quinta-feira, julho 31, 2008

PASSATEMPO DE VERÃO, III

"ALL THAT JAZZ"
Uma das obras-primas do musical, "All That Jazz", de Bob Fosse (1979). Para a Cátia Garcia do "Um Ideal... Não Muito Perfeito". Como através da morte se pode erigir um hino à vida. Um dos grandes filmes da década de 70, nos EUA. O vitalismo mais completo, num filme de cortar a respiração. Recordemos algumas sequências nestes dias de Verão.









O QUE ANDEI A LER

Leituras
Depois de meses enredado em leituras políticas que tinham Salazar e Humberto Delgado como protagonistas, foi a partir de Maio que me lancei mais propriamente por outros terrenos. O policial não faltou. Li um curioso e entretido “Cidade Inquieta”, de Brian Freeman (Ed. Presença), passado em Las Vegas. Li, no Brasil, o último Luiz Alfredo Garcia-Roza, “Na Multidão”, Ed. Companhia das Letras), com o sempre apetecível inspector Espinosa (que recomendo vivamente!) e descobri finalmente um outro brasileiro, Tony Bellotto, que lançou um detective privado de nome Bellini, na melhor tradição de Chandler (a não perder também, tanto mais que começou a ser editado em Portugal). Li três volumes, todos magníficos: “Bellini e os Espíritos”, “Belline e o Demónio”, e “Bellini e a Esfinge” (Ed. Companhia das Letras).
No mesmo campo, tentei ler “O Grande Fedor”, de Clare Clark (ed. Paralelo 48), mas deixei a meio sem pachorra. Os subterrâneos mal cheirosos de Londres, século XIX. OK. Sobre Londres vitoriana prefiro Conan Doyle, e sobre cheiros quem leu “O Perfume” tem uma bitola de comparação muito alta.
Chego então à obra-prima do género, “Os Homens que Odeiam as Mulheres”, do sueco Stieg Larsson (Ed. Oceanos). Bem escrito, imaginoso, moderno, com personagens brilhantemente descritas, situações que cruzam as crendices medievais, a informativa e os crimes de colarinho branco, esta é uma leitura obsessiva. Quando cheguei ao fim, lamentei não ter mais livro para ler. Mas vêm aí mais dois volumes. E não virão mais porque o jovem autor morreu pouco depois de ter entregue a sua obra na editora. Se os próximos volumes forem iguais a este, é um marco na literatura mundial. Reze-se para que a escolha do realizador a adaptar esta obra ao cinema seja de molde a que ele consiga captar o ambiente e o espírito. Ainda no Brasil, li “Jonas, o Copromanta” (Ed. Companhia das Letras), de uma Patrícia Melo de que gosto bastante. Este novo romance é magnífico e inquietante. Jonas, o protagonista, é empregado na Biblioteca Nacional, reescreve os clássicos para que terminem conforme à “sua” moral. Mas, para lá de tudo isto, a sua principal actividade é a adivinhação com base nos excrementos que diariamente vai deixando na sua retrete. Claustrofóbico, obsessivo, compulsivo, escrito de uma forma brilhante. A não perder.
Muito me tinham falado de Lya Luft, e de quem nunca tinha lido nada. “O Silêncio dos Amantes” (Ed. Record) cativou-me para ler no avião, de regresso a Lisboa. Fiquei sem saber para que lado me virar (acontece!), mas acabou por não me convencer muito. Tem uma escrita leve, clara, mistura emoção e fantástico, em histórias familiares, que contam histórias do passado, da meninice. Mas falta-lhe força e fica-se por uma escrita “light”. Quase que chega lá, mas pára a meio caminho.
De Carlos Ademar tinha lido e gostado muito de “O Homem da Carbonária”. O autor teve a amabilidade de me enviar agora “Memórias de um Assassino Romântico” (Ed. Oficina do Livro) que me deixou um pouco perplexo. É a história de um “serial killer” português que mata em nome de uma “justiça natural”. Parece ser homem “de esquerda”, e vai limpando o país de canalhas que a polícia não consegue encarcerar. Ele julga, assina e executa a sentença. É um processo que progressivamente o vai levando mais longe (até assassinar o primeiro ministro) e cada vez mais o fecha numa loucura sem saída. Óbvio que o autor não defende a justiça pelas próprias mãos, mas o processo é complicado e, julgo, perigoso. De Carlos Ademar li também “Estranha Forma de Vida”, de que gostei mais.
Mário de Carvalho lançou “A Sala Magenta” (Ed. Caminho), que tem um realizador de cinema português como protagonista. É bem escrito como sempre, num torvelinho de vidas sem horizontes, amores e desamores, doenças e mortes, trajectórias que terminam tão mediocremente como foram existindo. Não me trouxe nada de novo, mas marca a presença de um dos nossos bons escritures. Lídia Jorge deu-nos também cinco contos que rodam à volta de locais urbanos realmente existentes, como a “Praça de Londres” (Ed. Dom Quixote”). Contos poéticos, mágicos, um deles chamado “Perfume” que homenageia um realizador turco, Yilmaz Guney, autor de “Yol”. Gostei deste particularmente.
“A Mulher que Prendeu a Chuva”, de Teolinda Gersão (Ed. Sudoeste) agrupa catorze histórias de um dia a dia que se cruza com o maravilhoso, o fantástico, o mágico. É uma escrita que nos enreda, nos envolve. Sou muito sensível ao universo de Teolinda Gersão e às suas pequenas histórias de gente aparentemente sem importância. Finalmente, por agora, estou nas últimas páginas de “No me Callo!”, de Bart Jones (Ed. Ministério dos Livros), “a biografia explosiva de Hugo Cháves”. Livro muito interessante sobre uma personagem complexa que continuamente foge a definições apressadas. Tinha-o com um aprendiz de ditador meio louco. Mas havia, aqui e ali, alguém a levá-lo a sério. Inclusive Mário Soares, que não é pessoa para ter simpatia por ditadores. Tive muita curiosidade em percebê-lo melhor e o livro, escrito com alguma imparcialidade, oferece-nos um Cháves muito diferente do lugar comum a que muitos o procuram amordaçar. Muito interessante ainda para perceber a politica mundial, a manipulação de massas, os esquemas montados na perfeição para enganar o Zé-povinho. As teias de interesses que se movimentam por detrás de cada acontecimento “espontâneo”. Uma boa lição de historia política. Muito recomendável.

quarta-feira, julho 30, 2008

PASSATEMPO DE VERÃO, II

LA DOLCE VITA

Uma outra obra-prima revisitada, para o Frederico de "Não há Nada como o Realmente". Desta feita um Federico Fellini, possível entre tantos outros, de "8 1/2" a "Amacord", meus filmes preferidos. Mas o Fred gosta mais de "La Dolce Vita" (Itália, 1960), e compreende-se. Por isso aqui ficam algumas entradas para a obra de Fellini, um dos maiores cineastas italianos de sempre. Recordam-se também palavras suas.

Uma sequência de "La Dolce Vita"


A dança da Fonte de Trevi:


Adriano Celentano "La Dolce Vita":


Entrevista com Fellini:


