segunda-feira, dezembro 26, 2011

CINEMA: NOS IDOS DE MARÇO



 NOS IDOS DE MARÇO 
Há um aspecto curioso na crítica cinematográfica portuguesa que eu arrisco a chamar de mais “conservadora” e “direitista”, apesar de hoje em dia grande parte dela se poder integrar neste rótulo (ao contrário do que aconteceu nos tempos áureos da crítica, nos anos 50, 60 e 70, onde era maioritariamente “de esquerda” e dita “progressista”). Esse aspecto repete-se de filme para filme, quando estes tentam de alguma forma criticar, ou beliscar sequer, o sistema capitalista e as estruturas políticas norte-americanas ou de outros países de democracias ocidentais. Quando surge um filme destes, como o recente caso de “Nos Idos de Março”, a crítica mais insistente é que o título não traz nada de novo e se mostra uma repescagem do cinema “progressista” dos anos 70, de Sidney Lumet, de Martin Ritt, de Sidney Pollack ou Alan J. Pakula.
Curiosamente (e isto só é visível para quem já tenha uns anos destas lides e alguma memória, como é o meu caso), nos anos 70, não estes críticos, mas alguns outros idênticos a estes, diziam que os filmes de Sidney Lumet, de Martin Ritt, de Sidney Pollack ou Alan J. Pakula não traziam nada de novo e repescavam o cinema “progressista” dos anos 30 e 40, onde aí sim, havia John Ford, Frank Capra, William Wyller e quejandos. Ou seja, quando se problematizam questões sociais e poliíticas, o melhor é enxotar a obra e depreciá-la, sobretudo em função do passado, porque esse já parece não incomodar ninguém, encerrado em cinematecas para cinéfilos e curiosos, longe dos olhares do grande público.
Ora “Nos Idos de Março” não será uma obra-prima, mas é um grande filme. Um dos grandes filmes de 2011. George Clooney, depois do seu excelente “Good Night, and Good Luck” (2005) oferece-nos outra obra de profunda reflexão sobre o estado actual da actividade política nos EUA. Não, não é de maneira nenhuma uma “reprise” dos filmes de Sidney Lumet, de Martin Ritt, de Sidney Pollack ou Alan J. Pakula, agora empreendida por um aprendiz. É uma reflexão sobre a falta de integridade e de dignidade que campeia em todas as frentes, quer se trate de democratas ou republicanos, (quase) todos eles imbuídos de um mesmo fervor corruptor em defesas de causas que nada mais move do que o desejo de satisfazer clientelismos e interesses obscuros (ou não tanto obscuros, para quem tiver os olhos abertos).
A acção passa-se durante uma campanha eleitoral para as primárias dos democratas. Em Ohio. Claro que há filmes absolutamente irrecusáveis para comparar, a começar desde logo pela obra-prima de John Ford, “O Último Hurra” (1958), e continuando com “A Última Testemunha” (Paralax View, 1974), de Pakula, “O Candidato”, de Michael Ritchie (1972) ou “Bulworth - Candidato em Perigo” (1998), de Warren Beatty. Mas o filme de George Clooney vai noutra direcção, dispensando a acção exterior, os atentados e a violência física, para se centralizar na palavra e no silêncio, na conspiração e no segredo. Hoje as intrigas não culminam em cenas de tiros ou explosões, com a aniquilação física dos protagonistas. Entrou-se numa fase muito mais sofisticada, aproveitando os computadores e os telemóveis, as agências de “ratting” e os poderes invisíveis. Neste aspecto, relembra mais “O Mundo a Seus Pés” e a forma como se destrói um candidato na sombra dos bastidores. Mas em Orson Welles o candidato era destruído por um mau passo dado na penumbra da alcova de uma cantora de ópera sem talento. Aqui, o candidato salta a barreira de um caso amoroso mal resolvido, com aborto previsto e suicídio transformado em imprevidente acidente, e quem fica com o ónus do caso é um conselheiro, também ele não isento de culpas no cartório, pois neste caso não há anjos e demónios, apenas homens sem palavra nem dignidade. 
