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UM LIVRO E DOIS FILMES
1.
Um crítico literário norte-americano escreveu que “Portis é o mais extraordinário escritor de que nunca se ouviu falar.” Por esta frase (e pela proximidade da estreia da segunda versão deste romance em cinema), resolvi ler a obra e não me arrependo. Trata-se efectivamente de um escritor muito interessante, com uma linguagem fluida mas que impõe uma narrativa elegante e sensível, construindo uma história que aborda temas como a vingança e a justiça, num Oeste que aplica as suas regras muito próprias, num cenário invernoso, com personagens bem desenvolvidas, densas e ricas de nuances, com a característica de ser um relato memorialista, de uma mulher de meia idade, solteirona, que recorda a aventura vivida quando tinha catorze anos, o seu pai foi morto cobardemente por uma bala disparada por um empregado bêbado e exaltado, que Mattie Ross jura apanhar e matar. Para isso contrata o mais violento dos marshalls, o temível Reuben J. 'Rooster' Cogburn. Na companhia de um outro caçador de assassinos, La Boeuf, um ranger do Texas, penetram os três no “Território”, terra de índios, onde se acobertavam os perseguidos, para uma caçada sem tréguas.
Charles Portis com John Wayne
Charles Portis nasceu a 28 de Dezembro de 1933, em El Dorado, Arkansas, passou pela guerra da Coreia, alistado no “U.S. Marine Corps”, formou-se depois em jornalismo, trabalhou no “New York Herald Tribune”, como correspondente em Londres, e em 1964 abandonou o jornalismo, regressou ao Arkansas, e iniciou um carreira literária. Além de vários contos, reunidos em colectâneas, assinou cinco romances: 1966, “Norwood”, 1968, “True Grit”, 1979, “The Dog of the South”, 1985, “Masters of Atlantis” e 1991, “Gringos”. Julgo que nenhum deles se encontra traduzido para português, com excepção de “True Grit”, agora lançado com o suporte do filme dos irmãos Coen.
Este foi igualmente o primeiro romance de Portis adaptado ao cinema, numa versão assinada pelo mestre veterano Henry Hathaway, em 1969, a que se seguiram duas outras versões, uma para televisão, “True Grit” (1978), com direcção de Richard T. Heffron, e interpretação de Warren Oates, Lisa Pelikan e Lee Meriwether, outra, recente, da responsabilidade dos já citados Ethan Coen e Joel Coen, “Indomável” (2010), de que falaremos mais à frente.
Entretanto, em 1975, Stuart Millar tinha repescado a personagem de Rooster Cogburn e, com argumento de Martha Hyer, voltara a dar a John Wayne a oportunidade de reviver o truculento “marshall”, agora ao lado de Katharine Hepburn. O filme chamava-se precisamente “Rooster Cogburn” (O Sheriff). Não deixou saudades.
Mas houve ainda uma outra incursão de Charles Portis no cinema, uma adaptação de “Norwood” (A Rapariga do Autocarro), de Jack Haley Jr. (EUA, 1970), com Glen Campbell, Kim Darby e Joe Namath. Uma comédia que nos dizem sem grande qualidade.
2.
A versão de “True Grit” de 1969, mereceu a John Wayne o único Óscar da sua carreira, e impôs-se com um dos grandes westerns desta época, em que o género começava a ameaçar desmoronar-se na América, enquanto na Europa florescia o chamado “western spaghetti” que contribuía em muito para a decadência do género e das suas características, criando uma espécie de paródia, em tons excessivos, de uma violência desregrada e de um acentuado cinismo.
“Velha Raposa” apresentava-se num classicismo sóbrio, escorreito, solar (sublinhamos “solar”, em oposição ao “nocturno” “Indomável”, dos Coen). A história acompanha de perto o romance de Portis, com uma ou outra alteração de pormenor (prescindia-se, por exemplo, do final, com a narradora a demandar Rooster Cogburn integrado num velho circo do Oeste, a saber da sua morte e a levar o seu caixão para repousar junto do pai, na sua herdade).
Henry Hathaway foi um belíssimo realizador, com vasta filmografia (mais de 70 filmes), que deu algumas obras inesquecíveis no “thriller” e no western (ao lado de outras, como “Niágara”, com Marilyn Monroe) e, em “True Grit”, esmerou-se num trabalho magnífico, na maneira sóbria como definiu personagens, como explorou espaços, como sustentou o suspense, como trabalhou o humor, como sustentou a violência de algumas situações e as nimbou de um humanismo e de uma sensibilidade directamente retirados do olhar de uma criança determinada e voluntariosa.
Conta-se uma curiosa história sobre a compra dos direitos do romance de Charles Portis. Parece que dois pretendentes o disputavam, até que o produtor Hal Wallis os adquiriu pela considerável soma de 350.000 dólares, desconhecendo quem era o outro licitador. Hal Wallis veio finalmente a descobrir que quem pretendia comprar os direitos da obra era John Wayne, que iria interpretar o papel. Mas foi Portis quem não quis vender os direitos a Wayne pois achava que ele poderia desvirtuar a ideia do romance e retirar protagonismo à jovem. Afinal Hal Wallis acabou por ter o melhor de dois mundos: os direitos de adaptação, o concurso de John Wayne. Melhor ainda: 15.000.000 de dólares de receitas, só no mercado americano (a maior receita de um filme interpretado por Wayne).
