência. Devemos reconhecer que tendo por base de comparação este filme, muito difícil seria encenar um espectáculo que não destoasse ao ser colocado ao lado. Declare-se no entanto que em Portugal já há experiências gloriosas, desde o “Sweeney Todd”, de João Lourenço, até vários espectáculos de Filipe La Feria (falando só em adaptações, citem-se “My Fair Lady”, “Música no Coração”, “Jesus Cristo Superstar” ou “O Violino no Telhado”).
Infelizmente, “Cabaret” é um duque no baralho. A encenação é fraquinha, nada inventiva, deixa os actores presos em marcações cerradas durante minutos (o que é de surpreender em Diogo Infante, que já vimos fazer coisas muito boas), a coreografia não existe (não se chama coreografia a meninas a saltitar num palco, ou a rodarem, à volta de cadeiras), a iluminação (criativa) não se vê (há luzes, focos sobre os cantores, pouco mais), os cenários são penosos (nada sugestivos e tecnicamente mal resolvidos: ver entrar e sair uma cama, um guarda-fato, uma mesa e uma cadeira, empurrados por actores, de cinco em cinco minutos, torna-se tão repetitivo que ao meu lado um senhor dormia a bem dormir, e não era na cama). A orquestra que executa em palco não é má e passemos aos actores- cantores.
Pois bem: nota positiva para Henrique Feist, boa voz, bom intérprete, bom actor, boa presença. Ele é um convincente “mestre-de-cerimónias”, que faz a ligação entre diversas cenas, as comenta e as introduz. Também Pedro Laginha me parece bem. Fernando Gomes, em Herr Schultz, defende-se bem, é um actor experimentado e convive bem com o canto. Fraulein Schneider, interpretada por Isabel Ruth, tem a silhueta requerida e um grande talento como actriz, mas não encontrou (ou na encontraram por ela) o tom para cantar o que lhe competia. Custou-me ver uma actriz de quem tanto gosto neste papel.
Finalmente, Ana Lúcia Palminha, a escolhida para protagonista. Um caso curioso. Ela não é estreante no teatro, é actriz há muito e tem talento óbvio. Tem inclusive uma bonita voz, e quando a vi no programa da RTP apostei desde logo nela. O potencial está lá, mas parece-me inteiramente desfasada do papel. Tem boa voz, mas não a aproveita, a não ser num ou dois números. E de resto toda a sua representação é um over acting incompreensível. Tenta copiar Liza Minelli, escolhendo um espalhafato e uma falta de senso total. E seria tão fácil apontar-lhe o bom caminho: projectar “O Anjo Azul”, de Sternberg e Marlene, e mostrar-lhe que a sedução se faz de mistério, do que de mais secreto e íntimo tem o ser humano, particularmente a mulher. Gesticular estardalhaço é tudo o que há de menos cativante e temo muito pela sanidade psíquica de Clifford Bradshaw ao apaixonar-se por tal mulher. Veja a Marlene, estude os gestos, os silêncios, o olhar, veja-a explodir no palco e esconder-se na intimidade, num mistério sem limites. Veja como coloca languidamente a mão, o braço, as pernas, como enlaça uma cadeira, como fulmina quem a olha, como reduz a cinzas os seus perseguidores. Pobre professor Unrat!
De resto, esta obra requer um clima perverso, um ambiente decadente, um rufar de tambores de morte, um adivinhar de tempestade por entre os fumos do vício e do prazer que aqui nunca se sentem, ou pressentem. Realmente, como me dizia um amigo ao intervalo, “gosto muito de Bob Fosse e Liza Minelli”. Eu também.

PS - Quando falei num “intervalo” não disse de quanto tempo, quantos dias. Mas apeteceu-me interrompê-lo. Os blogues têm isso de muito bom: tudo se passa entre o autor e o autor, e quem o desejar ler. Apeteceu-me um “intervalo”, fi-lo. Apeteceu-me escrever, escrevi. E apeteceu-me tanto escrever, que até arranjei tempo. Já está. Muito obrigado por terem esperado durante o ”black out”.
" Anjo Azul "- Marlene Dietrich e Josef Von Sternberg