TERCEIRA, NOTAS DE VIAGEM, I

FESTIVAL AZURE NA TERCEIRA

O pretexto foi a apresentação de uma extensão do Cine Eco, acoplada a um festival de música mesmo muito alternativa, o “Festival Azure”, que decorreu entre 24 e 26 de Julho, na zona de lazer de S. Brás, na Ilha Terceira. Nunca tinha estado na Terceira, esperava ficar em Angra do Heroísmo, de que me tinham tecido ao mais rasgados elogios, mas fui parar ao hotel “Varandas do Atlântico”, na segunda cidade da ilha, a Praia da Vitória, de que desconhecia até a existência, o que me provocou de início uma certa frustração.
Vista do hotel
A Praia da Vitória fica a 20 quilómetros de Angra, e reservei viagem para o segundo dia. No primeiro tomei contacto com o festival, a noite não era de Verão (ou seria de Verão “nos Açores”), chovia, ventava e estaria certamente “mau tempo no canal”. Mas, no autocarro que nos foi buscar ao aeroporto, vim na companhia de uma banda portuguesa “da pesada” que ia actua nessa noite, os “Kalashnikov”, e a viagem foi divertidíssima. O meu forte não é, como devem calcular, o “Hard Rock” nem o “rock da pesada”, mas eles gostavam de “Drácula” (pudera, não fossem góticos!), de cinema em geral, eram cinéfilos e simpatiquíssimos, muito contestatários, carregados de adereços a condizer e, no final, despediram-se com um cumprimento irresistível: “Somos “da pesada”, mas muito divertidos! Apareça!”.
o grande palco, com os kalashnikov
Apareci. Foi uma espécie de descida aos infernos. Ou subida, já que a carrinha que nos foi buscar ao hotel, a mim e à Eduarda, para nos levar ao local do Festival, descolou da marginal e desatou a subir ilha a cima, até um local de diurnas merendas, na freguesia de S. Brás. Aqui as merendas eram profundamente nocturnas. Era uma noite de breu, a estrada serpenteava com raro transito, depois o carro guinou para a esquerda e entrou num trilho de terra batida, e parou por detrás de um improvisado palco, onde iam actuar os grandes grupos durante as três noites, Uma clareira frente ao palco perdido na vegetação, meia dúzia de barracas de comes e bebes e umas quantas de informação e sensibilização ambiental dispersas em redor, uma tenda ao fundo, onde passavam os filmes do Cine Eco, centenas de jovens passeando enquanto esperavam que o horário (não) fosse cumprido, era quase meia noite e não tinha começado uma maratona que prometia estender-se até de manhã. Um DJ ia animando a festa, com música ensurdecedora, depois começou na Multimédia Zone a apresentação do filme de Sílvio Tendler, enquanto os Kalashnikov atacavam os primeiros temas da madrugada.
a tenda onde se projectavam os filmes do Cine Eco
"Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá" é uma obra que fala da globalização e dos seus perigos, apontando alguma das suas possíveis virtudes ainda não concretizadas ou devidamente exploradas. Acredita nalgumas transformações da sociedade, e fala com esperança do Terceiro Mundo, da Índia, do Brasil, da China… Enquanto Milton Santos sublinha o papel do China, do outro lado do terreiro, os Kalashnikov gritam contra Tianamem, contra George W. Bush, contra os acordos das Lajes (ali mesmo ao lado), fazem a (satírica, pareceu-me!) apologia do terrorismo árabe e do separatismo açoriano (“Convidem-nos para a banda sonora do filme!”). A confusão é completa. As palavras do filme cruzam-se com os “Fuck Off” do ensurdecedor estribilho dos Kalashnikov. Uma noite para recordar, uma experiência única. Creio que se Sílvio Tendler estivesse presente iria ficar entusiasmado. Quero também ouvir mais e melhor os Kalashnikov.
Não houve, todavia, muito mais tempo para estes cruzamentos criativos. Na noite seguinte, o Festival teve de interromper os trabalhos, uma chuvada torrencial fustigou o acampamento, o tecto do palco principal veio a baixo, não houve concertos nesse dia e só os houve na noite seguinte depois do concerto do palco. Nessa noite tocavam os Slimmy, que encontrei na esplanada no hotel, frente ao mar. Quando os interpelei para saber qual o nome da banda (banda era de certeza, faltava saber qual a designação), dei de caras com o vocalista e mentor do grupo, um loiro já devidamente paramentado para o espectáculo, que me disse chamarem-se “Slimmy”. Mas foram mais longe, enquanto eu tentava recordar donde conhecia aquela cara, emoldurada por um berrante cabelo amarelo vivo. Esse mesmo, perguntou-me: “Professor, já não se lembra de mim? Sou o Paulo, seu aluno do primeiro ano do TCAV, do Porto.” É sempre fabuloso encontrar um ex-aluno. E quando o vemos triunfante, mesmo que não seja no que lhe tentámos ensinar, ainda é melhor a sensação. Que bom é ver um ex-aluno feliz e com alguma felicidade por encontrar um ex-professor. Falámos um pouco enquanto do outro lado da estrada a Eduarda ia tirando umas fotos à paisagem, e ouvindo o que se dizia à volta. Contou-me depois: “Dois autóctones passaram enquanto tu falavas com os “Slimmy” e comentaram entre si: “Olha um “camone” a engatar as bichas!” As aparências iludem muitas vezes. Nem sou “camone”, nem eles “bichas”, nem alguém engatava quem quer que fosse. Só equívocos!
O "camone" à entrada de um Império na Praia da Vitória
Voltando aos alunos e professores: na noite da projecção de Milton Santos, estava eu sentado na improvisada plateia, sem uma única luz de referência a não ser a do ecrã, quando uma mão me toca no braço, e pergunta: “É o Lauro António, não é?” Olhei, era uma belíssima Filipa de vinte e poucos anos, que também tinha sido aluna na ESE do Porto, onde eram as instalações do CTAV. Aí dei aulas durante quinze anos. Ela não tinha sido minha aluna, pertencia a outro curso, mas tivera o José Vieira Marques como professor. E as aulas do José Vieira Marques fizeram-na mudar de curso, viajar até Bruxelas e tirar aí um curso de cinema. Hoje, finalista, roda e termina um projecto. Estava de férias na Terceira, bebia cerveja com uns amigos, via atentamente o filme, era feliz na escuridão do parque de merendas de S. Brás. Não foi minha aluna, foi aluna de um colega meu que estimei (apesar das muitas nossas divergências, o seu amor ao cinema sempre me fascinou, desde os primeiros anos do Festival da Figueira da Foz que ele inventou e dirigiu). Foi bonito ter conhecido a Filipa daquela forma. É sempre fabuloso ver alguém que muda de estrada por descobrir uma paixão que um professor lhe conseguiu “mostrar”. A Filipa apaixonou-se pelo cinema através das palavras e dos filmes que ouviu e viu com JVM.
-Espero, Filipa, encontrar-te outro dia, por aí, feliz por dirigires os teus próprios filmes.
A Terceira tem, todavia, muito mais para contar. Noutro dia. Assim o espero.

terça-feira, julho 29, 2008

PASSATEMPO DE VERÃO, I

"JOHNNY GUITAR" PARA QUEM "DETESTA SOPA"
Vai durar o tempo que durar, vai acontecer quando acontecer (quando eu tiver tempo e me apetecer): durante este Verão de 2008 vou aqui evocar algumas obras-primas do cinema, com especial endereço para amigas/amigos da blogosfera. Começo hoje por uma obra emblemática, um dos mais belos e intensos filmes da história do cinema. Um western que é também uma das mais fabulosas histórias de amor e um dos filmes mais críticos para o macchartismo e a intolerância.
Para uma leitora muito especial deste blogue, uma sequência e o tema de um dos seus filmes preferidos (e um dos meus também): "Johnny Guitar", de Nicholas Ray (EUA, 1954), com Joan Crawford (Vienna), Sterling Hayden (Johnny 'Guitar' Logan), Mercedes McCambridge (Emma Small), Scott Brady (Dancin' Kid), Ward Bond, etc.






e "a" cena:



segunda-feira, julho 21, 2008

DERCY GONÇALVES, MORTE AOS 102 ANOS

DERCY GONÇALVES
Aos 102 anos, morreu Dercy Gonçalves, uma lenda do teatro, da televisão e do cinema brasileiros. Muito popularizada pelo palavrão que explodia na sua boca, difícil é encontrar no "You Tube" um trecho que seja editável. Esteve em Lisboa, creio que pelos anos 60 ou 70, não recordo bem, mas recordo-a no palco, com a plateia a vir abaixo de gargalhada a cada nova provocação. "Digo palavrão", porque o público gosta, confessou. Aqui fica uma entrevista a Jo Soares, quando ela completava 88 anos. E uma intervenção gostosa num "Sai de Baixo":



Dercy Gonçalves, nome artístico de Dolores Gonçalves Costa, (Santa Maria Madalena, 23 de Junho de 1907Rio de Janeiro, 19 de Julho de 2008) foi uma actriz brasileira, oriunda do teatro de revista e notória por suas participações na produção cinematográfica brasileira das décadas de 1950 e 1960.
Era famosa por suas entrevistas irreverentes, pelo seu bom
humor e pelo uso constante de palavras de baixo calão. Foi uma das maiores expoentes do teatro de improviso no Brasil. (in Wikipédia. Br)

sábado, julho 19, 2008

ELEVADORES PARA TODOS OS GOSTOS

O elevador é um tema excelente para exercitar a escrita e a imaginação. O tempo de férias também pode ser um convite para escrever. Estão todos convidados a participar nesta viagem ao mundo da imaginação. Passem por "O Elevador" para saber como funciona. Depois... é só escrever um conto, um poema, um texto ao vosso gosto! Ou simplesmente passar por lá para ler...! Também podem contribuir com imagens, desenhos, pinturas, etc...
MORTE NO ELEVADOR
Há quase vinte anos que andava para cima e para baixo naquele elevador, subindo e descendo para regressar a casa ou partir para qualquer destino, já estivera parado entre andares diversas vezes, já sentira a angústia do espaço fechado, já saíra, escorregando através de frechas abertas entre patamares pelos técnicos salvadores, já estava, por isso, mais ou menos “formado” nesta matéria, mas só agora olhara realmente para a verdadeira constituição física deste elevador, todo revestido a metal, metal cinzento recoberto de uma tinta de cor esverdeada, porta igualmente metálica, da mesma cor, com uma curta abertura a meio, onde tinha sido incrustado um estreito rectângulo, disposto ao alto, de vidro lapidado com uma estrutura de fios de arame no interior, que não permitia que o olhar o atravessasse.
Sentiu-se mal, obviamente quando o elevador estancou de súbito, balouçando ligeiramente. Nunca estudara nada sobre elevadores, mas sabia que estavam suspensos por cabos, movidos por roldanas, conhecia de ver por fora a “casa do motor”, lá em cima, no décimo terceiro andar, ao lado da porta que conduzia ao terraço. A situação não tinha nada de surpreendente, num prédio com mais de cinquenta anos, que raramente entrara em obras, apesar da robustez da sua construção, nos bons velhos tempos em que os construtores civis não roubavam tanto no material e os donos dos prédios faziam questão de erguer obras que os perpetuassem. Hoje nada disso acontecia, os prédios eram o que eram, abanavam as paredes quando se batia com a porta, e ouviam-se claramente os gemidos de prazer ou de dor do outro lado da parede. No sétimo direito todos ouviam e sabiam, palavra por palavra, os arrufos do casal de masoquistas que habitava o sétimo esquerdo, contara-lhe a Sílvia, uma noite. Mas aqui não, as paredes eram robustas, as portas de sólida madeira, os elevadores de aço inoxidável, resistentes a toda a prova. O que teria sido excelente noutras eras, mas que era agora algo inquietante.
A mulher que estava a seu lado olhou para ele, interrogando-se. Com os olhos. Não ousou uma palavra.
Ele respondeu que não havia perigo, que já conhecia de longa prática os usos e costumes do elevador, podia ter sido apenas uma paragem ligeira, tocou nos vários botões mas o elevador não disse nem que sim nem que não, permaneceu não tão ledo quanto seria desejável e muito quedo para o seu gosto.
Havia um botão para fazer ouvir a sirene, e tocou-o.
- “Vai ver que é rápido, o senhor Augusto, o porteiro, não demora a aparecer.”
Esquecera-se que era domingo de Páscoa, o senhor Augusto fora com a mulher a casa do cunhado, nos arredores de Lisboa, e o prédio era predominantemente de escritórios, logo vazios neste dia do ano. Lá para cima havia uns inquilinos velhotes, que estavam ali desde a fundação do imóvel, uns saíram para casa dos filhos, levados como robots obrigados a divertirem-se, outros não iam para lado nenhum, e também não ouviam a sirene do elevador a gritar. Surdos como pedras.
Voltou a tocar no botão de alarme, mas os únicos alarmados eram eles os dois, presos no interior daquele elevador metálico que não os conduzia a lado nenhum. Estavam fechados ali, e sabia-se lá quando alguém os viria libertar de tamanho cativeiro em domingo de Páscoa.
- Não mora aqui?, perguntou ele, e acrescentou: Nunca a vi por aqui.
- Não moro, não. Venho visitar a minha tia-avó que mora no décimo terceiro, num daqueles ateliers, sabe?
- Claro que sei. Você é então família da Dona Felícia? Conheço-a bem, mas não a tenho visto ultimamente.
- Pois, está acamada com um violento ataque de reumático. Já tem mais de setenta anos e não quer sair daqui, diz que “é a sua casa”. Por isso a venho visitar. Mas não sabe de nada, é surpresa.
Queria aparentar um ar despreocupado, mas nada disso transparecia quer da expressão do rosto, quer da agitação do corpo. Estava nervosa. Via-se. Sentia-se.
- Não se pode fazer mais nada?
- Temo que não, disse ele. Esperar que alguém passe nas escadas, ou ouça o pedido de socorro do alarme. Mas não se ouve nada nas escadas, não vale a pena tocar mais. Ninguém nos vai ouvir… Por enquanto.
Ela tinha cerca de trinta e cinco, quarenta anos, vestia de forma discreta, secretária de administração, professora, algo assim… Solteira, sem aliança, talvez divorciada. Bonita? Vistosa, mas atraente. Ele olhava-a de alto a baixo, o cabelo escuro, próximo do preto, o rosto quase sem pinturas, um leve toque de batom nos lábios, uma camisa creme com os botões de cima displicentemente abertos, até se descobrirem os seios, ia jurar que sem soutien, um casaco castanho escuro por cima dos ombros, uma saia rodada da mesma cor, as pernas torneadas e tostadas pelo sol ou por drogas de farmácia, uns bonitos sapatos de saltos altos.
Ela sentiu-se olhada, e perguntou:
- Mora aqui?
- Há quarenta anos, certos. Os meus pais inauguraram o prédio, eu apareci dez anos depois. Vivo aqui desde sempre…
- Com os pais?
- Não, agora sozinho. Os meus pais já morreram. Herdei a casa. Casei, divorciei. Sem filhos. Chamo-me Ernesto…
- A importância de ser Ernesto… e sorriu. Um sorriso bonito, pensou ele, e ela:
- Eu chamo-me Lara
- O tão conhecido “tema de Lara”… Do “Doutor Jivago”, a minha mãe adorava-o. A conversa levou-os a esquecer o elevador durante uma fracção de minutos, mas a angústia instalara-se. Isto está preto. Não vamos desesperar, o pior que pode acontecer são os nervos, não vamos entrar em histerias, o que é preciso é manter a calma… Levou a mão ao bolso e retirou um maço de tabaco. Ela colocou a mão sobre a mão dele…
- Não pode fumar agora… O que me preocupa mais é o facto deste elevador ser tão pouco ventilado. Só entra ar pelas frestas… Não temos ar respirável por muito tempo…
Ele voltou a colocar o maço no bolso do casaco. Verdade, a falta de ar… Agora que ela falara disso, lembrou-se que era dado a ataques de falta de ar, frequentes, sobretudo nas mudanças de estação, entre a Primavera e o Verão, entre o Outono e Inverno, rinite alérgica, por vezes quase parecia asfixiar, a tosse seca invadia-o, tinha de correr ao centro de enfermagem e levar uma injecção de cortisona, para acalmar, para a garganta perder o inchaço, para o ar circular, para os pulmões se abrirem ao ar limpo… A falta de ar era um problema, realmente. Os médicos diziam-lhe que grande parte do problema era psicológico, era o pavor que desbloqueava a crise aguda, era a ideia da falta de ar que criava a falta de ar…
O ideal seria pensar noutra coisa. Naquela bonita mulher, ali a seu lado. Ele começava a suar. Não se dava bem em lugares fechados. Tirou o casaco (Dá-me licença?”, “Faz favor, está calor!”), dobrou-o e colocou-o a um canto do elevador.
- Esqueci o telemóvel em casa, senão…, disse ele.
- Nunca uso, não preciso, disse Lara.
Silêncio pesado entre ambos.
Ela perguntou então:
- Que faz na vida quando não está fechado num elevador?
- Jornalista, escrevo, sobre a cidade. Pequenas notas sobre o dia a dia na cidade.
- Sobre lisboetas presos em elevadores?
- Também. Se houver uma boa história associada…
- Amanhã “poderia” ter uma boa história para contar sobre esta paragem de elevador…
- Quem sabe. Mas gostaria mesmo de não ter nada para contar sobre esta paragem de elevador entre o terceiro e o quarto …
Ela olhou para ele com um olhar trocista, ou seria provocador?
- Preferia ter chegado ao quarto?
- Muito melhor certamente, respondeu e sorriu. E você que faz na vida quando não vem visitar a tia-avó?
- Hum, não acredita, se eu lhe disser: adivinhação.
- Feiticeira? A bruxa da “Branca de Neve”?
- Chamemos-lhe vidente.
- Estamos salvos então. A que horas chegará o porteiro, ou alguém que nos tire daqui?
- Hummm, não se deve brincar com coisas sérias. Pode dar mau resultado…
- Mas não prevê nada?
- Sim, estou descansada, nada de mau me trará esta paragem. Será uma fracção de tempo onde aparentemente nada acontecerá… Cada um seguirá o seu rumo, o seu destino.
Olhou fixamente Ernesto. Despiu o casaco castanho, que dobrou e colocou sobre o casaco do jornalista. Abriu mais um botão da blusa, e os seios pareciam soltar-se igualmente. A pele era ali clara, leitosa, dir-se-ia macia. Os olhos de Ernesto denunciavam a direcção. Não sei estar assim, à espera, sem nada que fazer… Há sempre tanto que fazer, disse ela, e aproximou-se dele. Ele olhou-a nos olhos, desceu até ao peito, ela aproximou-se mais, ele abraçou-a, ela deixou-se abraçar, ele beijou-a, ela abriu a boca para o deixar entrar, ele desceu a boca pelo pescoço, a língua percorreu os ombros desnudados, a camisa meia caída, os seios libertos, o mamilo na boca, duro, a língua que o rodeia com lassidão, ela a descer as mãos pelos quadris dele, a acariciar as ancas, a virar súbito de percurso e seguir até às virilhas, a mão a agarrar-lhe o sexo, ele a sentir o seu desejo e o desejo dela, ambos num mesmo abraço, a mão dela que sobe até ao cinto, que destramente o abre, que corre o fecho “éclair“, a mão dele que procura a bainha da saia, que levanta até à cintura, para depois descer novamente em busca de um calor húmido mais intenso, por onde abre caminho e penetra, escorregando lentamente para o interior desse poço, onde o desejo os enrola. No chão do elevador, corpos, mãos, sexos, o arfar da paixão que se satisfaz, a sofreguidão dos amantes, as bocas coladas sorvendo-se um ao outro, o ar que se inspira, o ar que falta, a sensação de asfixia que se instala, a necessidade de gritar, de pedir auxilio, socorro, a cabeça que volteia, sem tino, a garganta apertada, o ar que falta, as portas fechadas, as unhas que tentam rasgar superfícies metálicas intransponíveis, os pés a bater desordenados na porta metálica, o silêncio em redor, as unhas a estalarem em sangue, arranhando as paredes esverdeadas, a garganta a sufocar, o ar cada vez mais pesado, já sem o brilho da vida, apenas com o peso da morte.

Ao fim da noite, o senhor Augusto, enfim regressado, percebeu que o elevador estava parado entre o terceiro e o quarto andar. Subiu lentamente a pé até ao terceiro, bateu na metade da porta descoberta e perguntou:
- Está aí alguém?
Ninguém lhe respondeu, mas ele ia jurar que vira vultos estendidos no chão. Desceu a sua casa para ir buscar a chave que permite destravar a porta do elevador, e assim o fez. Descobriu, enroscado no chão, o corpo sem vida de Ernesto, o inquilino do quinto direito. Tinha a roupa em desalinho, o casaco dobrado a um canto, a camisa uma rodilha à volta das costas, as calças abertas, meio descidas, um sapato descalço, os olhos desmesuradamente fora das órbitas, a boca escancarada num esgar que deixou o senhor Augusto impressionado.
No dia seguinte, a Dona Felícia, dobrada sobre o seu reumatismo crónico, perguntou-lhe o que havia acontecido no elevador no domingo de Páscoa. Ele contou-lhe tudo, com requintes de masoquismo nas descrições mais dramáticas e acrescentou que vira sair do elevador uma borboleta de asas negras quando abrira a porta.
- Coitado do senhor Ernesto. Tão novo. E eu que brincava tanto com ele quando o vai no elevador. “A importância de ser Ernesto”?
A Dona Felícia fora toda a vida bibliotecária e continuava a gostar muito de Oscar Wilde.