Houve quem chamasse à criação de John Wayne o Falstaff do Oeste, e a designação tem muito de correcta, dada a forma como o actor compôs para a eternidade a figura deste “marshall” zarolho, beberrão e destemido, agente da lei, que aplica de forma muito pessoal, expedito e sucinto no julgamento. Uma figura concebida à medida da personalidade deste ícone do cinema americano, que aqui tem um dos papéis da sua vida. Mas Hathaway é um pouco sádico ao apresentar este herói muito pouco ortodoxo: para lá de zarolho e velho, bêbado e pouco ágil, não se coibiu de o mostrar sob a aparência de final de uma época de ouro, anunciando um adeus carregado de feridas no corpo e na alma. Mas, por outro lado, mesmo no Outono da vida, Rooster Cogburn não se exime a actos de extrema coragem, como o prova o duelo final, dele sozinho, em campo aberto, contra quatro bandidos, com a heróica postura do vingador, a cavalo, um revólver em cada mão, as rédeas presas pelos dentes, partindo à desfilada ao encontro aos inimigos. É simultaneamente o auge do heroísmo do western e o anúncio do seu desaparecimento. Antes de morrer, ergue-se aqui a estátua do mito.
Também Kim Darby criava uma figurinha cheia de serena impetuosidade, boa contabilista, excelente negociante, fria na vingança, sempre senhora das situações. Como lhe disse Hathaway, “tu é que és a patroa, não o Rooster Cogburn”. A seu lado, Glen Campbell, o mais fraco da companhia, Jeremy Slate, Robert Duvall, Dennis Hopper, Jeff Corey, entre outros, organizavam-se para compor uma galeria de tipos muito convincentes.
Muitos se perguntaram, se já existindo este “True Grit”, para quê regressar ao tema, quando o original se mantinha tão moderno na sua leitura e tão clássico na sua concepção. Falsa questão, claro: não é por haver já uma excelente encenação de Shakespeare que não se tentam outras. E assim surgiu a versão de 2010.
3.
“Indomável”, dos irmãos Coen, coloca-se desde já entre os melhores filmes realizados por esta dupla, ainda que afastando-se um pouco do seu caminho tradicional. Esta não é uma obra que prolongue o seu estilo muito próprio, movido normalmente por uma narrativa excêntrica, moderna, cínica. Eles, que nunca tinham tentado o western, fazem-no aqui optando por um classicismo que se quadra bem com o género.
Trata-se de um “remake”, obviamente, mas não tanto do filme de Hathaway, com o qual mantém muitas semelhanças, mas de que se distancia consideravelmente. Pode falar-se, sobretudo, de um releitura da obra de Portis. Li por aí que esta era uma versão mais fiel à obra literária, mas também não creio que seja o caso. Ambas são bastante fiéis ao texto de onde partem, ainda que aqui e ali valorizem alguns aspectos em detrimento de outros. O filme dos Coen, por exemplo, aproveita o capítulo final da obra de Portis (com a narradora a levar para a sua propriedade e a enterrar junto do pai o cadáver de Rooster Cogburn, 25 anos depois da sua aventura de adolescente), enquanto Hathaway dispensava este final. Mas há igualmente na versão dos Coen elipses de episódios relatados no texto de Portis.
Há, todavia, diferenças de estilo óbvias e olhares distintos. Os Coen optaram por conservar a narrativa na voz Mattie Ross, assumindo o filme uma toada memorialista, e sobretudo mantiveram-se fieis ao cenário natural, aqui o Arkansas, com uma paisagem mais inóspita do que o Colorado de Hathaway. Depois há aspectos que são próprios dos Coen, o seu humor, o seu realismo mais cru, a austeridade de processos, o lado nocturno da narrativa, que confere a toda a obra uma assinalável densidade dramática. Digamos que em Hathaway prevalecia a aventura, e nos Coen o drama.
Este novo “True Grit » não se afasta muito, na intriga, do anterior. Mesmo o tom é clássico, sem malabarismos escusados, mas com alguns belos momentos, como aquele que marca o início da narrativa, a chegada de comboio da adolescente Mattie Ross (Hailee Steinfeld) à cidade, onde o seu pai fora morto, onde vem recuperar o corpo e os haveres, e iniciar a vingança. Os enquadramentos e os movimentos, quer do comboio quer da câmara, são excelentemente coreografados. A contratação de Rooster Cogburn (Jeff Bridges), o encontro com LaBoeuf (Matt Damon), toda a perseguição ao malvado Tom Chaney (Josh Brolin), agora incluído no gang de Lucky Ned Pepper (Barry Pepper), decorrem com o ritmo certo, revelando personagens e situações, impondo o suspense necessário, sem descurar a definição psicológica e, sobretudo, o jogo de relações, subtil mas denso.
As sequências nocturnas revelam um director de fotografia de grande sensibilidade, Roger Deakins (que pode muito bem levar para casa o Óscar da categoria). As interpretações são todas elas excelentes, e a música de Carter Burwell cria habilmente a envolvência necessária.
Jeff Bridges afastou-se da tentação de se emular a John Wayne. Constrói um novo Rooster Cogburn, menos truculento e mais discreto, e ganha uma postura mais humana, mais nuanceada. A estreante Hailee Steinfeld, nos seus 13 anos, surpreende pela maturidade. Matt Damon é discreto e inspirado, e Josh Brolin brilhante no seu malvado Tom Chaney.
Uma vez por outra o western regressa em todo o seu esplendor. Em boa hora. “Indomável” fica como um dos prováveis grandes candidatos aos Oscars.
UM LIVRO:
INDOMÁVEL (True Grit)
de Charles Portis (EUA, 1968); Ed. Presença; Colecção Grandes Narrativas; Lisboa, 2011.
DOIS FILMES:
VELHA RAPOSA
Título original: True Grit
Realização: Henry Hathaway (EUA, 1969); Argumento: Marguerite Roberts, segundo romance de Charles Portis; Produção: Paul Nathan, Hal B. Wallis, Joseph H. Hazen; Música: Elmer Bernstein; Fotografia (cor): Lucien Ballard; Design de produção: Walter H. Tyler; Decoração: John Burton, Ray Moyer; Guarda-roupa: Dorothy Jeakins; Maquilhagem: Carol Meikle, Jack Wilson; Direcção de Produção: Frank Beetson; Assistentes de realização: William W. Gray; Departamento de arte: Adam John Backauskas; Som: Roy Meadows, Elden Ruberg; Companhias de produção: Paramount Pictures; Intérpretes: John Wayne (Marshall Reuben J. 'Rooster' Cogburn), Glen Campbell (La Boeuf), Kim Darby (Mattie Ross), Jeremy Slate (Emmett Quincy), Robert Duvall (Ned Pepper), Dennis Hopper (Moon), Alfred Ryder (Mr. Goudy), Strother Martin (Coronel G. Stonehill), Jeff Corey (Tom Chaney), Ron Soble, John Fiedler, James Westerfield, John Doucette, Donald Woods, Edith Atwater, Carlos Rivas, Isabel Boniface, H.W. Gim, John Pickard, Elizabeth Harrower, Ken Renard, Jay Ripley, Kenneth Becker, etc. Duração: 128 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audioviduais; Classificação etária: M/ 12 anos.
Classificação: ****
INDOMÁVEL
Título original: True Grit
Realização: Ethan Coen, Joel Coen (EUA, 2010); Argumento: Joel Coen, Ethan Coen, segundo romance de Charles Portis; Produção: Ethan Coen, Joel Coen, David Ellison, Megan Ellison, Robert Graf, Scott Rudin, Paul Schwake, Steven Spielberg; Música: Carter Burwell; Fotografia (cor): Roger Deakins; Montagem: Ethan Coen, Joel Coen; Casting: Ellen Chenoweth; Design de produção: Jess Gonchor; Direcção artística: Stefan Dechant, Christina Ann Wilson; Decoração: Nancy Haigh; Guarda-roupa: Mary Zophres; Maquilhagem: Kay Georgiou, Thomas Nellen, Christien Tinsley; Direcção de Produção: Catherine Farrell, Karen Ruth Getchell; Assistentes de realização: Stephen Clarke, Bac DeLorme, Betsy Magruder, Jeremy Reisig; Departamento de arte: Jeff B. Adams Jr., John Frick; Som: Craig Berkey; Efeitos especiais: Steve Cremin; Efeitos visuais: Vincent Cirelli, Katie Godwin, Catherine Hughes, Michael Perdew, Payam Shohadai; Companhias de produção: Paramount Pictures, Skydance Productions, Scott Rudin Productions, Mike Zoss Productions; Intérpretes: Jeff Bridges (Rooster Cogburn), Hailee Steinfeld (Mattie Ross), Matt Damon (LaBoeuf), Josh Brolin (Tom Chaney), Barry Pepper (Lucky Ned Pepper), Dakin Matthews (Coronel Stonehill), Jarlath Conroy, Paul Rae, Domhnall Gleeson, Elizabeth Marvel, Roy Lee Jones, Ed Corbin, Leon Russom, Bruce Green, Candyce Hinkle, Peter Leung, Don Pirl, Joe Stevens, David Lipman, Jake Walker, Orlando Storm Smart, Ty Mitchell, Nicholas Sadler, Scott Sowers, Jonathan Joss, Maggie A. Goodman, Brandon Sanderson, Ruben Nakai Campana, etc. Duração: 110 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 17 de Fevereiro de 2011.
Classificação: ****
3 comentários:
Fantástica crítica. Que prazer ler-te. *
Lauro, adorei asweu texto e as informações que me trouxeram. Lisa
Excelente interpretação do Jeff Bridges!
Apostaria o Oscar para melhor ator, caso já não tivasse ganho no ano passado. Por sinal com um filme que nunca chegou a estrear em sala.
O que não se entende. Com tanto lixo por aí...
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