Poetisa, romancista, actriz, brasileira (com quem me cruzei pela vez primeira num palco do cinema de Vila Boa de Goiás, vai par cinco anos, durante um FICA), Cássia Fernandes não é ainda conhecida em Portugal, mas vai sê-lo. Até lá, aqui fica mais um exemplo da sua poesia, por vezes lirica, por vezes irónica. Nesta aventura de deixar as emoçôes atravessar o Atântico e aproximar as vozes (coisa não rara, entre escritores famosos, mas também entre outros que o são menos, oh!), a minha opção vai para quem faz da poesia, não a habitual filigrana de pinderiquice sentimental, mas para quem trabalha a palavra com o gozo de a saborear e a subverter.
(A foto é de um recital de Cássia, na Casa Museu de Cora Coralina, em Junho de 2005. Ela agora está mais magra, mas a doçura é a mesma.)
Impressões de uma fazenda que virou taperão
I
Com o tempo,
até o arame farpado,
abandonado
em rolos arrepiados,
vira capim.
O braquiara transforma
em si mesmo
a coisa amada.
Braveza e farpa
num mesmo nó
agora são um só.
E nele
galinhas chocam ovos
e vacas pastam, bocós!
II
Enquanto isso,
dois cochos apaixonados,
em intersecção
trocam o sal mineral das palavras
e as impressões
de seus toscos corações
de aroeira.
III
O braquiarão, persistente,
abraça as farpas do arame,
sem temer cortar-se.
Logo este, beligerante,
que pretende prender
até as rodas d` água,
que já não corre mais
como antes –
desnecessárias elas
no tempo
das minas abundantes
do antigamente.
IV
E nesse enquanto
o céu e o pedregulho
preparam
a represa
para a viagem circular
pelas estrelas.
V
Caverna de água e sombras de Platão
em traços de impressão.
Qual árvore será verdade
e qual vendaval?
Qual me leve e livre
e qual me lave e salve?
E de onde virá o louva-deus?
E por quais sinos dobram
as bananeiras?
VI
O tempo é mesmo implacável!
O tempo derruba cercas antigas
de aroeira.
E o paiol de milho
que antes abrigava
a fartura das colheitas
e filhotes de gato sem família
hoje é apenas uma porta
aberta para a vastidão do pasto
e para a solidão infinita.
VII
O tempo tudo avacalha
e tudo vilipendia.
O jacá de palha
e o carrinho de mão,
antes pesados e livres,
são apenas ninhos imóveis
cobertos de titica,
suspensos na gameleira,
que em si não se equilibra,
apoiada em troncos amputados,
muletas de seiva morta,
pra manter a sombra torta.
VIII
Antes frondoso exílio de menina,
hoje poleiro de angolas e galinhas,
hotel de jacaré,
que como o barão de Calvino
exilou-se no alto das árvores,
para fugir a seu destino
e do alto chorar
lágrimas e seivas
de crocodilo
e ter no jantar
deliciosos passarinhos.
Deus às vezes
corrige a criação
e dá asas a animais
de sangue frio!
IX
Juras provisórias de amor
de um certo Antônio Alves,
que ninguém sabe quem é,
que amava uma tal de E....
E de Etelvina, de Eterna,
de Élida Divina
e que não contou pra ela
que da gameleira
se fazem gamelas.
X
E ali, perto da inscrição a canivete
galhos que se confundem
como pernas e braços a gemer
no inferno
de Dante Alighieri
e Gustave Doré.
XI
Dessas impressões
de uma fazenda tornada Taperão
se conclui que:
o tempo e as galinhas
tudo transformam em ninho.
Nada escapa à sanha
de inverter-se
e de ter pintos.
Rolos de arame farpado.
Caixotes.
Velhas manilhas.
Pneus há muito rodados.
Pilões de monjolos desativados.
Regos d´água secos
de riachos deprimidos.
E até chapéus de palha,
que saíram a cavalo
ou a passeio
e jamais voltaram
para o seio
de seus cabides.
O tempo deixa mesmo
esse olhar contemplativo
para as paredes.
XII
E de tanto fuçar e ler,
passei a ver
na casinha em que se guardam
badulaques e tranqueiras,
fazendeiros do ar
que respiro.
Invisíveis,
montados em arreios,
balouçando estribos!
Cássia Fernandes
24-06-2006
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