quarta-feira, julho 16, 2008

CINEMA. UM MESTRE DO CINEMA ITALIANO

DINO RISI
Biografia

Em 1953, em pleno apogeu do “Neo-Realismo” em Itália, um grupo de realizadores e argumentistas lançou uma obra colectiva que ficou conhecida como manifesto desse movimento estético, cultural, cinematográfico e social e político também. Chamava-se “Retalhos da Vida” (no original “L’ Amore in città”, e agrupava alguns cineastas, cada um deles assinando um episódio, Michelangelo Antonioni (segmento "Tentato suicido"), Federico Fellini (segmento "Un Agenzia matrimoniale'"), Alberto Lattuada (segmento "Gli Italiani si voltano"), Carlo Lizzani (segmento "L’ Amore che si paga'"), Francesco Maselli (segmento "Storia di Caterina"), Dino Risi (segmento "Paradiso per 4 ore") e Cesare Zavattini (segmento "Storia di Caterina"). Cesare Zavattini, sobretudo argumentista, fora o mentor do projecto. Michelangelo Antonioni e Federico Fellini subiram ao céu dos génios; Carlo Lizzani ia perder-se numa ortodoxia asfixiante, Francesco Maselli seria um dos arautos de um neo-neo realismo nos anos 60 e 70, Cesare Zavattini ficaria para sempre como um dos intelectuais marxistas que moldara grande parte do movimento, em Itália, no cinema, mas também em todas as formas artísticas e em todo o mundo. Ficam Alberto Lattuada e Dino Risi, que se afastaram um pouco da ortodoxia do neo-realismo, optando por uma crítica de costumes de raiz satírica da realidade italiana do pós guerra que nos deu exemplos magníficos de obras inesquecíveis. Não foram considerados tão geniais como outros companheiros de percurso, mas andaram perto, e não subiram mais porque os preconceitos da época os classificaram com a depreciativa designação de “neo-realistas rosas”, o que é objectivamente uma mentira e uma afronta. No caso de Dino Risi ele foi um cineasta magnífico, um retratista implacável, um aguarelista inspirado na descrição de um tempo, de uma sociedade, de um clima social.
Dino Risi nasceu a 23 de Dezembro de 1917, em Milão, Lombardia, Itália, e faleceu a 7 Junho de 2008, em Roma, Lazio, igualmente em Itália. Ele próprio escreveu que “nascera do ano da Revolução Russa e no ano do primeiro “Giro d’Italia.” Agora que desapareceu, aos 91 anos, foi considerado unanimemente como “o pai da comédia de costumes italiana”. Mas, durante muitos anos, foi geralmente subestimado, considerado “menor”, o que parece paradoxal para um cineasta que conta, na sua vasta filmografia, algumas obras-primas do cinema italiano, simultaneamente de uma qualidade cinematográfica e interesse sociológico impares e grandes sucessos de público. “A Ultrapassagem”, “Uma Vida Difícil”, “Os Monstros” ou “Perfume de Mulher” bastavam para o colocar no panteão da cinematografia transalpina.
Um ano antes da sua morte, ele, que tinha o sentido de humor apurado, comentou o desaparecimento, quase simultâneo, de Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman, profetizando que "poderia partir de uma hora para a outra, mas que agora gostaria de esperar um pouco mais. Se morro agora, os jornais vão colocar a notícia na secção de desporto.”
Dino Risi escreveu uma curta e saborosa autobiografia, onde comenta alguns dos passos mais relevantes da sua vida. O pai, Arnaldo Risi, era médico, e melómano, razão certamente pela qual era médico do Scala de Milão. Há uma curiosa fotografia do pai, durante a I Guerra Mundial, capitão médico, que comandava uma companhia de que fazia parte um cabo de nome Bento Mussolini. Conta como aos dez anos foi entregue aos cuidados de um músico famoso, Premoli, de 80 anos, que tentou ensinar-lhe violino. Em vão. No primeiro concerto, desafinou, espatifou o violino com a revolta e nunca mais quis ouvir falar nessa tortura. Conta também que, por essa altura, fazia férias em casa de família amiga, onde se apaixonou por uma tal Milena, loura, de igual idade, dez aninhos, com quem foi apanhado aos beijinhos, uma noite, na cama dela. Resultado, acabaram-se as férias e o amor de Milena. Mas outros amores foram aparecendo até se casar, em 1943, com Cláudia Mosca. O casal teve dois filhos, ambos hoje “registas” (realizadores, Claudio Risi e Marco Risi). Mas antes, muita água iria correr. O pai faleceu quando era muito jovem, a mãe teve de encarregar-se da educação dos filhos e do sustento diário da família, foram anos de dificuldade. Frequentou o liceu Berchet, entre 1931 e 39. O liceu tinha fama de ser dos melhores de Milão e de Itália, por lá passava a fina-flor dos filhos dos intelectuais milaneses. Começou a escrever num jornal satírico, “Bertoldo”. Em 1941, o cinema, como por acaso. Um dia, em 1941, falando com o amigo Alberto Lattuada, que preparava o novo filme de Mario Soldati, “Piccolo mondo antico”, foi-lhe proposto um lugar na equipa técnica, que aceitou mais por desporto do que por gosto. A seguir esteve como assistente de realização do próprio Alberto Lattuada, em "Giacomo l'idealista" (1942). Mas estudava medicina e, depois de uma permanência em Itália, no regresso diploma-se em psiquiatria e começa a trabalhar como interno no hospital de Pádua, e depois do hospício de Voghera. Tudo indicava que nascia mais um médico, mas afinal o bichinho do cinema fez estragos. Com a guerra, resolve partir para a Suiça, onde conhece a futura mulher, tira um curso de encenação com Jaques Feyder, e faz amizades com o encenador e dramaturgo Giorgio Strehler.
De regresso a Itália, finda a guerra, volta a Milão em 1945. Começa a escrever contos e textos para jornais e revistas, e críticas de cinema para “Milano Sera”, nessa altura dirigido por Elio Vittorino e Alfonso Gatto. Gigi Martello, um produtor, convida então Dino Risi a realizar uma série de cerca de vinte curtas e médias-metragens documentais, o que o ocupa entre os anos de 46 e 50. Um desses trabalhos, talvez o mais citado, é "Buio in sala", que é vendido a Carlo Ponti, que o chama para Roma, onde se instala, e começa a escrever, com outros, um argumento para uma diva da altura, Silvana Mangano. O filme será “Anna”, que Lattuada dirige, e que se afirma como um dos maiores êxitos de sempre do cinema italiano. Dino Risi via abrir-se a porta da grande indústria. Em 1951, filma "Vacanze col gangster", tenta rodar, em 1953, um filme na produtora brasileira, de São Paulo, “Vera Cruz”, sem sucesso. Depois, com Sophia Loren e Vittorio de Sica, dirige o seu primeiro filme de fôlego, "O Signo de Vénus", e o título de encerramento de uma trilogia iniciada por Luigi Comencini e que fez furor na época, "Pão, amor e..." (ambos em 1955). "Pobres mas Belas" (Poveri ma belli), interpretado por Marisa Allasio, em 1956, é um relativo triunfo. O neo-realismo tinha esgotado as suas fórmulas e Dino Risi, com alguns outros realizadores e argumentistas, retomam a fórmula, mas sob o prisma de comédia de costumes. A história roda à volta de um grupo de jovens romanos, oriundos da pequena burguesia, que falam mais de amor e problemas do dia a dia do que de política e questões sociais. O público acorre. A crítica fala, de forma depreciativa, de um “neo-realismo rosa”. Hoje em dia são documentos impressionantes de caracterização sociológica de uma época precisa e de uma situação italiana determinada. Falava-se em “milagre económico” e na reconstrução do país no pós guerra.
Entre 1960 e 1961 realiza “Il Mattatore”, com Vittorio Gasman, que prenuncia uma vasta e prodigiosa colaboração entre actor e cineasta, e depois "Un Amore a Roma" e "A Porte Chiuse", duas obras dramáticas sem grande sucesso, a que se seguem duas das suas obras maiores, “Una Vita Difficile” e "Il Sorpasso". Este último, “A Ultrapassagem” será possivelmente, a sua grande obra. Conta-se que na noite da estreia, ele e o produtor Mario Cecchi Gori esperaram no exterior do cinema as reacções do público. Desgostoso pelo facto de haver muito poucos espectadores, Dino Risi regressou mais cedo a casa. Três horas depois diziam-lhe, pelo telefone, que fora um sucesso, e no dia seguinte a sala estava esgotada. Dino Risi tornara-se numa nova lenda viva do cinema italiano. Fiz mais de cinquenta filmes, e estive sempre seguro de que um deles poderia vir a ser uma obra-prima.” "I Mostri" (1963), "L'Ombrellone" (1966), "Operazione San Gennaro" (1967) e “Vedo nudo” (1969) são os títulos seguintes de uma vasta filmografia que engloba cinco dezenas e meia de longas-metragens, para lá de um importante conjunto de curtas e de telefilmes. Em 1970 roda "La Moglie del Prete" com o casal sensação desses anos, Sophia Loren e Marcello Mastroianni. Nesse mesmo ano assina “In Nome del Popolo Italiano”, outra das suas obras mais conhecidas.
"”Profumo di Donna”, de 1974, reúne Gassman e Agostina Belli, e com ele recebe o César de melhor filme estrangeiro lançado nesse ano em França. Mais tarde servirá de base a uma nova versão, norte-americana, assinada por Martin Brest, com Al Pacino no protagonista.
O cineasta trabalhou com os principais actores italianos da segunda metade do século XX, entre os quais Vittorio Gassman (uma colaboração em mais de quinze filmes, uma das mais inspiradas da história do cinema), Alberto Sordi, Ugo Tognazzi, Nino Manfredi, Totó, Sophia Loren, Marcello Mastroianni, Sylvia Koscina, Agostina Belli, Walter Chiari, Tina Pica, Amedeo Nazzari, Silvana Pampanini, Mónica Vitti, Giancarlo Giannini, Laura Antonelli, Ornella Mutti, entre muitos outros. Nas últimas duas décadas, o cineasta envereda por um tipo de realização que se afasta do campo da comédia e penetra nos terrenos do drama e do mistério. 1975 é ainda o tempo de outra comédia primorosa, "Telefoni bianchi", a que se seguem “Anima Persa” (1977), La Stanza del Vescovo (1978), I Nouvi Mostri, (978), “Primo Amore” (1978), “Caro Papà” (1979), “Sono Fotogénico” (1980), “Fantasma d'Amore” (1981) ou “Sesso e Volentieri” (1982).
Depois, afasta-se um pouco do cinema, e continua na televisão, com telefilmes e mini-séries, de que os portugueses quase desconhecem tudo: “...e la vita continua” (TV, 1984), “Dagobert” (1984), “Scemo di guerra” (1985), “Teresa” (1987), “Carla. Quattre storie di donne” (TV) (1987), “Il commissario Lo Gatto” (1987), “La Ciociara” (TV) (1988), “Il vizio di vivere” (TV) (1989), “Tolgo il disturbo” (1990), “Vita coi figli” (TV) (1990), “Missione d'amore” (mini-série de TV) (1992), “Giovani e belli” (1996), “Esercizi di stile” (episódio "Myriam", 1996) e “Le Ragazze di Miss Itália” (TV) (2002), sua derradeira contribuição para o cinema, inteiramente rodado em Salsomaggiore, tendo por base um concurso de Miss Itália, durante o qual Dino Risi ensaia uma crítica sobre a vida quotidiana em Itália, vista através do medo, da angústia e da esperança dos participantes neste concurso.
Dino Risi vivia numa suite de um dos melhores hotéis de Roma, desde que, há dezoito anos, se divorciara da mulher Cláudia. Sobre o seu filho Marco Risi, igualmente realizador, dissera um dia: “Nunca ajudei Marco a encontrar um emprego. Quando era criança, veio muitas vezes assistir às filmagens, mas agora trabalha sem nunca me pedir qualquer sugestão. Penso que é um excelente director.” Dino Risi é irmão do fotógrafo Fernando Risi e do realizador Nelo Risi. Escreveu uma autobiografia, editada em 2004, chamada "I Miei Mostri". Durante os últimos quarenta anos manteve uma relação com a actriz Leontine Snell, vivendo cada um em sua casa. Mas ainda teve envolvimentos amorosos, que se conheçam, com as actrizes Anita Ekberg e Alida Valli.
Em 1993, o Festival de Cannes reconhece a obra deste cineasta brilhante, exibindo um ciclo com quinze das suas obras mais reputadas. Em 2002 recebe um Leão de Ouro pelo conjunto da sua carreira em Veneza (2002). Em 2004, no dia 2 de Julho, durante o qual se celebra a implantação da República, o presidente Carlo Azeglio Ciampi condecorou Dino Risi com a ordem “Cavaliere di Gran Croce”. Quando Dino Risi morreu, Sofia Loren foi a voz de quantos o conheciam bem: "É uma grande perda para o cinema italiano". "Fazia uma comédia de costumes italiana, mas que na realidade era universal", disse o crítico italiano Valerio Caprara, lembrando que Risi "jamais se prendeu às exigências estéticas da moda". Era "um Billy Wilder à italiana", afirmou o jornal “La Repubblica”, com alguma razão. O presidente italiano, Giorgio Napolitano, disse que "Dino Risi era um observador atento dos factos e comportamentos, que imprimiu sua marca pessoal no cinema italiano". "Com Dino Risi, o cinema italiano perde um de seus pais fundadores", estimou o novo ministro da Cultura, Sandro Bondi. Para o ex-ministro da Cultura, Francesco Rutelli, "Risi foi um dos maiores poetas do século XX".
O Cine Eco, Festival de Cinema e Ambiente de Seia, vai levar a efeito, este ano, entre 18 e 25 de Outubro, uma homenagem a Dino Risi, apresentando um conjunto de alguns dos seus títulos mais importantes.

segunda-feira, julho 14, 2008

TEATRO: PEER GYNT, BERLINER ENSEMBLE


FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA

Uma tarde em Almada, no teatro. Uma tarde em cheio.
Antes de mais, um Festival com 25 anos de existência, uma companhia residente com 30 temporadas de actividade constante. A CTA incorporou o Grupo de Teatro de Campolide que iniciara a sua actividade, sob a direcção de Joaquim Benite, em 1971, em Lisboa, apresentando nesse ano a peça “O Avançado Centro Morreu ao Amanhecer”, de Agustin Cuzzani, que marcou a estreia do seu director como encenador. Eu vi, foi um sucesso entusiástico. De 1972 a 1976 seguiram-se peças de António José da Silva, Pablo Neruda e Virgílio Martinho, sempre encenadas por Joaquim Benite, com centenas de representações por todo o país. A partir de 77, a companhia profissionaliza-se ainda em Lisboa, agora no Trindade. Sem apoios, mas com público, criou raízes e, em Janeiro de 1978, instalou-se em Almada, no teatro da Academia Almadense, integrando-se no movimento da Descentralização Teatral que então se iniciava pelo País. Passa a designar-se Companhia de Teatro de Almada. Em 1988, após dez anos de actividade teatral intensa em Almada e no seu concelho, a Companhia, convidada pela Câmara local, torna-se residente do Teatro Municipal de Almada.
Desde Julho de 2007, a Companhia de Teatro de Almada é a companhia residente do novo Teatro Municipal de Almada (magnifica obra dos arquitectos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira), considerado com razão um das mais bem equipadas salas do país. Das mais bem dirigidas e dinamizadas também. O Festival de Teatro de Almada, por seu turno, é uma organização conjunta da Companhia de Teatro de Almada e da Câmara Municipal de Almada, e realiza-se todos os anos entre 4 e 18 de Julho. Esta é a sua 25ª edição e continua, cada vez mais, a fazer jus à merecida fama de ser o nosso melhor festival de teatro, e um dos melhores da Europa (no âmbito dos países de pequenas dimensões, é claro!).

"PEER GYNT"


Este ano, no Festival de Almada, precisamente na noite de sábado e tarde de domingo, passou um dos melhores espectáculos de teatro que vi na minha vida. “Peer Gynt”, de Henrik Ibsen (1828-1906), um dos três grandes da dramaturgia mundial de inicio do século XX, um dos meus autores preferidos (os outros são Strinberg e Tchekov, outras preferências minhas óbvias!). Obra de juventude, inicialmente poema dramático, depois peça de teatro, “Peter Gynt” não terá talvez o fulgor, a intensidade, a complexidade das suas peças de maturidade (“Os Pilares da Sociedade”, “Casa de Bonecas”, “Fantasmas”, “A Dama do Mar”, “Hedda Gabler”, “Um Inimigo do Povo” ou “O Pato Selvagem”). Mas é cada vez mais valorizada.
Peer Gynt é o protagonista e a peça acompanha, numa toada com muito de fantástico, uma dose certa de ironia e sátira de costumes, e um pouco de poética surreal, as aventuras deste personagem que é egoísta, vive “segundo a sua maneira de ser”, insensível ao que os outros pensam e desejam, não vendo senão o que lhe interessa. Filho de uma viúva pobre que tudo fez para o sustentar, mentiroso, aldrabão, explorador, troca-tintas, começou por ser conhecido na aldeia como um bom narrador de histórias que contava como se de facto lhe tivessem acontecido, mas que mais não eram do que lendas ouvidas anteriormente, onde apareciam Trolls, duendes, demónios e outras figuras míticas, tudo passado no alto de montanhas, à caça de veados. Será a cobiça do dote de uma noiva rica que o leva a raptá-la, violá-la e fugir depois para a floresta, A mãe e a jovem Solveig, uma paixão nunca seriamente correspondida, são as únicas que o esperam, Solveig mesmo grávida de um filho que educa sozinha.
Quando a mãe morre, as verdadeiras aventuras de Peter Gynt iniciam-se com passagem por África, onde ultrapassa ladrões, ataques de macacos, travessia de inquietantes clínicas psiquiátricas, passando por profeta, concebendo alta engenharia para irrigar o deserto, conseguindo mesmo resolver sozinho o enigma da Esfinge, e fazendo fortuna na América. Acaba, porém, pobre e solitário, na terra natal, com a morte a enviar mensageiro que vai adiando a data definitiva para futuras encruzilhadas, até chegar à “Pietá” derradeira, nos braços da cândida Solveig.

Peter Zadek, o encenador, nasceu em 1926 em Berlim e em 1933 emigrou com a família para Londres, estudando na Old-Vic-School. Entre Londres e Berlim (depois de 1958) fez encenações brilhantes e muito pessoais, que o colocaram na lista dos melhores encenadores europeus actuais. Em 2007 foi mesmo considerado “Prémio Europa de Teatro” do ano, depois de ter estreado, em Abril de 2004, no celebrado “Berliner Ensemble” (de Bertold Brecht), a nova e radicalmente diferente versão de Peer Gynt”, com um sucesso absolutamente fulgurante.
O trabalho da direcção de Zadek é surpreendente, estilhaçando aparentemente o lado naturalista da obra de Ibsen, mantendo, todavia, as características de um fantástico poético, de inspiração nórdica, impondo-lhe uma estética a roçar o surrealismo, de “Ubu” a “Alice no País das Maravilhas” (ainda que aqui fosse mais “Peer no Mundo dos Pesadelos”), e vogando ao sabor de uma inteligente e sensível imaginação, com ora cintilantes, ora sombrias cores, e sons, num movimento e numa alegria contagiante que tornam o espectáculo um deleite para os olhos, para a emoção, sem descurar a razão. Fascinante, brilhante, fulgurante, interpretado por uma companhia de eleição, com um truculento e genial Uwe Bohm (Peer Gynt) e uma tocante Angela Winkler (uma das actrizes da minha paixão, sobretudo depois de “A Honra Perdida de Katharine Blum”). Outros actores: Benjamin Çabuk, Gerd David, Peter Donath, Ninon Held, Ruth Glöss, Ursula Höpfner-Tabori, Deborah Kaufmann, Alice Kornitzer, Ann-Marie von Löw, Annett Renneberg, Steffen Roll, Dorothea Gebhardt, Judith Strößenreuter, Marko Schmidt, Veit Schubert, Oliver Urbanski, Axel Werner, Ronald Zehrfeld. Os cenários e figurinos de Karl Kneidl, são sumptuosos, mas de uma simplicidade desarmante e de eficaz efeito (aqui e ali, num outro registo, relembram o universo plástico de Bob Wilson), a coreografia de Reinhild Hoffmann é excelente, sobretudo em momentos de multidão no palco, a música de Georg Klein perfeita, enquadrando-se no clima sugerido por Grieg. São três horas que passam num ápice e numa avalanche de sensações, que muitos encenadores e directores de companhia portugueses deviam ver. E recordam, quando concebem algumas monótonas e intelectualoides encenações que só afastam o público do Teatro. Em Almada, as casas transbordaram. Em dois espectáculos, contabilizaram-se mais espectadores do que num mês nalgumas companhias que por ai pululam. Nem sempre o muito público é sinal de perfeição, mas às vezes acerta. Foi o caso.

ANGELA WINKLER

Não era a figura principal, era a mãe, a segunda figura da companhia, mas não resisto a colocar aqui uma nota pessoal. Desde que a vi no dealbar do Novo Cinema Alemão, em finais da década de 60, nunca mais a esqueci. Um rosto de menina, uma indómita decisão, uma das presenças mais notadas por essa altura. Uma mulher que me tocou particularmente no cinema da década de 70. Fez “Cenas de caça na Baixa Baviera”, de Peter Fleschemann (1969), uma versão que nunca vi deste mesmo “Peer Gynt”, para televisão, sob direcção de Peter Syein (1971), o inesquecível “A Honra Perdida de Katherine Blum”, segundo romance de Henrich Boll, numa realização conjunta de Volker Shlondorff e Marguereth Von Troya (1975), apareceu em “A Mulher Canhota”, de Peter Handke (78) e “O Tambor”, de novo de Volker Shlondorff. Passou pela Suiça de Claude Goeretta, em “La Provinciale”, por “Danton”, do polaco Andrzej Wajda, e protagonizou “Heller Wahn”, de Margareth Von Trota. Alemã, nascida a 22 de Janeiro de 1944, passou por várias companhias de teatro, por França, Inglaterra, e protagonizou, em 1999, sob as ordens de Peter Zadek uma versão que nos dizem brilhante de “Hamlet”, trabalho pelo qual ganhou um dos seus prémios como actriz ("Actress of The Year" atribuído pela revista "Theater Heute").

