quarta-feira, fevereiro 16, 2011

CINEMA: DESPOJOS DE INVERNO

:

DESPOJOS DE INVERNO

Belíssimo filme, uma das grandes surpresas destes títulos que se sabem nomeados para os Oscars. Grata revelação de uma realizadora, Debra Granik, mulher que se adivinha de forte personalidade, com um sentido descritivo profundo, um olhar atento à realidade, uma sensibilidade fina, um gosto por aprofundar o jogo psicológico das personagens, sobretudo através de elementos visíveis, gestos, olhares, silêncios, revelado inclusive pelas próprias relações físicas entre os corpos.
“Winter’s Bone” é nitidamente um filme da era Obama e relembra os do período do “New Deal” de Roosevelt, que nasceram das dificuldades criadas pela Grande Depressão dos anos 30. Os EUA vivem agora uma Depressão idêntica, depois do “crash” de 2008, e esta obra é bem um retrato do drama que o país atravessa.
Retirado de um romance do escritor Daniel Woodrell, o argumento aparece assinado por duas mulheres, a própria realizadora Debra Granik, e a produtora Anne Rosellini que aqui se reúnem pela segunda vez (ambas haviam realizado, escrito e produzido, em 2004, “Down to the Bone”, a longa-metragem de estreia de Debra Garnik).
Daniel Woodrell (nascido a 4 de Março de 1953, em Springfield, Missouri), que vive na região Ozarks, no seu Missouri natal (onde se passa “Despojos de Inverno”), tem no activo oito romances, a maior parte deles “thrillers” rurais. Além de “Winter’s Bone”, a sua obra mais recente, de 2006, Woodrell escreveu “Under the Bright Lights” (1986), “Woe to Live On” (1987), “Muscle for the Wing” (1988), “The Ones You Do” (1992), “Give Us a Kiss: A Country Noir” (1996), “Tomato Red” (1998) e “The Death of Sweet Mister” (2001). Ele próprio chamou ao estilo dos seus romances “country noir”, por evidente associação ao “filme noir”. Antes de ver em cinema “Winter’s Bone”, já assistira a “Woe to Live On” adaptado por Ang Lee, num filme chamado “Ride with the Devil” (1999).
As ásperas e agrestes montanhas Ozark, que se situam entre os rios Arkansas e Missouri, são de reduzida altitude, em jeito de planalto, e funcionam na perfeição para o tipo de obra a que Debra Granik lançou mão. Dispersas pelo seu interior, vivem pequenas comunidades e famílias isoladas, grassa o crime e a droga, cresce a pobreza e a miséria. Os habitantes são rudes e quase primitivos e a família de Ree (Jennifer Lawrence) não foge a este condicionalismo social. O pai, que cozinhava cocaína e fora preso, desaparecera em liberdade condicional, e a família ficara dependente da tenacidade da filha mais velha, com a mãe imobilizada com problemas mentais, e dois irmãos mais novos para tratar. Mais ainda: o pai dera a casa e o terreno como garantia e, se não aparecer, morto ou vivo, a garantia será cobrada pelas finanças, no prazo de uma semana.
Ree não sabe para onde se virar, mas possui a fibra das grandes mulheres, apesar dos seus 17 anos, e faz das tripas coração, revolve céu e terra para encontrar o pai e alimentar a família. À mais pequena falha, podia cair-se aqui no melodrama choramingas, mas Debra Granik aguenta o tom do filme com uma sobriedade invulgar e faz da personagem de Ree uma heroína, que se confronta com todas as intempéries da vida e com a brutalidade dos homens e do seu silêncio cúmplice.
A fome atravessa a paisagem de inverno, e Ree leva o seu cavalo ao estábulo de uma vizinha para esta o alimentar com o feno que ela não pode comprar. Cena pungente na sua serenidade e discrição. As árvores e as casas participam desta desolação inóspita, a terra parece seca e imprestável, o drama social assemelha-se ao de “As Vinhas da Ira” (Steinbeck/Ford) dos anos 30 (com diferenças epocais óbvias, mas o mesmo sofrimento inclemente a estampar-se no rosto das vítimas indefesas).
