segunda-feira, julho 23, 2007

LIVROS: POESIA DE SARA

“Quando desapareceres
Escreverei uma história épica
Com o que restar das palavras.”


A Sara (F. Costa) teve um dia a gentileza de transcrever uma nota minha, aparecida neste blogue, sobre uma escritora japonesa (“Serpentes e Piercings”, de Hitomi Kanehara), no seu blogue “Bungaku!”, apoiado pelo “Centro de Estudos Orientais” (ela estuda esse tema na Universidade do Minho).
Depois eu agradeci, em comentário, ela respondeu, falámos via mail, soube que tem 20 anos e um livro de poesia já publicado, “Uma Devastação Inteligente” (em homenagem ao seu mestre, Herberto Hélder). Conversa daqui e dali, com muito cinema japonês e chinês à mistura (Zhang Yimou, por exemplo!), eis que a Sara me manda o seu belo livro de estreia com dedicatória e tudo.
Leio e gosto muito. Rigor na palavra, exigência nas imagens, uma maturidade de escrita que faz esquecer os seus 20 anos (ou os faz recordar ainda mais!). Jorge Listopad, no “Jornal de Letras” disse que "Sara na minha imaginação parece a Agustina na sua idade, sabendo já o que quer!" e Jorge Reis-Sá, no “Magazine Artes” faz a pergunta "...quantos poetas puderam assegurar o manejo das formas como Sara Costa o faz já?"
Por mim desejo-lhe as maiores felicidades e muitos poemas para encantar noites cálidas ou quentes dos verões da vida, as dela e as nossas, seus leitores. Não é todos os dias que se descobre um talento a despontar com a força amadurecida de quem domina as palavras, mas conserva o abençoado viço da adolescência (que nunca se deveria perder). E no intervalo de tudo isto, a disciplina rígida do ai kai. Vale a pena apreciar devidamente.



Sobre adolescência:

A adolescência é um murmúrio oco,
Um oceano estendido por baixo da insónia.
Repara como se move na poeira da fuga,
Como envolve as faces da terra
(talvez do universo)
E como cospe a escrita
Para dentro da voz calejada do sonho.

Outro exemplo:

passos de zinco atravessam-se nas estradas.
dizes trazer o terror preso na garganta
e o amor de lado,
de um qualquer lado.
densas insónias circulam
nos músculos das imagens,
colam-se às feições pouco nítidas
dos meus reflexos.
e a solidão incinerada nas beiras dos passeios
emana um odor turvo.
tu prossegues por dentro dos versos poluídos.
o silêncio surge-te a vermelho
enquanto o mundo vira a sua carne raspada
para os holofotes.

Ou este ainda:

Anoitecia por dentro do corpo,
Lembro-me bem.
As imagens corriam para junto de uma fogueira
Espalhada por todo o comprimento do sonho.
Esperei mas a espera derretia-se
Com o café.
Trazia em m im um sono ferido
E as mãos agarradas à febre. Soube que morreste, sem,
Soube-o entre dois versos.

A terminar:

tudo se ergue pela febre dos seios,
nas carícias afiadas das palavras.

a tua língua a percorrer a minha nudez
e a saliva de veludo a estender-se
pelo suor do desejo.
….
«Uma Devastação Inteligente» foi Prémio Literário João da Silva Correia."

11 comentários:

Ida disse...

A amostra de poesia da Sara é bonita, assim como o teu texto de olhos sensíveis. Gostei imenso. Beijo de poema.

C. disse...

deliciosa devastação interior ou uma espécie de comoção. é o que fica, depois de ler e sentir a sua selecção dos poemas desta jovem autora, Lauro.

enorme surpresa foi o que me ficou, depois de ler a sua opinião sobre o texto e a ilustração aos quais misturou com mestria o aroma da sardinha em registo surreal. sorte a minha que doei peixe e ganhei visita ilustre. uma honra. obrigada!

Um beijo. :)

MS disse...

Sem dúvida que a Sara demonstra imensa sensibiliade na sua escrita e domina com fluência a arte das palavras!

Há vários jovens, hoje, e sempre houve, a escrever bem e com uma qualidade peculiar.

Vim deixar-lhe meus votos de excelentes férias!

abraço

Anónimo disse...

A arte do 'Ai kai'- 'Hai-kai' ou 'Haï-ku' - desenvolvida pelo grande poeta japonês Matsuô Bashô que se dedicou a fazer deste estilo de poesia uma prática espiritual ligando-a à filosofia 'zen' budista!

Os poemas tradicionais de 'hai-kai' são, regra geral, poemas bem mais curtos e concisos [aí residia/reside] a verdadeira técnica da concisão: dizer muito em poucas palavras],
de dezassete sílabas em três versos.

Mas a Sara está de parabéns!
Muita critividade anda por aí sem ser devidamente apoiada!

Vim para dizer que mudei de servidor. Terei muito prazer que me visite, se assim o entender e nisso fizer gosto!

Abraço

Lauro António disse...

G.S. Preciosas indicações sobre o Ai Kai. Não fora, porém, tanto aos poemas aqui reproduzidos no meu blogue que me referia quando falava da concisão da poesia de Sara, mas precisamente a muitos outros do mesmo livro, que se resumem a três versos e ostentam uma mesma densidade.

Exemplo:
procura-me talvez onde nenhuma cinza
possa ser o resultado
de qualquer coisa queimada.

Não deixarei de a visitar, para ler sobretudo os seus comentários cinematográficos.

Abraço.

Lauro António disse...

Miosotis: Boas férias e bom regresso.
Ida: obrigado. Beijo daqui.
c. continuemos nas sardinhas, até que a alma nos doa (como dizia o poeta). Beijo (sem sabor às dotas).

Sara F. Costa disse...

Lauro, antes de mais muito obrigada pelo seu apoio e pelo interesse que manifestou pelos meus escritos e pelos elogios desmesurados que deixam qualquer escritor sem palavras!....

g.s., acho que houve um ligeiro mal entendido pois realmente os meus poemas não se aproximam do haiku (俳句) em nenhum aspecto. Até porque existem várias características do haiku que nunca respeitei, a começar por algo fundamental que me aniquilaria totalmente que é a não utilização do poder estilístico na concepção do haiku. É nisto que o haiku se distancia do tanka, um outro género de composição poética japonesa, com maior liberdade na sua abordagem temática. Isto porque o haiku se deve restringir a um ambiente bucólico ao qual o tanka não tem que obedecer.
Também é de ter em conta que Bashô não criou os haikus, ele tornou-os mais artisticamente elaborados e aceitáveis socialmente como forma de arte. O nascimento do haiku já remota para aí ao século IX, quase desde o tempo em que os japoneses adoptaram a escrita chinesa para a sua própria língua.
Apesar de tudo, o minimalismo de algumas das composições dos meus poemas não se insere nesse género.

De todas as formas, muito obrigada pelas suas palavras de incentivo!

take.it.isa disse...

"uma folha cai
outras seguem o vento
triste, lamento"

gosto de poesia rápida (soa um bocadinho mal, dito assim, não é? lol)

gostei muito do jantar

beijos para LA e Ed

ps: vou espreitar o Bungaku!claro que vou

fcorado disse...

tens dois desafios no meu blog e uma resposta ao teu.

Lauro António disse...

Cara Sara,
Quem falou em Ai Kai, sobre os seus poemas, fui eu, e mantenho. Os erros não são seus, se
erros forem, serão meus. Também li um pouquinho de Ai Kai, e acho que a sua poesia tem influência. Não disse que eram Ai Kais. Sugeri que eram influenciados e mantenho, sobretudo pela economia de meios. Há muita maneira de se sentirem as influências. De resto, sou um leigo na matéria, claro. Não tenho problema nenhum em assumir. Não tenho a mínima pretensão em saber tudo.
Um beijo, e continua a poetar, com Ai Kais ou sem Hai-kais ou Hai-kus. O importante é que sejam “teus”. De resto, deixa os ignorantes usufrui-los como eles quiserem. Há muitos ignorantes no mundo. Veja o que diz Octávio Paz: “O hai-kai é uma imagem, tem economia verbal, humor e objectividade, características centrais da poesia moderna.”

Inês Ramos disse...

Também gostei!
Parabéns pelo blogue. E por também apresentar... Poesia!