domingo, julho 13, 2008

CINEMA: O PANDA DO KUNG FU






O PANDA DO KUNG FU
Um urso panda não parece ser o animal que melhor se identifica com as artes marciais, nomeadamente com o kung fu, que requer agilidade, força e mil e uma outras capacidades. O panda gosta de dormir e comer, este de que falamos passa bem dos cento e trinta quilos, é filho de um pato (!) que tem uma loja de sopas e de massas chinesas, e só a dormir sonha vir a ser um dos mestres do Kung Fu. Mas quem sonha às vezes alcança, esta uma máxima que é bom por a circular, e é isso que este novo filme de animação computorizada da Dreamworks faz, com humor, simplicidade, muita acção, muitas referência cinéfilas, um bom desenho, e uma banda sonora de inspiração chinesa que se mete pelos ouvidos dentro sem pedir licença. O resultado, como se deve calcular, é bom, tanto para o Mário que tem quase 6 anos, e adorou, como para os adultos que o acompanharam, e também se divertiram muito. A animação americana consegue muitas vezes este efeito, e “O Panda do Kung Fu” é, certamente, um dos seus melhores exemplos recentes. Depois de Nemo e do ogre, a Dreamworks inventa um novo herói com direito a entrar na galeria dos mais desejados.
A história é construída à medida das necessidades: Po, o panda, sabe que procuram “o” mestre de kung fu para combater a ameaça do terrível leopardo das neves, Tai Lung, que se evadiu da prisão. O velho mestre Shifu treinou durante anos um grupo de guerreiros (Tigresa, Grou, Louva-a-Deus, Víbora e Macaco) que julga virem a ser os lendários justiceiros do seu intimidado povo. Mas afinal o destino põe-lhe nas mãos o atarantado e resfolegante panda, que mal parece poder com uma gata pelo rabo. Mas a vontade interior é mais forte (pelo menos nos filmes, e ainda bem que há algum local onde a utopia ainda acontece!) e Po lá consegue levar a missão até ao fim.
O filme é dirigido por Mark Osborne e John Stevenson e conta,, no original, com as vozes de Jack Black, Dustin Hoffman, Angelina Jolie, Ian McShane, Jackie Chan, Seth Rogen, Lucy Liu, David Cross e (na versão portuguesa, bastante boa) Marco Horácio, José Raposo, Joaquim de Almeida (excelente, no vilão da fita!), Diana Chaves, Fernanda Serrano, Olavo Bilac, Jorge Mourato, João Ricardo, etc.
Como sempre, o gozo é também cinéfilo. As referências a obras de Bruce Lee ou Jackie Chan, a “O Tigre e o Dragão”, a filmes de Zhang Yimou, ou aos óbvios “O Momento de Verdade I, II e III” (The Karate Kid) dispersam-se ao longo da projecção.

terça-feira, julho 08, 2008

99 ROOMS

UMA EXPERIÊNCIA INVULGAR

99rooms é um projecto de arte interdisciplinar concebido para a Internet: pintura, fotografia, animação e som conjugam esforços para algo de efeito surpreendente. Realizado em 2004, são autores Kim Köster (o artista plástico alemão, radicado em Berlim), Richard Schumann (direcção artística), Johannes Bünemann (design de som) e Stephan Schulz (programador).
São 99 quadros que necessitam de tempo para serem explorados. Tem de clicar no quadro para descobrir o local preciso que o leva a passar ao quadro seguinte, ou a desencadear transformações no próprio quadro. Mas todo o tempo e toda a dedicação são merecidos e reconfortantes.
Não perca e vá ao site, clicando aqui:

segunda-feira, julho 07, 2008

NO BRASIL, III


TROPA DE ELITE
Há uma nova geração de cineastas no Brasil que traz um olhar novo sobre a realidade do seu país. Nem todos alinham pelo mesmo diapasão, mas pode dizer-se que alguns não temem enveredar pelas favelas e focar os desgraçados que ali vivem, os gangs que controlam os movimentos, os polícias que ganham com o esquema montado, os governos que tentam passar incólumes entre os pingos da chuva, ou as balas dos tiroteios, dando-nos o outro lado do Brasil que o turista vê. Ainda há dias escrevi sobre a Cinelândia, os cinemas e os cafés, a confeitaria Colombo, e obviamente não reportei as colinas que descem pesadamente sobre a cidade, essas favelas de pesadelo que lá do cima parecem controlar os movimentos de quem se passeia no Centro ou na Avenida Atlântica. Não há um Brasil, há vários. Há também o das favelas, do crime organizado, da droga controlada e difundida, da polícia que coopera, que protege mediante um tanto, que vende armas ao assaltante, do coronel que recebe por baixo da mesa o “mensalão” recolhido pelo subalterno, do burguês que consome droga, sem imaginar quantas crianças é preciso morrerem para o diletante chutar uns momentos de paraíso artificial. Há esse Brasil, que passou em várias obras, como “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, ou a recente “Tropa de Elite”, de José Padilha. Não conheço o documentário “Ônibus 174” (que dizem ser sensacional!) com que o cineasta se estreou no cinema de longa-metragem. Vi agora no Brasil “Tropa de Elite” que provocou várias ondas de choque de diverso significado, antes e depois da sua estreia. Antes, porque precedendo a sua estreia nas salas do Brasil de dois meses, o filme vendeu DVD pirata “p’ra caramba” em todas as ruas das cidades brasileiras, rendendo bons reais aos “camelôs” que os anunciavam clandestinamente (mas pouco, há todos os DVDs de momento à venda nas ruas do Rio ou de São Paulo). Dizem que mais de 3 ou 4 milhões de brasileiros viram o filme antes da estreia oficial nos cinemas (e na estreia ainda se conseguiu colocar entre os filmes brasileiros mais vistos de sempre no Brasil). É obra. Espíritos mal intencionados insinuaram mesmo e puseram a correr o boato de que este lançamento clandestino do filme fora manobra de marketing da própria produtora, mas a verdade é que acabou por saber-se, no tribunal, que foram funcionários sem escrúpulos de uma empresa de legendagem (que preparava cópias da obra, legendadas em inglês) quem pirateou o filme e inundou de reproduções o mercado. A polémica estoirou mesmo antes do filme estrear até porque a polícia se sentiu “insultada” e resolveu interpor providência cautelar, tentando impedir a sua exibição. Uma juíza da 1ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de seu nome Flávia de Almeida Viveiros de Castro, negou porém o pedido dos autores, destacando: “Não existem críticas às instituições. As críticas feitas são ao sistema”. As produtoras e distribuidoras Zazen Produções e Paramount Pictures do Brasil puderam portanto exibir o filme, passando por cima da denúncia de que este “violava a honra, a dignidade e até mesmo a integridade física dos integrantes do BOPE”.
Aproxima-nos do âmago de uma das questões: o BOPE (por extenso: Batalhão de Operações Policiais Especiais). Diz quem viu (não consegui ainda ver, nem em DVD) que, em 1999, os cineastas João Moreira Salles e Kátia Lund rodaram um documentário, “Notícias de uma Guerra Particular” (vendido clandestinamente, com o título – inventado! - “Tropa de Elite, nº 2”, ao que me contam também, o que não deixa de ser pirataria a dobrar!) onde um capitão do BOPE, Rodrigo Pimentel, confessava estar “cansado” da batalha diária que travava contra o tráfico, já que nenhum resultado efectivo parecia estar sendo alcançado e os governantes não demonstravam o menor interesse em fazer algo que pudesse representar uma solução eventual para a criminalidade.” Saiu entretanto uma obra, "Elite da Tropa", escrita por André Batista, Luiz Eduardo Soares e o mesmo capitão Rodrigo Pimentel (julgo que agora é ex-capitão) que denunciava muito do que se passava no interior daquela força policial. Oito anos depois da entrevista concedida a João Moreira Salles e Kátia Lund, Rodrigo Pimentel assina, ao lado de Bráulio Mantovani (argumentista de “Cidade de Deus”) e de José Padilha, o argumento de “Tropa de Elite”, que, inicialmente o realizador queria transformar num documentário. Pensou, porém, que não viveria muitos dias depois da estreia do documentário com as acusações que o mesmo encerraria, visando factos e personalidades reais, e resolveu ter um pouco de amor à (sua) vida e à dos seus mais próximos colaboradores, optando por construir uma ficção. Que não será menos contundente.
“Tropa de Elite” situa-se no ano de 1997, algum tempo antes da anunciada visita do Papa João Paulo II ao Rio de Janeiro. Sempre que alguma personalidade importante visita a cidade, a segurança é duplicada. Com o Papa, foi um pouco diferente. Nenhum político quer ser acusado de ver o Sumo Pontífice alvejado no seu país. Logo, a segurança é triplicada. Com meses de antecedência preparam-se os “festejos.” Prendem-se os “suspeitos do costume”, invadem-se os morros e vasculham-se as favelas, intimida-se meio mundo, tortura-se, mata-se ou deixa-se ali à mão de semear os denunciantes que pactuaram, para o gang do lado se encarregar deles. Agora mesmo, nesses dias ainda de início de Junho de 2008, uns militares em acção numa favela do Rio entregaram, como vingança, três rapazolas “dealers” a um grupo rival de traficantes que os torturou durante horas, cortou pernas e braços, e depois despejou nos caixotes do lixo. Percebe-se, pois, de que tipo são as relações entre os fora da lei e os agentes da autoridade.
Mas voltemos ao filme. Este tem como protagonista o Capitão Nascimento, um dos comandantes do Batalhão de Operações Especiais, a quem foi atribuída a missão de garantir a segurança do Papa. Nascimento está cansado das suas tarefas, stressado com o ritmo e a violência do dia a dia, farto do desgaste físico e psicológico, toma drageias para sobreviver, e a sua ambição máxima é ver nascer o filho que se anuncia. Tem de arranjar um substituto para o seu cargo se quer uma trégua, está empenhado em várias frentes, uma delas são as aulas de recruta que ministra aos novos aspirantes. Para se pertencer ao BOPE tem de se possuir uma têmpera invulgar, passar por provas de tortura, de humilhação, de resistência, de esforço desmedido. É o que fazem Matias e Neto, os outros dois protagonistas desta obra. Assiste-se ao seu comportamento nas aulas, ao seu trabalho nas ruas, e, no caso de Matias, ainda ao seu estudo na Universidade de Direito, onde procura tirar um curso, passando ignorado junto dos colegas quanto à sua actividade policial. Descobre como alguns alunos, vindos das boas famílias do Rio Sul, consomem droga e entra na negociata, penetra no morro atrás de uma namorada que trabalha numa ONG, dá de cara com o chefe do gang, e é um dia descoberto, quando uma fotografia sua, em acção, é colocada na primeira página de um jornal. Quando quer enviar uns óculos a um miúdo da favela, provoca uma tragédia, que ira desencadear outra tragédia, que irá desembocar numa espiral de fogo e dor.
Que nos diz a obra? Que os traficantes matam e morrem, que os policias morrem e matam, que ambos negoceiam entre si, que os poderes sabem e pactuam, que a corrupção passa do mais alto nível ao mais baixo, que quem não pactua no morro ou no quartel é linchado, o agente da autoridade é enviado ao morro pelos superiores hierárquicos para ser abatido, o puto delator é libertado para ser abatido, o polícia que passa na hora errada é abatido, neste universo de uma brutalidade asfixiante não há quase rapazes bons. Quase, porque fica o exemplo de Neto e Matias, de Nascimento e de alguns mais que, apesar de não figurarem entre os protagonistas, o filme deixa a esperança de, quiçá, existirem. Há quem acuse a obra de criar heróis, falsos heróis, porque ainda há polícias honestos. Querem então proclamar que “todos os agentes de segurança”, todos os “representantes do Poder instituído” são bandidos corruptos? Se for esse o vosso desejo, o melhor é desistir já. Mas há mais acusações. Que os processos de mafiosos das favelas e policiais de giro são idênticos. Todos torturam e matam. Pois, essa é uma das acusações do filme, parece-me, com uma ressalva. “Tropa de Elite” não é ingénua ao ponto de propor a história do pobrezinho desgraçadinho desde criança, e do polícia mauzinho desde o banco da escola, e do burguesinho de esquerda, intelectual consumidor de haxixe, que é a voz da consciência desta maldita sociedade destruída pelo dinheiro. Em “Tropa de Elite” há maus para todos os gostos. Nada é límpido e o “homem novo” está muito longe de existir. Há uns puros que se vão adaptando à realidade, como é o caso de Matias. Aliás, nesse aspecto, “Tropa de Elite” é mesmo o trajecto de uma iniciação, de uma aprendizagem, com aulas teóricas e práticas a toda a hora que, no quartel e cá fora, na vida quotidiana, em lugar de encaminharem para a honra e a dignidade, se encarregam de deformar o que de melhor existe dentro do homem. Essa viagem que acompanha o rosto de Matias, desde a sua promissora e entusiástica entrada no “corpo” da polícia até ao entrosamento final na “filosofia” do mesmo, é um dos elementos brilhantes desta obra. O plano final de “Tropa de Elite” é elucidativo desse percurso. É esclarecedor da forma como se destroem homens, como se fabricam “matadores”, como se limpa da face da terra a ternura, o amor, a bondade. Padilha oferece o retrato do polícia, e do seu ponto de vista (por exemplo, um deles pergunta: “Acha que vou subir o morro e arriscar minha vida por 500 reais - cerca de 200 euros - por mês?”). Não me parece justo que sejam só os marginais a serem “compreendidos”. “Compreender” os polícias, mesmo quando eles também se assemelham a marginais, é um bom ponto de partida para se tentar alterar, um pouco que seja, este estado de coisas, que é um “estado de sítio”, sem grandes esperanças de se ver modificado.
O filme é ainda muito bom pela sua textura estética e a sua factura técnica. A fotografia, de um colorido denso e garrido, saturado, é algo obsessiva, claustrofóbica. A montagem é excelente, com um ritmo nervoso, inquieto, a câmara oscilando, mudando de enquadramento, viajando pelo espaço, procurando o centro da acção, o rosto, o olhar, o fugitivo, a bala perdida ou achada. A narrativa inicia-se num determinado ponto da história, recua ao passado, e retoma a marcha depois de explicado o que ficou para trás. É uma forma brilhante de agarrar o espectador, sem todavia tornar falsa ou rebuscada a descrição. Muito bons são os actores, na sua totalidade, desde o mais batido em representação (bom exemplo, Wagner Moura, um dos mais completos actores brasileiros da actualidade) ao neófito (André Ramiro, que interpreta Matias, era bilheteiro de cinema do shopping “Fashion Mall”, no Rio de Janeiro). A violência do clima geral alimenta-se muito destas convulsões de caracteres em fúria, em tortura psicológica, em stress continuado. Por falar em stress continuado, as sequências do treino da tropa de elite são do melhor que o cinema mundial nos deu até hoje, e já nos deram muitos exemplos de casos semelhantes (sobretudo os cineastas americanos). Terminando, refira-se a escrita do guião que é igualmente excelentemente trabalhada, os diálogos são rigorosos e eficazes, o monólogo do capitão Nascimento muito bem doseado e colocado nos espaços e tempos certos.
De resto, Padilha e a sua equipa, filmando nas favelas, e introduzindo-se em espaços, no mínimo “difíceis”, demonstraram grande coragem. Como curiosidade, conte-se que, em Novembro de 2006, ainda em rodagem em cenários naturais, alguns traficantes do morro Chapéu Mangueira, na Zona Sul do Rio, onde as filmagens eram feitas, sequestraram parte da equipa que trabalhava no filme e roubaram as armas utilizadas nas filmagens. 59 eram réplicas, mas 31 eram verdadeiras, adaptadas para balas de efeitos especiais. As filmagens foram suspensas durante cerca de duas semanas. Quer dizer: neste país, sobretudo nesta “cidade maravilhosa” (que o é mesmo!) ninguém deixa de pagar tributo a este sistema que se quer inexpugnável. Qualquer estranho que aí penetre, e que não seja traficante ou polícia, é olhado como suspeito ou vítima preferencial. O que um turista de passagem, olhando o morro cá de baixo, de Copacabana, não descobre. Mas intui.

