terça-feira, junho 11, 2013

TEATRO: O CAMPEÃO DO MUNDO OCIDENTAL



 
O CAMPEÃO DO MUNDO OCIDENTAL
 
"Sempre gostei das peças em que se abre uma porta. Aqui, quem entra pouco depois de se levantar o pano, é mesmo inesperado. Atrapalhado, tímido, receoso, inseguro, olhando para todos os lados, aquele rapaz roto e sujo traz consigo mentiras, fantasias, histórias que vai inventando à nossa frente. Não é isso a vida, histórias que vamos inventando para sobreviver à dureza dos dias, à sujidade das nossas correrias? É pelo menos isso o que penso que pode ser o teatro: uma porta de onde nos chega a vida, as mentiras, os sonhos de grandeza, a sedução, o irreprimível desejo. Ao querer fazer este texto vibrante que iniciou o teatro europeu do século XX (estreou em 1907 e ainda não deixou de marcar o que se faz), quero, com os maravilhosos actores que agora há, voltar a pensar que realismo e poesia, invenção e atenção confluem sempre no teatro, sempre frágil. E, tal como nos disse um dia o grande dramaturgo grego Dimitris Dimitriadis (que ainda não conseguimos estrear), 'voltar a contar histórias, voltar a fazer entrar personagens nos palcos que Samuel Beckett esvaziou para sempre'. Sabe tão bem voltar ao teatro. E fazer aquela coisa tão difícil: rir e enternecer-se." - Jorge Silva Melo
 

Foi na última representação que tive oportunidade de ver “O Campeão do Mundo Ocidental”, do irlandês Edmund John Millington Synge (16 de Abril de 1871 – 24 de Março de 1909), mais conhecido por J. M. Synge, que Jorge da Silva Melo encenou no Teatro Nacional D. Maria II, num espectáculo belíssimo. Esta que é considerada a mais importante criação dramática do autor teve a sua estreia em Janeiro de 1907, no Abbye Theatre, em Dublin, com uma recepção inicial violentamente adversa, nela incluindo a do líder nacionalista Arthur Griffith, que achou a obra pouco política, corriqueira em demasia na sua linguagem, oferecendo mesmo uma imagem degradante da situação moral da Irlanda. Mas o grande poeta Yeats, no dia seguinte, insurgiu-se contra os manifestantes e os protestos pararam. Mas a obra, entre a comédia e o drama, de difícil catalogação e de não fácil interpretação, apesar de percepção escorreita, ainda hoje foge a um enquadramento tranquilizador, o que faz parte da sua sedução.

A acção decorre numa aldeia irlandesa, Aran (há que ver “O Homem de Aran”, par se perceber a aridez trágica da paisagem e a dureza da vida dos habitantes que vivem no alto de ravinas com o mar aos pés), e o cenário é único: uma taberna local onde, por essa porta de que fala Jorge Silva Melo, entra um jovem aparentemente tresloucado, “atrapalhado, tímido, receoso, inseguro, olhando para todos os lados”, contando uma história bizarra: acabara de matar o pai com um golpe de sachola na cabeça. A filha do dono da loja, o pai e os amigos, as raparigas da aldeia, as mulheres e os homens do burgo fazem-no, desde logo, herói, mesmo “campeão”, quando algum tempo depois ganha todas as provas disputadas entre os habitantes lá da terra. Não há condenação moral, há mesmo uma forte cumplicidade geral para o esconder e ajudar à sobrevivência. As raparigas e as mulheres disputam o seu amor, a demonstração de virilidade, o casamento. Infelizmente, um dia o pai chega, com uma ligadura à volta da cabeça a encobrir o galo que afinal não fora fatal, e a auréola do “campeão” esbate-se num ápice. De herói para a cobarde e mentiroso. A ironia é feroz, o ritmo empolgante, a sucessão de cenas deixa o espectador suspenso da inquietação e de uma certa incomodidade.
 

Com belíssima cenografia e excelentes figurinos de Rita Lopes Alves, que nos restituem o clima, isolado e denso, do interior da taberna e nos deixam adivinhar a vertigem do exterior, "O Campeão do Mundo Ocidental" impõe-se ainda pelo magnífico trabalho de actores de um sólido elenco, onde será justo destacar as interpretações de Elmano Sancho, Maria João Pinho, Américo Silva e Maria João Falcão.
Em conversa, no final do espectáculo, Jorge Silva Melo chamou-me a atenção para um facto interessante: esta peça, e o teatro de J. M. Synge, terão tido, por diversas vias, influência directa nas obras de John Ford (americano por nascimento, mas irlandês de coração, veja-se “A Taberna do irlandês”) e Charlie Chaplin (inclusive na criação da personagem de Charlot). Mesmo o britânico Hitchcock, que trabalhou com várias actrizes que interpretaram “The Playboy of the Western World”, não terá sido alheio a alguma sugestão.
Última curiosidade: com o título “O Valentão do Mundo Ocidental”, António Pedro encenou esta peça, no Teatro Experimental do Porto, em 1958, com Dalila Rocha, Vasco de Lima Couto, José Pina, Égito Gonçalves, Baptista Fernandes, João Guedes, entre outros. Mais tarde, o Teatro da Malaposta, em 1994, voltou a produzir o espectáculo, com José Airosa e Ana Nave nos protagonistas, com encenação de Rui Mendes. Em 2007, o Cendrev, no Teatro Garcia de Resende, de Évora, recriou a peça, numa nova encenação de José Russo, com Nelson Boggio na figura de Christy.  

O Campeão do Mundo Ocidental (The The Playboy of the Western World) - Texto de J. M. Synge; tradução Joana Frazão, com apoio à tradução de Ireland Literature Exchange; encenação Jorge Silva Melo; cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves; coreógrafo de lutas: Sérgio Grilo; luz de Pedro Domingos; produção de João Meireles; assistente de encenação: Mirró Pereira e Américo Silva; co-produção: TNDM II / Artistas Unidos; Intérpretes: Elmano Sancho, Maria João Pinho, Américo Silva, Maria João Falcão, Rúben Gomes, João Vaz, António Simão, Nuno Pardal, João Delgado, e os estudantes da ESTC Rita Cabaço, Isac Graça, Catarina Campos Costa, Nídia Roque, Daniela Silva, João Reixa, Bernardo Souto, Nuno Geraldo.

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