Em “The Ides of March”, tal como em Shakespeare, o que impera é a traição: foi a 15 de Março do calendário romano que Júlio César foi apunhalado por Brutus. Traição que agora não se expressa por um apunhalamento sangrento, mas por algo mais subtil, possivelmente mais letal, e sem deixar marcas visíveis: a deslealdade, o volte face, o truque de baixa política que aniquila uma carreira. Resta saber quem é mais esperto e mais veloz no contra-ataque, quem possui as melhores armas e quem melhor as utiliza.
Em “Nos Idos de Março” há vítimas, mas estas são apenas os votantes que aclamam os seus ídolos sem se aperceberem dos seus pés de barro. Nesta campanha, como em qualquer outra rival, de democratas ou republicanos, o que vemos é ausência de valores. Ou como se diz, no final do filme, de integridade e de dignidade. Na verdade, olhando para qualquer lado para onde nos voltemos, a desilusão é mesma. Na América, na Europa, nos Árabes, unidos ou desunidos, na China ou na Coreia do Norte. 
O filme tem um naipe de actores absolutamente notável, digno de um prémio de elenco global, onde sobressaem Ryan Gosling, George Clooney, Philip Seymour Hoffman, Paul Giamatti, Marisa Tomei, Jeffrey Wright, todos excelentes, e uma Evan Rachel Wood, já vista num recente Woody Allen, e que aqui explode definitivamente. Mas para lá da tão elogiada interpretação conjunta, há que sublinhar a cuidadosa realização de Clooney, segura, austera, criando um clima de intriga ciciada que marca todo o filme e lhe confere uma originalidade absoluta, no que é muito bem acompanhada pela banda sonora, a fotografia e todos os demais elementos técnicos ao serviço da narrativa. A câmara de Clooney tão depressa é intimista, num campo / contra campo serrado (as conversas admiráveis de Gosling e Rachel Wood, por exemplo), como isola uma personagem num vasto cenário (com a bandeira dos EUA por pano de fundo) ou um grupo de conspiradores num “décor” que os ultrapassa. Excelente, eficaz, e de uma completa economia de meios.
Creio que este é um dos grandes candidatos aos Oscars que se aproximam.
NOS IDOS DE MARÇO
Título original: The Ides of March
Realização: George Clooney (EUA, 2011); Argumento: George Clooney, Grant Heslov, Beau Willimon, segundo peça teatral deste último ("Farragut North"); Produção: George Clooney, Leonardo DiCaprio, Guy East, Barbara A. Hall, Grant Heslov, Jennifer Davisson Killoran, Randy Manis, Brian Oliver, Stephen Pevner, Ari Daniel Pinchot, Jonathan Rubenstein, Matthew Salloway, Nigel Sinclair, Todd Thompson, Tyler Thompson, Nina Wolarsky; Música: Alexandre Desplat; Fotografia (cor): Phedon Papamichael; Montagem: Stephen Mirrione; Casting: Ellen Chenoweth; Design de produção: Sharon Seymour; Direcção artística: Chris Cornwell; Decoração: Maggie Martin; Guarda-roupa: Louise Frogley; Maquilhagem: Kevin J Edwards, Julie Hewett; Direcção de Produção: Barbara A. Hall, Michelle Lankwarden, Michael Tinger; Assistentes de realização: Ian Calip, John R. Saunders, David J. Webb; Departamento de arte: Benjamin Dell, Jody Gaber, Justin Noble Lang, George Lee; Som: Edward Tise, Elmo Weber; Efeitos especiais: Russell Tyrrell; Efeitos visuais: Jay Shindell; Companhias de produção: Cross Creek Pictures, Exclusive Media Group, Smoke House, Crystal City Entertainment; Intérpretes: Ryan Gosling (Stephen Meyers), George Clooney (Governador Mike Morris), Philip Seymour Hoffman (Paul Zara), Paul Giamatti (Tom Duffy), Evan Rachel Wood (Molly Stearns), Marisa Tomei (Ida Horowicz), Jeffrey Wright (Senador Thompson), Max Minghella (Ben Harpen), Jennifer Ehle, Gregory Itzin, Michael Mantell, Yuriy Sardarov, Bella Ivory, Hayley Meyers, Maya Sayre, Danny Mooney, John Manfredi, Robert Mervak, Fabio Polanco, Frank Jones Jr., Peter Harpen, Rohn Thomas, David McConnell, etc. Duração: 101 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 10 de Novembro de 2011.

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