TROPA DE ELITE
Título original: Tropa de Elite
Realização: José Padilha (Brasil, 2007); Argumento: Bráulio Mantovani, José Padilha, Rodrigo Pimentel, segundo "Elite da Tropa", obra de André Batista, Rodrigo Pimentel, Luiz Eduardo Soares; Produção: Bia Castro, Eduardo Costantini, James D'Arcy, José Padilha, Marcos Prado, Eliana Soárez, Genna Terranova; Música: Pedro Bromfman; Fotografia (cor): Lula Carvalho; Montagem: Daniel Rezende; Design de produção: Tulé Peak; Decoração: Odair Zani; Guarda-roupa: Claudia Kopke; Maquilhagem: Martin Macias, Ignácio Posadas, Sandro Valério; Direcção de produção: Robert Bella, Maria Clara Ferreira, Lili Nogueira, Edu Pacheco, Fernando Zagallo; Assistentes de Realização: Laura Flaksman, Laura C. Grant, Daniel Lentini, Clara Linhart, Malu Miranda, Phil Neilson, Pedro Peregrino, Rafael Salgado; Departamento de arte: Cristina Cirne, Dejair dos Santos, Thiago Marques; Som: Alessandro Laroca, Eduardo Virmond Lima, Leandro Lima, Fernando Lobo; Efeitos especiais: Marc Banich, Mauricio Couto Bevilaqua, Mike Edmonson, Sergio Farjalla Jr., Bruno Van Zeebroeck; Companhias de produção: Zazen Produções, Posto 9, Feijão Filmes, The Weinstein Company, Estúdios Mega, Quanta Centro de Produções Cinematográficas, Universal Pictures do Brasil, Costantini Films.
Intérpretes: Wagner Moura (Capitão Nascimento), Caio Junqueira (Neto), André Ramiro (André Matias), Maria Ribeiro (Rosane), Fernanda Machado (Maria), Fernanda de Freitas (Roberta), Paulo Vilela (Edu), Milhem Cortaz (Capitão Fábio), Marcelo Valle (Capitão Oliveira), Fábio Lago (Claudio Mendes de Lima 'Baiano'), Luiz Gonzaga de Almeida, Bruno Delia (Capitão Azevedo), Marcelo Escorel (Coronel Otávio), André Felipe (Rodrigues), Thelmo Fernandes (Sargento Alves), Emerson Gomes (Xaveco), Paulo Hamilton (Soldado Paulo), Bernardo Jablonsky, Daniel Lentini, Thiago Mendonça, Alexandre Mofatti, Erick Oliveira Otto Jr., André Santinho, Patrick Santos, Ricardo Sodré, Thogun, etc.
Duração: 115 minutos; Classificação etária: M/18 anos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Locais de Filmagem: Rio de Janeiro, Brasil; Data de estreia: 10 de Julho de 2008 (Portugal).