Ree é figura que vai permanecer para sempre na história do cinema, como retrato inesquecível de uma mulher/menina de antes quebrar que torcer, perseverante, teimosa, indomável (curiosamente muito parecida com a Mattie Ross, de “True Grit”, uma composição sua concorrente ao Óscar) que sofre todos os rigores que a miséria física e psicológica impõe, mas que nunca desiste da sua missão. Uma imagem de marca do outro lado do “New Deal”, que procurava encorajar o cidadão comum a enfrentar a crise e encontrar soluções para a ultrapassar. Desenvolvendo acções de voluntarismo e solidariedade que, curiosamente, são também visíveis em “Despojos de Inverno”. Mesmo num terreno tão pantanoso de um ponto de vista social e moral como este em que decorre a intriga do filme, é possível vislumbrar olhares e gestos de cumplicidade, por vezes temerosa, por vezes secreta, mas que permitem deixar a obra com alguma esperança no coração. Ree é a imagem desse querer que tudo parece remover.
Debra Granik conta com um excelente argumento, que torna densa a obra, que provoca uma inquietação sufocante, que cria um suspense invulgar, com pequenos apontamentos e uma história enxuta e austera que quase recusa toda a ganga do “thriller” tradicional, para provocar uma emoção mais íntima e discreta. A fotografia, a direcção artística, a música, a montagem são elementos primordiais para o resultado final. Mas o elenco, todo o elenco, algum dele composto por actores não profissionais, é absolutamente decisivo para o absoluto sucesso desta obra. São personagens invulgarmente impositivas, algumas com escassos minutos de presença.
Jennifer Lawrence, na protagonista, é simplesmente brilhante. Não vai ganhar o Oscar, porque este já está, há muito, nas mãos de Natalie Portman, mas bem o merecia. Desde já fica, porém, uma certeza: Jennifer Lawrence é nome a não perder de vista, bem como o da realizadora Debra Granik.
O filme triunfou em Sundance. Não podia deixar de ser: é o exemplo típico do melhor cinema indie norte-americano. A não perder.
                                              a realizadora Debra Granik 
DESPOJOS DE INVERNO
Título original: Winter's Bone
Realização: Debra Granik (EUA, 2010); Argumento: Debra Granik, Anne Rosellini, segundo romance de Daniel Woodrell; Produção: Kathryn Dean, Kathryn Dean, Alix Madigan, Michael McDonough, Anne Rosellini, Jonathan Scheuer, Shawn Simon; Música: Dickon Hinchliffe; Fotografia (cor): Michael McDonough; Montagem: Affonso Gonçalves; Casting: Kerry Barden, Paul Schnee; Design de produção: Mark White; Decoração: Rebecca Brown; Guarda-roupa: Rebecca Hofherr; Maquilhagem: Maya Hardinge, Marina Proctor; Direcção de Produção: Maura Anderson; Assistentes de realização: Jolian Blevins, Yann Sobezynski, Cedric Vara; Departamento de arte: Russ Dove, Richard Peete, Nathan R. Webster; Som: James Demer, Matt Rocker, Damian Volpe; Efeitos especiais: Nathan Shelton; Efeitos visuais: Jessica Allen Elvin, Andrew Still; Companhias de produção: Anonymous Content, Winter's Bone Productions; Intérpretes: Jennifer Lawrence (Ree), Isaiah Stone (Sonny), Ashlee Thompson (Ashlee), Valerie Richards (Connie), Shelley Waggener (Sonya), Garret Dillahunt (Sheriff Baskin), William White (Blond Milton), Ramona Blair, Lauren Sweetser (Gail), Andrew Burnley, Phillip Burnley, Isaac Skidmore, Cody Brown (Floyd), Cinnamon Schultz (Victoria), John Hawkes (Teardrop), Casey MacLaren (Megan), Kevin Breznahan, Dale Dickey (Merab), Sheryl Lee (April), Marideth Sisco, Tate Taylor (Satterfield),  Ronnie Hall (Thump Milton), Beth Domann (Alice), Charlotte Jeane Lucas (Tilly), Raymond Vaughan Jr. (Ray), Russell Schalk, Brandon Gray, etc. Duração: 100 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 17 de Fevereiro de 2011. 
Classificação: ****

Sem comentários: